Apenas assisti quando o fauno entrou com um balde, panos, vassoura e esponja, limpou o vômito da minha mesa e a parte seja do meu braço, depois concentrou sua atenção no chão. Não fiquei olhando, estava ocupada demais contando as estrelas do céu, apenas as que podiam ser vistas pelo buraco no teto. Rudolf saiu sem que eu percebesse.
Presenciei as nuvens escuras cobrindo o céu antes que eu pudesse terminar de contar os pontinhos brilhantes, mais rápido ainda a chuva caiu, molhando meu corpo e me fazendo sentir frio. Não dei a mesma importância da noite passada, a sensação dos pingos grossos e o frio perderam a importância, estava cansada demais para me preocupar com qualquer coisa.
...
O sol chegou e mais uma vez me queimou. Uma das vantagens de me tornar uma criatura mitológica é que adquiri maior resistência a situações extremas e meu corpo ganhou a capacidade de se curar mais rápido, além da juventude prolongada e os anos extras de vida, esses últimos não faziam tanta diferença para mim, no entanto, mesmo com um corpo que corria para curar qualquer machucadinho em uma velocidade invejável para qualquer ser humano, ainda não era rápido o bastante para vencer as torturas impostas pela rainha, a falta de alimento e a falta de água tornavam o processo menos rápido, e quando meus pulsos e tornozelos começavam a se curar das queimaduras, o sol nascia novamente, o frio da noite retardava mais ainda, fazendo meu corpo se empenhar em permanecer aquecido, mesmo em meio a chuva gelada. Ravena sabia mesmo como enfraquecer criaturas resistentes à morte.
A rainha entrou usando um vestido curto e preto, com manga curta mostrando a clavícula e colado ao corpo, uma capa preta e pesada costurada na altura do ombro descia até o chão, o cabelo solto e curto contrastava com a roupa negra, o salto também preto cobria totalmente os dedos, como sempre muitos anéis nas mãos, brincos grandes e um bracelete com ferros finos de ouro e um diamante negro em seu centro. Ela parecia um anjo da morte, me questionei se era ela mesma ou o anjo encarregado de buscar a minha alma.
- Espero que tenha usado a noite para pensar em aceitar a minha proposta. - andou em direção a minha mesa fazendo a capa voar levemente com o movimento.
- E eu espero que tenha usado a noite para encontrar a humanidade que você perdeu. - falei com a voz rouca e sem ânimo.
- Diferente de você, minha querida, - inclinou o corpo para enxergar meu rosto. - eu nunca fui humana, já nasci assim, - abriu os braços. - incrível, forte, poderosa, uma criatura espetacular! - falou as palavras com tanta confiança e autoestima que me causou inveja, era visível que ninguém nunca a faria se sentir menos do que tudo aquilo.
- Talvez, se tivesse nascido como humana, enxergaria o quanto a vida é passageira, frágil demais para perder tempo com joguinhos como este. - fiz um movimento de cabeça indicando nós duas.
- Não se preocupe com o tempo, Ayra, - balançou a mão com impaciência. - você terá mais anos do que poderá suportar a vida, será fértil por mais tempo do que qualquer mulher deseja... é claro... - levantou o indicador. - se sobreviver a mim.
- Achei que não quisesse me matar. - falei secamente.
- E não quero, mas certas coisas não dependem só de mim. Se um rei não pode permitir que possíveis usurpadores vivam livres para tomarem o seu trono, imagina uma rainha... sabe como é, - levantou os ombros. - vinte leões por dia, não dez.
Revirei os olhos.
Ravena mais uma vez fez todo o processo de aplicar a substância em mim, esperar e coletar o meu sangue. Depois de colocar a seringa na mesa com caixas jogou a notícia na minha cara como se fosse uma bomba.
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A Mesa E O Mar
FantasíaApós perder a mãe, sua única família, e descobrir que seu pai distante também morreu optando por não se despedir, Ayra sente-se sozinha no mundo. Mergulhada em luto e solidão ela é seduzida pela beleza das estrelas e atraída até uma mesa misteriosa...