«A igualdade é uma necessidade vital da alma humana. Deve-se dar a mesma quantidade de respeito e atenção a todo ser humano, porque respeito não tem grau»
Simone Weil
Valência lutava contra vários sentimentos e pensamentos contraditórios. As lembranças de Ansara tornaram-se mais fortes após o ver nas Montanhas. A sua raiva misturou-se com a culpa e dúvida. Já não sabia o que era certo. Não sabia se deveria envolver Ansara naquela luta e temia pela guerra que poderia resultar na escravidão de todos os homens. O Artefacto nas mãos do Reino da Teia davam-lhe desvantagens a todos os níveis. Ainda para mais não poderia dizer a sua mãe que fora às Montanhas e que encontrara Ansara. Não lhe podia pedir para que ele voltasse ao Reino. Valência queria fazer isso, apenas para sentir que ele estava seguro e que não ia acabar numa mina a trabalhar para a sua inimiga.
A sua indecisão, tal como a de Ansara, impediam-nos de ter ações rápidas e davam vantagem ao Reino da Teia.
Um dos primeiros passos que Valência fez foi chamar Kenji para investigar onde estava o Artefacto.
- Tem cuidado Kenji, elas deixam marcas nos homens...
- Sim, minha senhora.
- Obrigam-nos a ir trabalhar nas minas. Uma mulher tem vários homens!
- Esteja descansada, minha senhora. Elas não poderão afetar-me.
- Como assim?! Não estejas muito confiante!
- Não estou. - Kenji pela primeira vez mostrou-lhe a cara.
Valência ficou chocada, Kenji era uma mulher.
- Kenji! Eu sempre pensei que fosses um homem!
- É essa a ideia, minha senhora - informou-a Kenji - Somos treinadas para agir e ser consideradas homens, mas todas as ninjas, grupo secreto de espiões, são mulheres e por isso indetetáveis.
- Kenji isso é genial. Quero contratar-te para treinares uma equipa especial aqui para o Reino. Será possível?
- Vou falar com os meus superiores, mas creio que sim.
Valência ficou feliz. Finalmente uma resposta a um problema. Uma dúzia de mulheres como Kenji já seriam uma boa forma de retaliação ao Reino da Teia. Agora poderia dedicar-se à tradução do livro. Não iria deixar nas mãos de ninguém, ela própria o iria fazer para ser o mais rápida possível.
Fazer uma tradução parece sempre mais fácil do que realmente é. Principalmente quando não se conhece a língua na perfeição. Muitos dicionários, gramáticas estavam na sua secretária antes mesmo de começar a tradução.
Ela começou por tentar entender aquela língua que já ninguém falava há tanto tempo. Por que insistiam em utilizar aquela língua no tempo da Amazona se já ninguém a falava? Valência não compreendia. No entanto, aquele livro poderia dar-lhe alguma vantagem sobre o Artefacto. A maioria das pessoas sabia pouco sobre o Artefacto, até mesmo ela, que era uma princesa, só sabia as suas três características. O Artefacto impedia os homens de atacar as mulheres e recorrer à sua força contra elas, permitia as mulheres mandarem nos homens, caso eles não fossem completamente contra a ordem dada e não os ferisse ou a quem queriam bem, e por último, o Artefacto era frágil e precisava de ser protegido.
A última característica era a que a mais intrigava. Era frágil como? Partia-se? Poderia mesmo um objeto que influenciava homens e mulheres de todos os Reinos ser assim tão frágil ou será que a sua fragilidade consistia noutros aspetos? Era essas questões que Valência esperava que aquele livro a ajudasse a responder.
Portanto, o mais importante era compreendê-lo. Pegou no dicionário e no livro e começou a tomar notas e a escrever os significados um a um na folha, mesmo que fizessem frases sem nexo.
O processo era exaustivo mesmo para quem conhecia a língua bem, era arrasador para quem a desconhecia quase por completo. Valência dava por si a ler as gramáticas e a tentar compreender declinações e outras particularidades da língua. Chegou ao final do dia arrasada e sem avanço na tarefa. Quanto mais desejava ser veloz, mas parecia que tudo a impedia.
Lembrou-se de Ansara a sobreviver naquela montanha, tendo uma gruta fria e cheia de memórias como único abrigo. Sentiu saudades do seu abraço e do tempo que passaram juntos. Até das suas discussões. Discutiam sobre tudo até sobre a roupa que vestiam. Fez um sorriso triste. Toda aquele estranho poder do Reino da Teia havia destruído o amor deles para sempre. Poderia mesmo haver outro Artefacto?
Valência quanto mais investigava mais confusa ficava. Como explicar toda a situação e tudo o que se passara nas Montanhas sem se denunciar para a sua mãe?
Uma dor de cabeça, fina como uma agulha, parecia perfurar-lhe as fontes. Ela não tinha como pensar mais naquele dia. Deitou-se na cama e como a sua dor de cabeça não a deixava descansar, deixou as lágrimas correrem como um rio solto num mundo de caos.
Ansara estava ansioso. Não sabia se deveria ficar nas Montanhas ou não, mas também não queria voltar para os Campos com as mãos a abanar. Valência poderia voltar. Nem que fosse pela mínima hipótese de isso acontecer, ele não queria perdê-la. Principalmente agora que sabia que a mulher que lhe tinha tirado tudo fora a Rainha do Reino da Teia. A única forma de a fazer pagar por tudo o que ele e outros homens sofreram era com a ajuda de Valência. As tropas do Reino, o livro e a sua posição davam-lhe oportunidade para destruir o Reino da Teia, onde os homens eram escravizados e explorados de uma forma terrível. Ansara sempre pensou que não poderia fazer nada, que cada Reino deveria se governar à sua maneira, mas agora via como era terrível estar submetido às mulheres daquela forma.
Quando estava nos Campos viu como as mulheres e os homens se complementavam em todos os aspetos. Não havia razão para a escravidão nem para uma mulher ter vários homens. Os dois opostos juntos atingiam uma complementaridade necessária para qualquer aspeto da vida ou de um Reino. Por isso os Reinos tinha mulher e homem a governar cada um na sua área de melhor aptidão.
Ansara conseguiu chegar a essa conclusão depois de alguns dias de Valência partir. Com ela partiu a sua raiva, tal como uma erva daninha tinha se infiltrado na sua fortaleça de aço. Ele ainda tinha o desejo de vingança, mas agora dirigia-se à mulher que o tornava inútil e inseguro: Aracnia e não a todas as mulheres. Ela tirara-lhe muito mais do que a sua mulher, casa e Reino. Ela tirara o que ele mais se sentia seguro, a sua força e virilidade. Por vezes, ainda se sentia um menino a chorar para a sua mãe porque uma menina havia chamado os meninos burros, feios e malvados. Isso aconteceu quando tinha apenas quatro anos, mas ficou consigo para sempre.
Mesmo que não se pudesse vingar com as suas mãos, ele iria se vingar de Aracnia. Ela iria sufocar na sua própria teia.
No seu isolamento, Ansara não ouviu as notícias do Reino da Teia. Valência também passou dias na tradução daquele livro tão complexo sobre o Artefacto que nada ouvira sobre o Reino da Teia. No entanto, chegou aos ouvidos de Eurico. Uma revolta nunca vista, homens que se haviam suicidado ao rebentar de propósito com uma ala do castelo do reino da Teia. As pessoas de todos os reinos estavam chocadas. As mulheres olhavam para os homens com medo. O mundo estava de pernas para o ar. Os homens estavam a revoltar-se contra as mulheres?! A morrerem por isso?! Já não se via algo assim há muito tempo e não com tanta violência...
Um escândalo, mas seria assim tão descabido?
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O Reinado das Mulheres (RASCUNHO)
FantasyUma mulher que perdeu tudo devido aos homens da sua família, sobrevive a fingir que é homem até ao dia em que descobre um artefacto que vai mudar o mundo para sempre... Dois séculos mais tarde, um homem injustiçado que procura o artefacto para fazer...