1. O Reinado dos Homens I

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«Tens de acreditar em ti quando mais ninguém o faz – isso torna-te uma vencedora»

 Venus Williams

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Reino Castelo, 1409

Alice estava quase a conseguir. O silêncio pesava na gruta, as gotas de água assustavam o sossego aterrador dos mortos. Havia caveiras e corpos em decomposição, marcas daqueles que como ela vieram atrás do tesouro, mas apenas encontraram a morte. A pressão da terra e as marcas de lava do passado eram o suficiente para assustar os menos preparados. Apesar do som das pingas de água e do frio moribundo do local, havia uma total isolação do exterior. Alice segurava-se com toda a força numa rocha, mas esta quebrou-se ficando apenas em metade e ouviu-se o som dos restantes pedaços a cair no abismo. Aquele caminho iria levá-la ao artefacto. A sua primeira conquista!

Todos os homens consideravam-na desadequada e apesar de ter vindo de uma família abastada, o seu pai fora tutor do rei, nenhum desejou casar com ela. «Parece um homem» disse o filho do Conde Lencastre, o seu único pretendente, quando o seu pai perguntou porque renunciava ao casamento. A razão de tal resposta só poderia ser por ela vencer-lhe numa luta de esgrima em público. Uma luta instigada por ele. Era só uma questão de orgulho ferido. Alice aprendeu esgrima para treinar com o seu irmão, Octávio. Eles tinham apenas um ano de diferença de idade e ele era o único filho, por isso, acabou por ser Alice o seu par. No entanto, acabou por ser melhor que o irmão e do que muitos homens.

Alice sabia que poderia viver bem sem qualquer homem. No entanto, além de ser desprezada por homens, também o começou a ser pelas mulheres. Ser sua amiga dava má reputação e poderia prejudicar a procura de pretendentes ou manchar a reputação das suas amigas casadas. Quando o seu pai morreu, o seu irmão tomou o seu lugar. Ele quis corrigi-la ao colocá-la num convento. Ela nunca professou nenhuma simpatia pela igreja, ou por Deus, ele queria apenas que ela não interferisse nos seus projetos e não tivesse direito da herança do pai. Alice sabia bem onde ele iria gastar o seu dinheiro: em mulheres e jogo! Tudo aquilo corroía-lhe o estômago, o sangue!

Ainda hoje tinha vergonha e repugnância ao lembra-se daquele convento, das freiras e principalmente daquele padre. Eles iam engolir tudo o que lhe fizeram.

Quando fugiu do convento começou a vestir-se como um homem. Foi tão fácil conseguir a roupa, como estava vestida de freira, bastou pedir roupa para os pobres. Ela não tinha uma única moeda, por isso, não fora nada fácil. Ela apenas conseguiu trazer as suas antigas roupas com ela, ao vendê-las conseguiu comida e estadia por uns dias enquanto recuperava e sarava feridas escondidas. Havia outras, mais profundas, que ninguém poderia sarar. A seguir, conseguiu trabalho numa quinta. Como não tinha o peito farto e tinha um corpo bem atlético, fazia frente a qualquer homem como igual. Vestida e com o cabelo cortado, ninguém conseguia duvidar que ela era um homem.

Só faltava dois metros para chegar ao artefacto. A bola brilhava a inebriá-la com a sua luz e com a sua fortuna escondida. A candeia de azeite parecia fraca comparada com a luz daquele artefacto, desde que tomou a decisão de fingir ser um homem a sua vida tornou-se outra. Ela poderia ir onde fosse para onde quisesse, sem companhia. Sem conselhos ou tratamento especial. No entanto, a solidão e as batalhas sem fim, tinham-lhe marcado a face com uma rispidez e uma tez dura e envelhecida. Ela olhava-se no rio e ela não se via. Via o homem que havia criado.

Alice chegou ao artefacto. Ele estava num pequeno altar, com esforço conseguiu erguer-se, pois a rocha estava húmida e tinha os músculos dos braços doridos, as mãos escorregavam, mas tinha de apoiar-se ali para chegar ao objeto. Agarrou o artefacto com ambas as mãos. O objeto brilhou mais intensamente e uma voz profunda e estranha perguntou:

– O que mais deseja?

O Reinado das Mulheres (RASCUNHO)Onde histórias criam vida. Descubra agora