A partir desse dia havia uma pequena ruga na testa de Valência que não saía por muito que sorrisse para Ansara. Ele era o único que conseguia arrancar um sorriso breve da princesa.
Ele partilhava a dor de Valência, mais do que qualquer pessoa esperava, afinal a rainha o exilou e nem tinha ficado na dúvida quando ele apareceu marcado, condenou-o logo de traição. No entanto, ele via que Valência não tinha disposição para fazer nada, o seu olhar estava vazio desde que a mãe partira. Por essa razão, ele sofria com ela, mais do que qualquer outra pessoa. Foi Ansara que preparou a o funeral. A sacerdotisa e o sacerdote vieram para dar a bênção da Lua e do Sol. Todos sentiam a morte da Rainha e todos olhavam para Ansara como tivesse sido ele a matá-la.
Todos menos Valência que se amparava nele. Todas as noites, enroscava-se no seu braço e chorava como uma criança. «Não tive tempo para lhe dizer que a amava... para me despedir» disse um dia.
Ansara compreendia o estado de Valência, mas os reinos precisavam dela mais do que nunca. Regina não era de confiar e o Reino de Pastaria exigia um acordo. As mulheres e homens do reino deles ainda estavam insatisfeitos pelas violações e marcas. Os homens deixaram de ter marcas, mas apenas os recentemente casados. Tudo isto estava a deixar o povo confuso. Ansara desejava fazer mais, porém não conseguia enquanto tivesse o estatuto de exilado.Precisava de fazer Valência reagir antes que o Reino do Castelo Dourado ficasse igual ao Reino da Teia.
Mais um dia se passou em que Valência ficou a olhar o horizonte na janela do quarto de Rainha. Os empregados do castelo desorientados pediam a Ansara ordens e orientações. Ansara estava quase tão desorientado quanto eles. Precisava de Valência. Precisava de voltar para os seus homens que deixara no Reino da Teia e ainda queria ir aos Campos. Deixara todos preocupados sem saberem nada dele.
– Valência, precisas de reagir! – pediu ele para a sua cara virada – preciso de ti! O reino precisa de ti!
Valência virou a cara, mas a sua expressão continuou vazia.
– Se continuares assim, vou ter que voltar ao Reino da Teia. Não posso ficar aqui mais tempo.
Valência sentiu como se tivesse levado uma bofetada.
– O quê?! Como assim teres de voltar?
– Tenho os meus homens lá e os homens que conheci nas Minas. Além disso, prometi passar pelos Campos após ter descoberto o Artefacto – Ansara suspirou. – Não sou bem recebido aqui. Caso te tenhas esquecido, fui exilado e os homens com duas marcas ainda são considerados devassos e também, não me sinto bem a dar ordens por ti!
Ansara saiu com as suas coisas antes de Valência conseguir responder. A verdade é que aquela situação tinha de ser resolvida. Valência ainda sentia uma dor que parecia querer rebentar com o seu coração. No entanto, a única solução que tinha era afastar-se da dor e concentrar-se nas suas tarefas. Foi sempre o que fez nos tempos mais difíceis e não tinha dado certo? Agora, também teria de dar.
Valência levantou-se da janela, foi aos lavabos lavou a cara, prendeu o cabelo sempre em desalinho e foi ver onde andavam os comandantes e como estavam as coisas no seu reino.
Quando Ansara regressasse tinha de sentir aquele reino como o seu lar. Valência não conseguia perder mais ninguém na sua vida. Por isso, apesar de custar-lhe imenso sair da apatia, ela tinha de se concentrar nas tarefas a fazer.
Ansara partiu para o Reino da Teia com o coração pesado. Não sabia mais o que fazer. Será que Valência iria reagir e sair daquele estado de sonolência? Ele esperava que sim. Ninguém estava a vigiar o Reino da Teia a não ser os seus homens. Precisava de saber como estavam os ânimos. Mais do que vigiar Regina era preciso vigiar os próprios habitantes do reino. Quando lá chegou, ficou atónito. O Reino da Teia estava todo decorado. Teias, chapéus de bruxa e abóboras eram a decoração presente em todo o reino e até nas portadas.
Quando entrou falou com um homem que carregava mercadorias para um armazém.
– Estão a preparar um baile para festejar a paz no reino e a igualdade entre homens e mulheres. Tinha de ouvir o discurso da rainha Regina! Deu-me arrepios na espinha. Finalmente, as mulheres deram valor aos homens! – contou feliz o homem.
– A sério?!
– Sim, disse que a sua irmã iria voltar em breve. Agora compreendia que os homens eram precisos para mais do que trabalhos pesados, são o suporte das mulheres. Que as mulheres só beneficiavam da lógica pragmática dos homens, como os homens da inteligência emocional das mulheres – explicou o homem emocionado – não entendi completamente o que ela disse, mas fico muito feliz por nos darem valor!
Ansara afastou-se, pensativo. Regina de certeza que não tinha escrito aquele discurso. De qualquer forma, teria que encontrar os seus homens para voltarem para o Reino do Castelo Dourado. Estaria Regina a ser coagida? Talvez tivesse com medo do que os homens poderiam fazer com ela ou de ter outra guerra no seu reino. Ansara esperava que fosse esse o caso, mas não conseguia acreditar muito nisso. Estava desconfiado. Não confiava em nenhuma mulher daquele reino. Quando voltasse ao Reino do Castelo Dourado ainda iria falar com Aracnia. Nunca a iria perdoar pelo que fizera. Iria vigiar cada passo dela.
Encontrou os seus soldados a preparar-se para o festejo no Castelo. Perguntou-lhes o que tinha acontecido para Regina ter tal decisão e eles contaram que foi obrigada pelos homens e pelo contabilista após ver os prejuízos das disputas.
– Os homens são precisos para a recuperação do reino. Já não os podem obrigar, por isso, têm de os conquistar – contou-lhe Rafael a sorrir.
– Vi logo que aquele discurso não poderia ter sido elaborado por vontade – disse Ansara —, estão prontos para regressar ao Reino do Castelo Dourado?
Os homens olharam para ele preocupados. Nada tinha mudado para eles. Iriam continuar a ser desprezados por ter duas marcas.
– Não sei se quero voltar, – admitiu Francisco – fizemos tudo isto para que admitissem a culpa das nossas marcas, no entanto, não conseguimos nada...
– Conseguimos, sim. Descobrimos a verdade e tenho a certeza que Valência irá encontrar uma solução. Para isso, precisamos de voltar – encorajou Ansara.
Os homens seguiram Ansara, no entanto, as suas atitudes demonstravam bem a sua descrença. Ainda iriam aos Campos antes de voltar para o Reino do Castelo Dourado. Isso animava-os por que havia quem considerasse melhor viver nos campos do que voltar para um reino em que as mulheres os tratavam como lixo. Respeitavam Ansara e acreditavam que ele iria arranjar uma forma de resolver a situação. Não confiavam em Valência. Ela exilou o próprio marido quando soube que foi violado. Por muito que tivesse ajudado a melhorar as coisas no Reino da Teia, o que poderiam esperar de uma mulher assim?
Nos Campos, tia Felismina, Eurico e tio Benedito vieram recebê-los de braços abertos. Devido à sua chegada, preparou-se um arraial e acomodação para os recém-chegados.
Os soldados divertiram-se com as pessoas dos Campos. Como havia muitos homens como eles com duas marcas e expulsos ou que abandonaram por livre vontade os seus reinos, foi um bom tempo de descanso. Enquanto os via a dançar e a experimentar os bolos de Fiona, Ansara contara tudo o que se passara a Eurico e a tio Benedito. Ambos ficaram satisfeitos de Ansara os colocar a par das novidades, mas o resultado deixava todos com uma sensação de não estar terminada a história.
Valência admitiu que Ansara e os restantes homens violados não tiveram culpa das marcas, mas todos queriam que Aracnia pagasse o que fez aos homens. Afinal, os homens foram tão maltratados por ela e pelas pessoas que mais gostavam injustamente. Aracnia não merecia ser defendida nem que o seu desejo se realizasse. Essa era a opinião de todos os homens. Todos esperavam que ele tornasse as coisas claras para todos. Ansara esperava que Valência falasse do segundo Artefacto. Mesmo assim, poderiam as pessoas acreditar de um poder tão forte? Será que não chamaria atenções indesejadas?
Apesar das suas dúvidas, Ansara acreditava que Valência iria tomar a decisão acertada. Se não o fizesse ele iria fazer. Como castigar Aracnia? Colocá-la numa prisão, bem isso, ela já estava. Ansara teve uma boa ideia. Riu-se sozinho. Ele tinha a ideia perfeita e que iria fazê-la aprender e engolir toda a arrogância e mania que os outros existiam para ela ter os seus sonhos realizados.
No dia seguinte, Ansara e os seus homens voltaram para o Reino do Castelo Dourado.
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O Reinado das Mulheres (RASCUNHO)
FantasyUma mulher que perdeu tudo devido aos homens da sua família, sobrevive a fingir que é homem até ao dia em que descobre um artefacto que vai mudar o mundo para sempre... Dois séculos mais tarde, um homem injustiçado que procura o artefacto para fazer...