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Uma. Duas. Três.

Merda!

Quatro. Cinco. Seis.

Seis badaladas e eu já estava atrasada. Em trinta minutos estourava meu toque de recolher para que em menos de duas horas já estivesse pronta na boate. Essas eram as regras da casa: estar de volta antes das seis e meia.

O cemitério já dava indícios de que iria fechar e mais ninguém era visto no campo aberto entre as lápides, além de um senhor de cabelos brancos, um tanto magricela que usava um uniforme de segurança e que vinha em minha direção com um ar de impaciência.

– Vamos minha jovem, o cemitério fecha em cinco minutos! – ele me apressou, balançando um molho de chaves.

– Tudo bem, já estou de saída... – respondi sem me dar o trabalho de encará-lo.

E mais um ano aquela cena se repetia. Já era o sexto que eu perdia o horário naquele dia em especial, sentada sobre o túmulo cheio de folhas de meus pais enquanto enchia meus pensamentos de nostalgia. Céus, seis anos já haviam se passado e eu ainda não sabia definir o sentimento que me atingia naquela data.

O barulho irritante das chaves balançando começou a ficar mais intenso sob meus calcanhares, obrigando-me a dar meia volta e seguir de cabeça baixa até a saída do cemitério, mas não sem antes ajeitar a singela coroa de flores entre as lápides de meus pais. Aquele era o único dia do ano em que eu me permitia tamanha melancolia, em que eu me permitia sentir toda a saudade reprimida e relembrar o que por muito tempo ficou marcado como o pior dia de minha vida.

Nunca era fácil lidar com aquele luto, principalmente quando as lembranças acabavam vindo à tona. Tudo começou com uma viagem a negócio, os dois haviam saído para uma viagem de trabalho representando a empresa onde trabalhavam juntos em uma reunião em Nova Jérsei, seria uma coisa tão rápida que segundo minha mãe eu sequer teria tempo para sentir falta deles e que se essa reunião desse certo as nossas vidas iriam mudar a partir daquele dia.

As lembranças eram frescas em minha memória... lembrava-me de tê-la abraçado forte enquanto ela mexia em meus cabelos, tentando me consolar com suas palavras doces, que eu deveria ficar calma pois no outro dia pela manhã eles estariam de volta e que aquela angústia e pressentimento ruim eram apenas besteira. Bem, e ela estava certa, pelo menos com a parte da mudança.

Segundo os médicos e policiais, o carro de meus pais foi atingido por um caminhão de carga desgovernado e acabou capotando algumas vezes até cair para fora do acostamento da estrada, deixando o carro onde eles estavam em condições de miséria devido a alta velocidade e o peso do caminhão. De início os médicos achavam que eles teriam chances, mesmo que pequenas de sobreviver, mas minha mãe, que dormia no banco do carona, acabou falecendo no caminho para o hospital com ferimentos e fraturas graves. Enquanto meu pai não foi capaz de aguentar e o acidente acabou sendo fatal, muito antes do socorro aparecer. Apenas um milagre teria salvado os dois e infelizmente não foi o que aconteceu.

O outro dia nunca chegou, eles nunca voltaram e a realidade era uma: eu estava sozinha. Órfã. Sem saber o que fazer e sem ter alguém que pudesse recorrer.

Dois dias depois dessa notícia, ao término do enterro das duas pessoas mais importantes da minha vida, fui procurada pelo advogado da família para uma visita que passava longe de ser amigável. Meus pais estavam com uma dívida astronômica em seus nomes, nossas contas bancárias estavam negativas e segundo Mark, essa tal viagem que eles haviam feito seria o início da salvação para esse débito, porém, como a reunião não havia dado resultado e os negócios que a empresa em que meus pais trabalhavam não foram bem sucedidos, o dinheiro que eles receberiam não chegaria até a nossa conta. Mesmo que soubesse que nos últimos meses estávamos passando por algumas dificuldades, meus pais nunca haviam quantificado essa tal dificuldade e ver os dígitos em vermelho em minha frente rapidamente me fez entender as noite em claro dos dois.

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