A GENTE NÃO NASCE, COMEÇA A MORRER

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~*~

O dia  seria corrido, já que eu planejava ir ao pré-natal da Hanna. Pelo atraso menstrual ela devia estar com quase dezesseis semanas de gestação.

— Eu não acredito que você veio ao , Aura! — Hanna ergueu-se da cadeira muito animada.

Era o ultrassom de primeiro trimestre.

— Eu não deixaria você só. Sei que sua mãe não pode vir, então cá estou eu. Está ansiosa, Hanna? — Perguntei me sentando ao lado dela.

— Não sei, um pouco talvez. Antes eu estava aflita com essa gravidez inesperada, mas agora já aceitei a ideia e curiosa para saber o sexo do bebe.

— Ah, você vai ser uma bela mãe. Quando vir o rostinho do seu bebê tudo vai mudar em você — Eu olhava para o passado, lembrando de quando Sofia nasceu — E passa muito rápido, viu?

— Eu imagino, Aura! A Sofi já está uma mocinha. Incrível como o tempo voa! — Completou Hanna.

Após essa nossa breve conversa, a secretaria nos mandou entrar na sala de ultrassom.

~*~

Era um menino o bebê que Hanna esperava. Parecia estar tudo bem no ultrassom morfológico.

Enquanto o medico fazia o exame, eu lembrava do dia em que soube que teria uma menina. Júlio tentou forçar um sorriso, mas eu sempre soube seu desejo de ter um filho  homem.

E me frustrei por não agradá-lo naquele dia. Hoje penso que era estranho sentir que o havia desapontado, pois se havia algo  que eu não poderia definir, seria o sexo do nosso filho.  E obviamente, hoje já sabemos que depende mais do espermatozoide do que do óvulo.

Eu era uma estupida!

Mas Júlio ficaria feliz por ter um filho homem, com certeza.

— Logo pensaremos em um nome pra esse anjinho! — Dizia a Hanna enquanto dirigia.

— Sim!!! Tenho algumas ideias. Mas depois eu falo!!!

Deixei Hanna no apartamento dela e corri para o hospital. Márcia fazia parte de uma comissão de auditoria, que verificava itens da unidade — entre  medicações e insumos da farmácia. E como eu era a sub-chefe do hospital, Márcia  queria me passar os relatórios, já que o diretor do hospital viajava.

— Há falta de inúmeras coisas, Aura, mas o  balanço parcial dos insumos não revelou o que exatamente não confere com o que era pra ser encontrado na farmácia — Márcia dizia isso com certa dificuldade, como se stivesse cansada.

— Posso olhar o relatorio preliminar? — Perguntei.

Ela empurrou a prancheta por sobre a mesa em minnha direção. Até mesmo esse pequeno movimento pareceu cansá-la.

— Está tudo bem com você, Márcia? Parece pálida — Lancei um olhar preocupado para ela.

— Apenas um pouco fadigada. Fiz teste de covid ontem, mas veio negativo , graças a Deus.

Márcia tossiu de leve e sua respiração ficou mais ruidosa com o passar dos minutos.

Olhava o que estava escrito no relatório e vi sublinhado várias ampolas de midazolam, quetamina, diazepam e fentanil. Eram todos estatutos usados principalmente para entubar pacientes. A conta não fechava quando se comparava com a nota fiscal de compra das drogas.

— Acha que há algo a mais faltando, Márcia? Além disso aqui? — terminava de ler o relatório.

— Provavelmente sim, Aura — Márcia apresentou uma fala entrecortada por inspirações.

Larguei a prancheta sobre a mesa e fui até ela. Coloquei meu estetoscopio na região posterior do tórax , iniciando uma ausculta pulmonar.

As bases do pulmão soavam como pequenas bolinhas de água estourando. Os dois lados tinham esse som, na mesma altura.

Em seguida chequei a pressão e a pressão sistólica — a mais alta das duas — passava de vinte milímetros. Uma pressão muito elevada.

Não tive dúvidas de que se tratava de uma emergência hipertensiva, provavelmente um resultado da pressão arterial descontrolada que Márcia vinha mantendo. .

— Márcia, você tomou seus remédios hoje? — Eu corri até a porta para chamar por ajuda.

— S-sim. T-tenho tomado— Respondeu com um sopro de voz.

Outras perguntas Márcia respondeu muito pouco, parecia desorientada. Eu suspeitava que a pressão estava edemaciando seu cérebro.

Fiquei aflita e eu mesma corri para buscar uma cadeira de rodas. No caminho encontrei o maqueiro e finalmente coneguimos levá-la até o leito da emergência.

— Márcia, fala comigo! — Eu a sacudia de leve enquanto checava as pupilas com a  lanterna do meu celular — Merda, merda! Acho mesmo que ela tá tendo um edema agudo de pulmão.

Eu parava para asculturar o tórax  novamente  e o barulho que ouvia antes já estava tomando mais da metade dos pulmões. Era um edema pulmonar, não havia dúvidas.

— Doutora a pressão contiua alta! — Me disse a Técnica.

— Prepara Nitroprussiiato e furosemida pra mim, agora! Rápido.

Olhei para o monitor e a saturação de oxigênio caia rapidamente. Não haveria outro jeito, eu precisaria entubar Márcia. Estava com nível de consciência muito rebaixado.

— Alguém prepara o carinho  de parada cardíaca. Precisamos nos previnir — Eu olhava para os sinais vitais dela no monitor — peguem  um tubo 7,5 cm. Vou entubar a a Márcia, ela rebaixou demais a consciência!

As técnicas pareciam perdidas em encontrar as coisas. Isso porque na pediatria não atendíamos adultos e intercorrências como aquela — Edema de pulmão — eram incomuns ali.

— Preciso que sejam rápidas. Onde está o tubo, gente? Ela pode ter uma parada cardíaca por hipóxia, droga!

Ajeitei a nuca da Márcia  sobre um coxim — algo similar a um travesseiro — e abri a boca. Apontei com o laringoscópio para dentro da garganta dela.

Todos ao redor me olhavam não conseguindo entubar. Márcia tinha o pescoço gordo e não era uma intubação simples. Eu precisava ver as pregas vocais para passar o tubo.

— Chequem o pulso dela, meninas! Acho  que ela está parando por hipóxia, meu Deus! — Eu gritava já toda suada tentando a intubação pela terceia vez — Alguém me ajuda a ventilar.

— Ela parou! Ela parou! — Dizia a Técnica após não sentir o pulso.

Eu fui e chequei eu mesma. De fato estava em parada cardíaca. Aferi pulso carotídeo e femoral.

— Peguem a prancha e coloquem embaixo dela. Vamos iniciar a massagem. Você — apontei para uma técnica desconhecida — Conta o tempo de parada pra gente! — Voltei para a entubação — Adrenalina agora!

A laringe e glote estavam completamente encharcadas e quando consegui intubar já era tarde. Havia apenas um líquido róseo que saía pelo tubo. Isso era confirmação de que Márcia tivera um Edema agudo de pulmão. Era plasma misturado com sangue que vinha dos pulmões, conferindo o aspecto róseo ao líquido que saía pelo tubo.

— Quanto tempo de parada cardíaca? — Perguntei.

— Trinta e cinco minutos, doutora!

Era o fim. Não havia mais o que fazer. Chequei o pulso pela última vez e nada de responder.

— Chega pessoal. Acabou! — Decretei secando o suor.

Olhava para o corpo de Márcia sobre a maca, nu e com os olhos arregalados. Era apenas um cadáver, o que me deixou extremamente mal.

Talvez eu não fosse uma médica tão boa quanto eu pensava que fosse aquele tempo todo.

Fui embora pensando na ironia: Iniciei meu dia vendo uma vida se formar — o bebê de Hanna — e terinei o plantão com óbito de uma colega de trabalho.

APENAS UM TRAIDOR - ALERTA! Onde histórias criam vida. Descubra agora