UM CONSELHO DE MÃE

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~*~

Após a morte de Márcia eu fiquei alguns dias sem ir ao trabalho. Minha vida conjugal e social desmoronavam e , até aquele instante, era apenas o trabalho me mantinha respirando como indivíduo.

Mas até isso o destino havia me tirado o prazer , ou talvez eu mesma.

O retrato dos meus pais estava lá, sobre a estante da sala de casa, como se estivessem me julgando. Era uma fotografia deles abraçados, e qualquer um que visse a imagem diria que os dois formavam o casal perfeito, com a vida perfeita.

Meus pais  sempre sempre fizeram o que era possível para transmitirem a imagem de família ideal, regada pelos princípios cristãos. E essa farsa era mais importante que tudo, mais do que amar um ao outro ou gostarem verdadeiramente de esatrem juntos.

Minha família tinha certa tradição no Rio de Janeiro. Éramos donos  de inúmeras salas comerciais espalhadas pela zona sul e Barra da Tijuca. Tínhamos um nome a zelar, e não apenas  pelos negócios, mas também por sermos protestantes.

Patético!

Meu pai traía minha mãe com qualquer coisa que rastejasse pela terra ou que se movesse. Até mesmo uma travesti havia entrado na jogada, segundo meu irmão me disse uma vez.

Mas não importava esses escândalos, pois lá estava minha mãe, sempre para pôr panos quentes nas merdas do papai, fingindo ser a esposa perfeita, quando no fundo ela apenas queria manter tudo sob sua organizaçao. Fosse seu marido canastrão e fajuto, fossem os filhos.

E funcionava! Se ninguém a questionasse, o jogo da mamãe poderia funcionar perfeitamente.

Talvez minha mãe tenha inventado a expressão: finja até que atinja. Ou foi da boca dela que ouvi isso pela primeira vez. Mamãe era mestre em abafar escândalos.

Na primeira vez que Júlio me agrediu, eu fiz a bobagem de procurá-la e pedir ajuda, que me orientasse sobre o que fazer. Achava que ela tolerava as traições do meu pai, mas se um dia ele a agredisse, mamãe o deixaria. E pensei que ela me apoiaria a princípio.

Mas meu pai nunca ousou erguer um dedo para a minha mãe. Nunca. Então acredito que ela não lidou com algo parecido antes. E hoje chego a pensar que se mamãe tivesse vivenciado, simplesmente poria panos quentes em nome dos negócios e das aparências.

— Ore , meu bem! Ore muito para Deus restaurar seu casamento! — Me disse com o sorriso mais patético do mundo enquanto bebia um chá de frente para mim na mesa de casa.

— E se isso se repetir, mãe? Se Júlio erguer a mão de novo? — Eu estava quase desesperada.

Ela sorriu depositando a xícara vazia sobre o pires. Mamãe tinha um olhar presunçoso e arrogante, de quem talvez se achassem um sábio pela experiência dos anos vividos.

— Se não irritá-lo, minha filha, isso não vai acontecer novamente! Eu te garanto!

Ela fazia tudo parecer tão simples. Era a merda de uma violência doméstica e mamãe tratava como se fosse uma receita de bolo que havia dado errado. E pior: a culpa parecia ser minha pela agressão que sofria.

Naquele momento tive a plena certeza de que não poderia contar com mamãe de forma alguma, nem com ninguém da minha família. Papai era uma fanfarrão inveterado e meu irmão comia mais mulheres que os dias do ano podiam comportar.

Eu sofria sozinha, pensando no que faria da minha vida.

— Lembra dos cigarros de maconha que achei nas suas coisas na época da faculdade, Aura? — Ela queria me atingir ao perceber que eu não concordava a com seus conselhos absurdos.

Mamãe encheu sua xícara com mais chá esperando minha resposta. Mas eu queria que ela fosse embora da minha casa naquele mesmo instante.

— Lembro. Lembro sim! Por quê?— desviei o olhar incomodada.

— Pois é... — mamãe olhava para o nada, ou para a memória de um passado distante — Eu te dei um belo corretivo, não dei?

Assenti positivamente. Era muito desconfortável trazer tais memórias de volta.

— Mas eu não te bati pelo cigarro de maconha. Ah, não mesmo! Eu te dei aquela surra porque você ergueu a voz para mim. Você poderia até ter me desobedecido, Aura, mas se tivesse abaixado a cabeça e demonstrado arrependimento, mesmo que fingindo, eu me daria por satisfeita... Até por que eu sempre soube que você iria voltar a usar aqueles cigarros.

— Aonde quer chegar com isso, mamãe?

Mais um sorriso presunçoso.

— Oras,  o que quero dizer é que às vezes não é sobre o que você fez para Júlio, minha filha. Tem mais a ver com a maneira com que agiu com ele. Você pode desafiá-lo, contudo seja sempre submissa e o deixe falar primeiro. — Seu tom manso era asqueroso — Homens adoram estar no comando, mesmo que saibam que na realidade é apenas uma ilusão. É mais simples do que imagina.

Olhava para aquela mulher já dando sinais de entrar na velhice, com seus fios grisalhos mas muito bem ajeitados em um coque. A pele hidratada e cuidada para a idade. Roupa impecável. Um exemplo para a maioria que a cercava. E tudo não passava de fachada, aparência.

Mamãe era um ser completamente repugnante.

Foi a primeira e única vez que recorri a ela para pedir conselhos sobre casamento. Nunca mais tocamos em qualquer assunto parecido.

~*~

NOTA DA AUTORA

Que ódio dessa mãe dela!!! Com mãe assim eu prefiro ser órfã!

APENAS UM TRAIDOR - ALERTA! Onde histórias criam vida. Descubra agora