Capítulo 1 - Velotrol e tocos de madeira

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Muitas das minhas lembranças de infância são da escola. Antes disso, lembro de alguns episódios aleatórios, quando era bem criança, antes inclusive da escola e das amizades que duram até hoje.

Lembro que na minha rua, era comum haver enchente. E era comum a molecada brincar naquela água, fazendo a festa quando chovia mais forte. Tentando buscar pela memória qual lembrança seria a mais antiga, algumas se perdem no tempo, sem que eu saiba precisar ao certo qual a mais antiga.

Mas posso garantir, com certeza, que uma das mais antigas é com relação ao meu "velotrol", um triciclo de plástico.

Lembro que ganhei-o como presente de Natal, num Natal no final da década de 60 ou início dos anos 70... Véspera de Natal, naquela noite chovia, e o quarto da minha mãe estava inexplicavelmente com a porta fechada, coisa que nunca acontecia. A gente tinha como vizinhos um casal de velhinhos, muito simpáticos; ele era João, ela não consigo me lembrar o nome. (Dona Rosa, me avisa meu irmão). Me pareciam ser alemães, um senhorzão grande, pele alva e cabelos brancos, como imaginava ser todo alemão, na minha infância. Era ele quem fazia as vezes de médico e enfermeiro na vila: tudo ele sabia, todos os remédios era ele quem tinha e fornecia. Curativos na molecada, mercúrio cromo e merthiolate, injeções, era tudo com ele. Nesta noite de Natal, eles estavam conosco. Chegada a meia noite, a mãe me manda ir ao quarto, pois ela havia ouvido um barulho, e pediu pra eu ir ver o que acontecia. Ao abrir a porta, lá estava ele: o velotrol, molhado de chuva, como presente do Papai Noel. Não pude deixar de notar as pegadas do suposto Papai Noel que vinham da janela, displicentemente deixada aberta, pela qual ele entrara e deixara o presente. Já naquela época, eu descobri que foi um outro vizinho, previamente combinado, quem deixara o presente.

Esse foi com certeza um dos objetos mais perigosos que já tive: com cerca de dez anos de idade, eu descia a rua da Esperança, única asfaltada nas cercanias, já que a Caracaxá, então Santa Tereza da Nascente, era de terra. Numa dessas descidas, voltando com minha mãe da lojinha da dona Marisa, esforçando-me pra segurar a velocidade no pedal, minha mãe me "aconselhou" a soltar o pedal: uma descida considerável, com o asfalto lisinho - uma tentação. Soltei, e após ganhar muita velocidade, e sem pensar nas consequências das leis da física, principalmente a inércia, tentei entrar à direita na Caracaxá. Resultado: rolei muito no asfalto e fui parar só quando cheguei na calçada, com direito a raladas nos joelhos, cotovelos, mãos e braços. Nos joelhos tenho as marcas até hoje.

Mas meu primeiro brinquedo de verdade, desses comprados em loja, foi a Tia Elvira, irmã da minha mãe quem me deu, num Natal em algum ano perto do fim da década de 60. Um caminhãozinho amarelo, de plástico, com caçamba vermelha móvel, que se diferenciava de tudo o que eu já havia tido como brinquedo. Infância pobre (não sofrida, mas pobre), a gente se acostumava a fazer carrinho com lata de sardinha e toco de madeira. Naquela época, tinha uma fabriqueta que trabalhava com injetora de plástico, onde se faziam carrinhos (bem vagabundos, se me lembro). Mas o legal era o lixo dessa fabriquinha: Fazia a alegria da molecada visitar o tambor de restos não aproveitados, ou com defeito de fabricação, que ficava num barril de metal, nos fundos do quintal do barracão. Tinha um milhão de rodinhas com defeito, e a gente passava horas procurando uma menos ruim pra aproveitar em nossos projetos de carrinho com lata de sardinha. Tinha também, nesse quintal, um pé de amora que completava o menu: pegar rodinhas e comer amoras. As amoras , acredite, eram mais difíceis de conseguir, pois a árvore ficava na beira da cerca, e no quintal de baixo tinha um cachorrão com jeito de poucos amigos. O risco valia a pena. As amoras eram gordas e doces. Quando não haviam rodinhas, a gente se virava com tocos de vigas de restos de construção. Duas ripas laterais, presas com prego, uma em cada lado, e na ponta, uma metade de lata de óleo. Vale dizer que naquela época, a gente achava latas de óleo retangulares; era só cortar a metade e tínhamos uma concha de trator ou escavadeira. As ripas laterais, amarradas num barbante, e com duas alavancas atrás, serviam, uma para levantar e baixar a concha, e a outra, para subir e descer o braço da cavadeira. Engenharia infantil básica. Quando dava, a gente colocava rodinhas no treco. Quando não, imaginávamos esteiras.

Lembro também da primeira bicicleta de verdade: uma caloi azul, usada, que meu pai comprou de um cara na rua que a gente morava. Eu e meu irmão estávamos ficando doentes por causa de uma bicicleta, e minha mãe dava uma força, até meu pai ficar de saco cheio e conseguir- imagino hoje com muito custo, coitado - comprar a tal bicicleta. Mas o mais incrível é que a gente nunca tinha tido uma bicicleta, portanto, era lógico imaginar que não saberíamos andar. Errado. Lembro que peguei a bike e já saí andando, de primeira, sem nenhum tombo. Lembro que eu costumava fazer malabarismos com ela: a rua Caracaxá acabara de ser asfaltada, e entre carrinhos de rolimã, eu descia a rua em pé na bike, com um pé no banco, outro no guidão. Hoje só de lembrar, o cabelo fica arrepiado. Dei muito trabalho ao meu anjo da guarda.

Com o tempo, passei a incrementar essa bike: era objeto de desejo de todos os moleques ter um "banco tigrão". Eu não podia, pois era caríssimo. Mas eu frequentava todos os ferro-velhos do bairro, e achava garfos de Caloi 10, com os quais eu prolongava os garfos da minha bike; entortei o guidão, deixando-o com jeitão de chooper, e com garfo estendido, a bike acabou virando uma roadster. Com essa bike, tempos mais tarde, ia junto com Mané, Chacrinha, Mingão e Edu às Palmas do Tremembé matar aula ou simplesmente "dar um rolê". Aventura que naquela época parecia inocente, e hoje nem sei se seria possível pra molecada de 13 ou 14 anos, dados os perigos do percurso: Subir a Major Dantas, entrar na Guapira, Depois Av. Tucuruví até o fim, passando pelo Hospital presidente e pegando a Av. Nova Cantareira até chegar lá embaixo no Tremembé... Nem sei se hoje em dia dá pra fazer esse caminho, e certamente não reconheceria o trajeto que tenho na memória de mais de 40 anos atrás.

Falar em Palmas do Tremembé, mais algumas coisas me vêem à mente: Tarcísio, meu irmão mais velho, de vez em quando passava na Casa Aerobrás, no centro da cidade, e me trazia algum Kit de avião para montar. Eu adorava. Passava a semana montando, e nos finais de semana a gente ia pras Palmas, pra fazer o bichinho voar. Aliás, acho que um pouco dessa habilidade que eu tenho de consertar as coisas, devo a ele e seus projetos de aviões. Eram aviões em escala, que, montados corretamente em madeira balsa e um papel especial, com uma camada de laca tornando-o impermeável, voava de verdade, movidos à elástico: um elástico percorria toda a estrutura interna do avião, e era conectado à hélice. Girava-se a hélice um zilhão de vezes no sentido oposto à tração, e quando soltava, a tendência do elástico era desenrolar-se, o que gerava o empuxo suficiente para o avião permanecer alguns minutos no ar. Outra coisa também relacionada às Palmas e meu irmão Tarcísio, é que ele tinha um opala marrom, com o qual me ensinou a dar os primeiros passos na direção de um automóvel. Lembro de pelo menos duas ocasiões em que ele me botou no volante daquela máquina maravilhosa nas Palmas do Tremembé tentando me ensinar a dirigir. Acho que conseguiu, pois nunca me envolvi em nenhum acidente. Então, tanto o professor como o aluno foram aprovados.

Ainda sobre as Palmas: com o tempo e a idade, com carta de motorista e fusquinhas, a gente acabou achando o lugar ideal pra matar aula e namorar nos finais de semana. Mas isso é outro capítulo.

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