Capítulo 18 - Uma Lettera 32 e o receptor galena

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Ainda na 6ª série, foi lançado, no Ligabue, um concurso para participação de todos os alunos. Consistia em pesquisar e discorrer sobre um tema previamente selecionado, e apresentar um trabalho com toda a pesquisa. Eu havia acabado de fazer o curso de datilografia, no Alexandre de Gusmão, numa saleta em cima do açougue, na esquina da Guapira com a Maestro Vila Lobos. Naquela época, final dos anos 70 e início dos 80, era praticamente mandatário que se fizesse esse curso de datilografia, se se quisesse arrumar "um bom emprego" num escritório. Por isso, lá em casa, não foi diferente. Acho que todos os irmãos fizeram. Assim que terminei o curso, apareceu essa oportunidade de participar desse concurso da escola, e meu pai resolveu então que eu deveria participar, e fomos ao Mappin, na praça Ramos de Azevedo, comprar uma máquina de escrever. Uma Lettera 32, pequenininha e portátil. Tenho certeza que ele tinha segundas intenções, já que a datilografia era tema importante na conquista de um emprego. Como eu tinha acabado de fazer o curso, estava uma fera no teclado, super afiado e muito disposto a por em prática minha mais recém-adquirida habilidade: datilografia. Comecei então a trabalhar nesse projeto. Muita pesquisa em biblioteca, que na época era a Mário de Andrade, no centro de São Paulo, onde eu ia fazer as pesquisas e, não tendo dinheiro para as "fotocópias", que na época eram caras, pois não existiam as copiadoras como hoje em qualquer esquina, tinha que copiar tudo à mão. Lembro que fui algumas vezes à biblioteca para pesquisa do assunto tema do meu trabalho – O Correio Aéreo Nacional – além de copiar tudo para depois "passar a limpo". Com todo o material o que eu havia pesquisado em mãos, toca pra lojinha da dona Marisa, comprar papel para a máquina de escrever. Lembro que para relatar um painel completo do tema, a história começava desde os tempos de Santos Dumont e chegava até as Forças Armadas, na Aeronáutica. Montei um pequeno centro de trabalho no meu quarto, com uma pequena mesinha perto da janela, onde ficava a lettera 32, juntamente com as anotações e as folhas em branco. Devo ter ficado uns quinze dias praticamente trancado no quarto, datilografando. Coisa boa é que, à medida que avançava, ia ficando cada vez melhor no teclado da maquininha. Não me recordo ao certo, mas o trabalho deve ter ficado com bem mais de cem folhas, todas datilografadas com tabulação corretíssima, e chegando perto do final do trabalho, eu estava um exímio datilógrafo. Fiz então uma capa super caprichada – eu tinha jeito pra desenho desde sempre – e ao terminar o trabalho, apresentei ao Professor Simão, que era o diretor da escola na época. Ele olhou para o fruto de mais de quinze dias de trabalho exaustivo, fez uma careta, e me devolveu o pacote. Não aceitou. A maquininha veio com um defeito de fábrica que não tínhamos percebido. A letra "R" aparecia como se fosse "rebatida", nas palavras dele. Era um tipo de falha que passou-me desapercebida e que, segundo ele, comprometia todo o trabalho. Por isso, ele não poderia aceitar para a inscrição. Ou eu refazia tudo, ou nada feito. Para refazer, eu talvez não tivesse tempo hábil. Além disso, teria que arrumar outra máquina de escrever. Então, como dizem, enfiei a viola no saco, baixei a cabeça e tive que engolir. Um fato positivo é que durante muitos anos eu sabia praticamente tudo sobre o Correio Aéreo Nacional.

Outro fato positivo é que tudo isso não foi em vão; depois de um ter saído do meu primeiro emprego, na Copas, e graças a uns contatos com um vizinho da Caracaxá, que era gerente numa agência do Bradesco, consegui uma entrevista de emprego, desta vez numa agência da Rua Paula Souza, no Brás, em São Paulo, pertinho do mercadão central. E naquela entrevista foi-me aplicado também um teste de datilografia. Eu pude usar então todo meu expertise em datilografia. Foi a primeira vez que fiz algum teste desse tipo, e como não havia tempo determinado para finalizar o teste, procurei caprichar ao máximo: Tabulação, espaçamento e margens; contava os espaços para deixar o texto justificado certinho, e voilá: aprovado! Soube depois de um tempo que esse foi o melhor teste já feito naquela agência. Fui então trabalhar como operador de Telex, como descrevi num dos capítulos anteriores. E a maquininha ficou em casa, quase sem uso. Eventualmente, meu pai sentava-se comigo e me pedia para datilografar alguma carta, que ele mandava a seus parentes em Portugal.

Lembro que nessa época, também inventamos, eu e o Mané, um meio de comunicação pouco usual. A gente morava a talvez um quarteirão de distância, talvez um pouco mais. Linha telefônica era artigo de luxo, e poucas pessoas tinham. Lembro que a nossa foi comprada como investimento, quase no preço de um automóvel. Então, conseguimos um par de rádios walkie-talkie, que, sinceramente, não sei de onde vieram. Talvez o Mané se lembre, mas eu não. Fato é que ficava um com ele, em sua casa, e o outro ficava comigo, no meu quarto. Lembro que no meu aparelho, para melhorar a recepção, coloquei uma "extensão" de antena: um arame, enrolado na antena do aparelho, que saía pela janela do quarto e subia até acima do telhado , pois ficaria assim virado para a casa do Mané. E a coisa funcionava. Mas como eram movidos à pilha, e naquela época não haviam ainda (nem imaginavam) as baterias recarregáveis, era complicado deixar os rádios constantemente ligados. A gente combinava um horário para ligar, e quase sempre acabávamos esquecendo. Aí acabamos desistindo do projeto, depois de um tempo.

Nessa época, também, havia nas bancas de jornais uma publicação que era voltada para o público fã de eletrônica. Trazia pequenos projetos eletrônicos fáceis de fazer, e eu gostava de acompanhar. De vez em quando, montava alguma coisa. Certa vez, numa dessas revistas, foi apresentado o projeto de um "rádio Galena", um dispositivo que funcionava sem baterias, continuamente, e trabalhava na frequência AM. Basicamente, um fone de 300 ohms, um capacitor variável, uma cápsula de cristal e uma antena que mais parecia um varal. Resolvi que iria fazer um – e fiz. Porém, como a gente morava na periferia, a recepção das rádios que, naquela época, ficavam todas no centro da cidade era muito ruim, e eu tive que colocar uma antena externa. Arrumei um rolo de arame de cobre e amarrei a ponta dele numa ponta do telhado e a outra na outra ponta, no final do telhado de casa. Então a recepção melhorou muito. Eu deixava a cápsula – que funcionava como alto falante - embaixo do travesseiro, e assim dormia ouvindo música todo dia. Lembro que eu sintonizava a Excelsior, uma rádio que só tocava música, geralmente os lançamentos da época, e quase não haviam intervalos comerciais. Fiquei com esse dispositivo por um tempo, até que meu pai deve ter ouvido algum comentário de algum vizinho e cismou que aquele monte de fios em cima do telhado poderia atrair raios. Resumindo: me fez desmontar tudo. Mais um gênio incompreendido...

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