Depois que o nosso vizinho Sr João, aquele que era o "médico" da vila se mudou, a casa foi vendida, e mudou-se para lá uma nova família, um casal com um casal de filhos. Sempre tivemos a desconfiança de que o Sr. João, por ser alemão, era algum tipo de médico do regime nazista que estava escondido no Brasil, mais especificamente na casa do lado da minha. Ele era manco de uma perna, usava bengala, e dizia que aquilo era "ferimento de guerra". Isso já levantava suspeitas, mas a gente nem ligava, pois até onde me lembro, ele era muito bonzinho e amável com todos. Quando ele morreu, meu pai acabou descobrindo que o nome dele não era João. Só que nenhum de nós nos lembramos mais do nome verdadeiro. Isso faz muito tempo, e acabou não tendo nenhuma importância, se ele era ou não era foragido ou escondido. A única coisa que ficou foi essa incógnita.
Por outro lado, a família nova que mudou-se para a casa ao lado era bem diferente, e logo fizemos amizade com o Ricardo, que passou também a fazer parte da gang. Como nossas casas eram coladas, separadas por um muro baixo, esse muro virou local de acesso entre as casa, e quando a gente não passava de uma pra outra, ficávamos em cima dos muros conversando e brincando. Na entrada da porta da frente da casa do Ricardo havia uma escada, com uns cinco ou seis degraus, e eram ladeados por duas guarnições, uma de cada lado, como se fossem corrimãos, só que bem baixos, e eram cobertos por ladrilhos. A gente fazia aquilo de escorregador. E por falar em escorregador, na nossa casa, com a última reforma, foi criada a varanda da frente que também era coberta por piso de cerâmica. E lateralmente na casa, do lado direito de quem entra, um corredor também com piso de cacos de cerâmica, muito comum nos anos 70, corredor esse que dava acesso à parte de trás da casa e à escada para o quarto de bagunças. Quando chovia ou a mãe estava lavando esse pedaço, a gente jogava sabão nesse corredor e na varanda e eles viravam um escorregador: a gente ia lá no fundo perto da escada, pegava embalo e vinha escorregando até o portão da frente, geralmente de joelhos. Entre a varanda e o corredor, havia um portão, e embaixo desse portão havia um degrauzinho, coisa de 2 centímetros, que a gente devia evitar ao escorregar, principalmente se fazíamos isso de joelhos, correndo o perigo de arrancar as tampelas, pois o degrau tinha um ângulo vivo, e o pedreiro não havia desbastado o canto, então aquilo meio que virou uma faca. Mas a gente sempre conseguia pular. Vinha escorregando, e chegando perto, dava um impulso pra cima, de modo que os joelhos não pegassem no fatídico degrau. Até o dia em que o Ricardo, vindo escorregando de pé, acho que se esqueceu do degrau, deu uma topada e caiu de boca no chão, na varanda. Quebrou os dois dentes da frente nessa brincadeira, além de rachar também o queixo.
No quesito acidentes, outro que lembro foi com o Rafa, meu irmão. Na casa do Kazuo tinha uma mesinha na varanda, com alguns pneus em cima. O quintal era cimentado, e a gente costumava jogar bola ali. Numa dessas partidas, a bola caiu dentro dessa pilha de pneus. O Rafa então foi pegar a bola, e ao tentar subir na mesinha, acabou escorregando com o pé, e a coxa acabou "deslizando" pela beirada da mesa, onde havia um prego. Resultado: um rasgo considerável na parte interna da coxa, feito pela cabeça do prego. Aquilo sangrava horrores, e como a gente morria de medo da surra da mãe, eu lembro que corri em casa, peguei um rolo de esparadrapo e meio que "remendei" a perna dele. Lógico que quando ele entrou, a mãe viu o ocorrido, mas como já havia sido "tratado", acho que só fez um curativo. Além, é claro, do tratamento com o fatídico "mertiolate", o terror de todas as crianças. Fato é que, até onde me lembro, ele ainda tem a cicatriz na perna para confirmar a história.
O pai do Ricardo, sr. Flávio, tinha um Volksvagen TL, no qual eventualmente levava a gente pra passear aos sábados. Geralmente íamos eu, o Rafa, o Kazuo e Ricardo no Horto Florestal, onde a gente passava a tarde. Lembro de um episódio bobinho, mas que ficou na lembrança – apenas para mencionar como a memória da gente é impressionante: Num desses passeios, lembro que vínhamos de carro numa descida numa rua do bairro, e à frente do carro haviam duas meninas andando no meio da rua, meio distraídas. O sr. Flávio deixou o carro, que estava em "ponto morto", chegar bem pertinho das duas e em vez de buzinar, botou a cabeça pra fora e deu um baita assovio. Ele disse depois que não havia buzinado pra não assustar as meninas, mas acho que o susto foi maior com o assovio. Elas deram um pulo direto pra calçada, e a gente, incluindo ele, riu muito. Outro vizinho que tinha carro, isso antes do Ricardo haver mudado pra vila, era o sr. Domingos. Ele morava na casa do outro lado da nossa e tinha um fusca vermelho. Lembro que, quando a gente estava jogando bolinha de gude ou brincando com os Matchbox em frente de casa - e a gente jogava e brincava até escurecer - ele chegava com o carro e deixava-o na rua com os faróis acesos pra iluminar nosso campo de jogo ou nossa pista de corridas. Até uma vez em que fez isso e deve ter esquecido os faróis acesos por muito tempo e o carro ficou sem bateria. Depois disso, acabou a iluminação artificial no nosso estádio.
Outra de quem me lembro era a Dona Maria, cujo marido, Sr. Osvaldo devia trabalhar com vendas, e moravam na última casa da viela. E por ser a última casa, fazia divisa com o terreno dos sobrados, na rua de cima, com um muro que a gente pulava pra acessar o terreno. Das vendas do Sr. Osvaldo, só lembro que ele vendia chaveiros, ou era representante comercial de alguma fábrica de brindes, que naquela época eram em forma de chaveiros. Se vendesse outra coisa, eu desconhecia. Eu gostava mesmo era dos chaveiros. E quando a gente ia na casa deles - e a gente sempre ia, pois a minha mãe era amiga da dona Maria, ficávamos encantados com a quantidade e a variedade de chaveiros que ele tinha. Às vezes ele dava alguns com defeito de fabricação pra gente, e como não estávamos acostumados com brinquedos industrializados, era uma alegria. Lembro também que a dona Maria só me chamava de "Zezinho", e até hoje não descobri o motivo. Acho que ele nunca aprendeu meu nome ou talvez pela idade, não se lembrasse dele. E todo problema que ela tinha, vejam só, desde aquela época, com a televisão e a antena por exemplo, ela chamava o "Zezinho" aqui pra arrumar. Eu devia ter uns dez anos, acho. Lembro de várias vezes em que fui na casa dela arrumar a antena, que na época era presa num cano altíssimo, e a gente tinha que ficar virando para achar a melhor recepção. A dona Maria e o Sr. Osvaldo tinham três netos, com os quais a gente também brincava e que, pelo período em que moraram lá, também fizeram parte da gang. Mudaram-se, e nunca mais tivemos contato.
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Lembranças
Non-FictionUM APANHADO DE ALGUMAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Escrever essas lembranças tem me dado uma enorme alegria. Fazendo isso, relembro dos áureos tempos de criança, quando a maior preocupação era de que modo e com qual brincadeira gastaria me...