Capítulo 25 - Um Ogro no marketing hoteleiro

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Em 1987, eu ainda estava trabalhando no cursinho. Estive lá por uns bons 4 anos. Tanto tempo, que já estava me tornando um daqueles "velhacos' que dormiam no meio das pilhas de papel, para não ser encontrado. Nesse período, a gente já estava com o casamento marcado. Resolvemos a data na casa da Heloisa, uma daquelas amigas da Rô que iam de carona com o Hirô para casa. Eis que um belo dia o André me fez uma indicação de um amigo que trabalhava numa agência de propaganda e estava precisando muito de um cara pra trabalhar lá com ele. Até então eu era apenas um desenhista trabalhando numa gráfica; eu gostava, era legal, mas o meu sonho era entrar oficialmente na área de propaganda. Então fui lá falar com o Martins. Ele era o responsável pela área de comunicação da MKT, uma agência de propaganda na Avenida Pacaembu que funcionava numa casona bonita bem próxima ao estádio do mesmo nome, e que atendia exclusivamente o setor de hotelaria. Tinham vários clientes, hotéis espalhados pelo estado de São Paulo. Acredito que tenha gostado de mim. E eu vi ali a tão aguardada oportunidade de entrar no segmento que eu sempre havia sonhado: o das agência de propaganda – acredito que o sonho de todo desenhista/publicitário. Apesar de tanto tempo, lembro da nossa primeira conversa. Ele me mostrou a agência, me mostrou como as coisas funcionariam, salário, horários, e tal. Nessa conversa, lembro que minha maior preocupação era que eu e a Rô já estávamos com a data de casamento marcada, e que eu não poderia sair do cursinho onde era o supervisor, pra "entrar numa furada". Martins me disse então que não poderia garantir nada, mas que se dependesse dele, eu ficaria lá por um bom tempo. Movido então pela minha vontade de entrar na área, pedi demissão do cursinho e comecei a trabalhar na MKT. O Martins era um sujeito legal, grande profissional, carismático e sempre de bem com a vida. Formávamos um time, e começamos a nos dar bem, tocando nós dois o departamento de arte da agência. Como funcionava numa casa, havia lá uma cozinha, e a gente fazia vaquinha entre todos da agência pra fazer uma comprinha, e a dona Márcia, a copeira, fazia o almoço da gente. Almoçávamos todos juntos na mesa da sala de reuniões. Quando não rolava o almoço, havia ali perto, bem juntinho da entrada do estádio, uma barraca que fazia um cachorro-quente fantástico, e super-barato. Era ali que almoçávamos. Outras vezes, a gente arriscava numa padaria, também ali perto, na rua Alagoas, onde havia uma infinidade de doces portugueses e uma outra enormidade de salgados. Lembro de uma ocasião em que fomos, eu e o Martins, visitar um cliente usando o carro do chefe. Era um opala muito bonito, e naquele dia, talvez para impressionar, foi até mandado lavar. Chegamos no cliente, paramos o carro numa rua transversal, pois não havia lugar para estacionar nas proximidades. Fizemos nossa apresentação e fechamos contrato. Na hora de voltar, todo contente, o Martins foi dar a partida, e nada do bichão pegar. Tenta daqui, tenta dali, e nada. Motor de arranque havia decidido que era hora de parar. Como quem não quer nada, eu meio que caçoando, disse que eu faria o carro pegar, se ele tivesse uma chave de fenda. Eu havia feito, na época do colegial, um curso básico de mecânica automotiva, numa parceria da escola com o SENAI. Nada grande coisa. Naquela ocasião, a turma havia desmontado o motor de uma Kombi, e o curso era basicamente isso: ao desmontar o motor, a gente aprenderia a função de cada componente. Meu irmão também já havia tido um Opala, e eu sabia que dava prá dar a partida no motor de arranque provocando um curto-circuito ou ligação direta nos terminais. Contava com isso pra ligar o opalão da agência, mas precisava de uma chave de fenda pra dar o curto-circuito. Achamos uma no porta-malas, e o Martins, não acreditando, me disse que se eu fizesse o carro pegar, ele me pagaria um milk-shake. Pedi pra ele sentar ao volante e que desse a partida. Incorporando o espirito do McGuiver, aquele cara das séries de TV que fazia um explosivo com um chiclete e um palito de fósforo, provoquei o curto, e o carro pegou. Tocamos viagem. Achando que estávamos voltando pra agência, fiquei curioso quando percebi que o caminho estava errado. Ele estava me levando no Joaquin's, uma lanchonete na Joaquim Floriano pra pagar a aposta, da qual eu nem lembrava mais. Um Milk-Shake fantástico, tão bom que ainda hoje lembro. Virei fã por um tempo, especialmente quando, alguns anos mais tarde, passei a trabalhar nas cercanias da Vila Nova Conceição. O Martins era um cara "de lua". Tinha suas fases. E numa conversa sem grandes pretensões, um dia, eu citei aquela loja na Rua do Seminário, que vendia miniaturas. Ele cismou de ir lá conhecer, e fomos. Acabou ficando aficionado em trens elétricos, e no mesmo dia, comprou um kit completo com trilhos, locomotiva e vagões, numa escala reduzida, menor que a HO da qual eu já era fã. Ele disse que tinha que ser bem pequeno, pois montaria o trem na estante da sala dele. Tempos depois, na única vez em que fui à sua casa, para o aniversário de uma das suas filhas, o trem estava realmente lá, na estante. Também era cinófilo. Viciado em cinema. Na época, não eram todos que já tinham vídeo-cassete em casa. Eu mesmo, não tinha, e era louco pra ter um Panasonic G21. Mas como as importações eram proibidas, teria que arrumar alguém para trazer ou ir eu mesmo buscar um no Paraguai, como contrabando. Demorei muito pra ter meu primeiro vídeo cassete. Ainda assim, toda sexta-feira, eu ia com ele na Blockbuster, pertinho dali, onde ele alugava pelo menos dois filmes para o final de semana. No cinema, toda estreia, lá estava o Martins, na primeira sessão. E como a gente dispunha de tempo livre, pois éramos nós que fazíamos nosso horário, invariavelmente, comecei a ir com ele nas estreias, geralmente na Av. Paulista, no Center 3 ou em um dos Cine Gazeta, Gazetinha ou Gazetão. Graças a ele tornei-me também, além de cinéfilo, viciado em cinema, e por um bom tempo, mais tarde, virei frequentador assíduo dos cinemas daquela região. Lembro inclusive de quando o filme "Je Vous Salue, Marie" de Jean Luc Godard estava para estrear em São Paulo, mas na época teve sua exibição proibida na cidade. O filme estava gerando tanta polêmica, que o Martins precisava assistir. Sem pestanejar, fomos assistir à estreia do filme na cidade de Santos, fazendo um bate-e-volta só pra poder ver se a polêmica era válida. Sinceramente, nem lembro mais do roteiro, nem se valeu a pena tamanho sacrifício para assistir.

O Martins tinha um Fiat 147, azul, e quando não achava lugar para estacionar no quintal da agência, tinha que deixar o carro na rua, numa das travessas da Pacaembu. Eu não tinha esse problema, pois ia trabalhar de ônibus. Pegava o "177C - Clínicas", na Júlio Buono, e descia na porta da agência. Quanto aos carros, as vagas para estacionar eram disputadas, pois o pessoal dos escritórios da região também estacionavam nas cercanias da agência. Fato curioso, e que ao lembrar me deixa até hoje impressionado, é que para evitar ficar manobrando na vaga, geralmente apertada, ele simplesmente embicava o carro na vaga, puxava o freio de mão, descia, ia até a traseira do carro e levantava a traseira do carro pelo para-choques, levando-o até perto da calçada e colocando então corretamente na vaga. Comecei a chama-lo de "ogro" por causa disso.

Como a gente atendia exclusivamente a área hoteleira, acabei conhecendo muitos donos de hotéis, e um deles, ao saber que meu casamento estava próximo, ofereceu a hospedagem de lua-de-mel como presente de casamento. Era um hotel 5 estrelas em Ilhabela, e lógico que aceitei. Dona Rosangela também gostou da ideia, e ficamos felizes em termos conseguido – de graça - um lugar legal para passar nossa lua-de-mel. Casaríamos no sábado, 16 de maio, e dia 17 iriamos com meu fusca para Ilhabela. No dia 15, sexta-feira à tarde, fui até a loja buscar o terno que eu havia alugado para a cerimônia. Na verdade, não um terno, mas um "summer" branco, modinha entre os noivos na época. Era pra ser rapidinho, ir até a Av. Rebouças e voltar pra Av. Pacaembu. Mas, como digo, alegria de pobre dura pouco, e o fusca resolveu quebrar no meio do caminho na volta pra agência. Teve que ir pra casa de guincho, direto pra oficina e, sem carro, nossa lua-de-mel em um hotel 5 estrelas em Ilhabela foi pro saco... Acabamos indo para São Vicente, de carona, para um apartamento de uma amiga de trabalho da Rosangela.

Passados alguns meses, a MKT decretou falência. Era comandada por dois irmãos, o Silvio, na parte administrativa, e o Beto, na parte financeira. A gente já vinha estranhando a falta de vaquinhas para os almoços, a falta de cafezinho e o sumiço da copeira e da faxineira. Com a falência, nossos salários, que já estavam atrasados, também sumiram. E fomos então chamados à sala do Beto, para uma tentativa de acerto. Ele começou expondo as dificuldades financeiras, e coisa e tal, mas não falava nada de nos pagar. E a casa frase, a cada embromação, o Martins ia ficando cada vez mais vermelho, a veia no pescoço engrossando e pulsando, até que, num ímpeto de raiva, ele simplesmente pegou a mesa do Beto pela beirada e a jogou para o alto. Nada difícil, para quem levantava um Fiat 147. Passou a um palmo do meu nariz. Mesa grande, pesada, de madeira, acabou voando pelos ares e indo cair num canto da sala, com tudo que tinha em cima – papéis, telefone, agenda, porta-canetas e tudo o mais – se espalhando pela sala. Ato contínuo, voltou-se para a porta, e foi destruindo tudo que havia no caminho. Primeiro, dentro da sala do Beto: armários, vasos, decoração... depois continuou até chegar à recepção. Lembro que era uma casa térrea, com as paredes e portas de madeira e vidro, e tudo o que havia no caminho e pudesse ser quebrado, literalmente, foi. E eu correndo atrás, tentando segura-lo. Mas quem consegue segurar um ogro em fúria? E assim foi até a recepção, onde havia uma porta de vidro temperado que ele atravessou sem abrir. Chegamos na parte de fora, e por sorte o carro do Silvo não estava lá, senão teria sido destruído, também. Mas lembro que ele chegou ainda nervoso junto ao pobre fiatizinho, bufando, e num último acesso de raiva, desferiu um soco no teto do carro que afundou, deixando a marca do punho fechado no teto do carrinho. Tratei de tira-lo dali, levando-o pra barraca de cachorro quente a fim de acalmar-nos – mais ele do que a mim mesmo. E assim encerrou-se minha passagem pelo ramo hoteleiro. Os salários atrasados, bem como direitos trabalhistas, férias, décimo terceiro, até hoje não recebi. Nem nunca mais soube dos dois irmãos trapalhões que conseguiram afundar uma agência cheia de bons profissionais e que tinha tudo para dar certo. Com relação ao Martins, tempos depois voltamos a trabalhar juntos em outra empresa, assunto que certamente será descrito num novo capítulo. Mas apesar de minhas muitas tentativas frustradas de localiza-lo, após esse segundo período, nunca mais tive notícias. Cheguei a enviar várias mensagens para todas as pessoas que achei nas redes sociais que tivessem o mesmo nome e sobrenome das filhas dele tentando encontra-lo, mas em vão. Talvez o Ogro tenha voltado para a caverna e não saiu mais. 

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