Capítulo 11 - The Persuaders e as latas de marmelada

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Como eu citei no começo do primeiro capítulo, a maioria das minhas melhores e mais antigas lembranças são do tempo da escola, mais especificamente da turma do Ligabue. Lembro de nomes e rostos, e posso citar o nome completo da maioria dos colegas que estudaram comigo, ao longo dos anos. Porém, minha primeira escola foi o Franklin Augusto de Moura Campos, na Major Dantas esquina com a Julio Buono. Comecei cedo, com 6 anos, já que completaria 7 em maio. Do Franklin, lembro até – acredite – do primeiro dia de aula, e de como minha mãe me acompanhou até a escola para me mostrar o caminho. Ela me deixou lá e enfatizou que para voltar era só seguir o mesmo caminho em sentido contrário. Não haviam avenidas movimentadas para atravessar, e a escola ficava a uns 5 quarteirões de distância. Então, foi tranquilo. De lá, lembro de alguns amigos e principalmente da minha primeira professora, dona Elisabeth, que todo mundo passou a chamar de gatinha, pois ela frequentemente usava um gorro que tinha a forma das orelhas de um gato. Lembro também da brincadeira que a molecada fazia na hora do recreio, época em que não havia lanche, mas praticamente um almoço. Era servido em pratos de louça onde se viam as iniciais em azul: PMSP – Prefeitura Municipal de São Paulo - e que a molecada lia como "Pobre Mendigo, Sempre Pedindo". A gente tinha macarrão com salsicha, pão com manteiga, bolachas e leite com Toddy. Mas o que marcou mesmo foi a sopa de Feijão. Adorava, e sempre que a gente podia, repetia o prato. Ainda hoje gosto, com bastante molho de pimenta. Tínhamos na escola até um consultório de dentista, que alguns alunos frequentavam nas emergências. As campanhas de vacinação eram na escola, e a gente tomava vacina "de revólver". De uma delas, assim como a maioria das pessoas, tenho a marca no braço até hoje. Naquela época, não havia preconceito, e como não canso de citar, eu era o "quatro olhos", por causa – lógico - dos óculos. Mas tínhamos também o Palito, o Neguinho e o Salsicha, entre outros. Lembro de um amigo cujo nome completo lembro até hoje, o Neville, com o qual, apesar de haver procurado muito nas redes sociais, nunca mais tive contato. E nós dois nos chamávamos de "Persuaders", por causa da série de TV com Tony Curtis e Roger Moore, que havia há pouco estreado na tv brasileira e à qual eu não assistia, pois TV em casa não lembro se já tinha, nessa época. Mas o Neville era "rico", eu achava. Até hoje não sei qual dos dois eu era: o Toni Curtis ou o Roger Moore. 

O Franklin fazia fronteira, na parte de baixo com um córrego, e na parte de trás da escola havia um declive gramado, que a gente costumava descer montado em caixas de papelão, escorregando pela grama

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O Franklin fazia fronteira, na parte de baixo com um córrego, e na parte de trás da escola havia um declive gramado, que a gente costumava descer montado em caixas de papelão, escorregando pela grama. A gente fazia isso inclusive nas férias escolares, quando então levávamos tábuas especificamente preparadas para esse fim. Entrávamos escondidos pelos buracos no alambrado, ou então pulávamos o muro do posto de gasolina vizinho à escola. Outras vezes, quando o mato estava alto, a gente fazia armadilhas no meio da trilha: Amarrávamos duas touceiras de mato, na parte de cima, e ficávamos esperando os moleques que vinham correndo enroscarem o pé nesse emaranhado, tropeçar e descer rolando a ladeira de grama... No córrego da parte de baixo, a gente costumava fazer "expedições", pulando o muro da escola e percorrendo o percurso desde ali até a Gustavo Adolfo, beirando o barranco. Qual o sentido? Nenhum. Nunca achamos nada interessante, nem lixo, nem pneus usados. Os tempos eram outros. A dona Elisabeth foi minha professora no primeiro e no quarto anos, e lembro de uma ocasião em que ela reuniu toda a molecada da 4ª série numa parte da escola em que havia um tipo de "caixa de areia", pegou três ou quatro moleques, eu entre eles, e mandou cavar pequenos buracos, fazer montinhos de areia, uns separados, outros próximos um do outro, valetas, essas coisas, tudo isso para nos introduzir à Geografia e relevo, numa aula super didática. Tanto que lembro disso até hoje. Naquela época a gente se conhecia e se chamava ou pelo sobrenome ou por algum apelido que "pegasse". Sou chamado de Doutel pelos amigos da velha guarda até hoje. Fato curioso, havia no Franklin o Jarrão, um amigo que o destino separou mas acabou nos aproximando novamente: Numa bela manhã de sábado, depois de 50 anos, aparece na minha loja um sujeito com a esposa dizendo que havia mudado para Jarinu e precisava comprar uma antena. Nos apresentamos, ele me disse seu primeiro nome e fechamos negócio numa antena. Parti para outra tarefa, e a Rosangela - minha esposa – ficou fazendo o cadastro dele. Quando ele citou o nome completo, eu, ouvindo o sobrenome, tomei um susto e dei um grito: Jarrão? Ele, mais assustado que eu, arregalou os olhos e disse que havia muito tempo ninguém o chamava por esse apelido. Fizemos as apresentações e demos muita risada relembrando daquela época, e notamos o quanto o mundo é pequeno. Ele disse que não se lembra de mim, na escola. Mas eu lembro dele. Era um dos vilões dos "Persuaders". Estamos novamente em contato.

Terminada a quarta série fui então para o Ligabue. Posso dizer que dei sorte, pois naquele ano acabara de ser revogado o "exame de admissão", um tipo de vestibular para poder se matricular no ginasial, e pelo qual eu não precisaria passar, pois de acordo com meus irmãos e amigos mais velhos, a coisa era brava. Escola nova, novos amigos. Esses são um capítulo à parte, e vale dizer que a maioria da turma ainda mantem contato, graças à tecnologia e às redes sociais. No Ligabue cheguei a ter aulas de francês, na quinta série, e aprendi um pouco nessas aulas. Com o tempo e curiosidade, dei uma melhorada no idioma, e acabo me virando um pouco. Tínhamos também aulas de música, onde aprendíamos os conceitos básicos da pauta musical: mínima, semínima, cheia, colcheia, semicolcheia, entre outras nomenclaturas das quais nem me lembro, pois, como disse, uma grande frustração é não ter nunca conseguido aprender a tocar um instrumento. Mas lembro que nas aulas de música, a gente teve, uma vez, que formar uma "banda" musical, onde nós mesmos tínhamos que fazer nossos instrumentos. O mais comum era o pandeiro, que era feito com uma lata de marmelada e tampinhas de refrigerantes cuidadosamente desamassadas uma à uma e com um furo no meio, pelo qual a gente passava um arame e amarrava na lateral previamente cortada da lata de marmelada. Outros faziam tambores com baldes, tendo inclusive o cuidado de inserir alguma mola no interior, para produzir maior vibração. Cheguei a fazer um afoxé, um tipo de chocalho com casca de coco seco rodeado por contas amarradas com arame. No dia da apresentação, ficávamos todos os componentes da banda – eram várias por classe – enfileirados lado a lado no palco, todo mundo sem graça e morrendo de vergonha, executando a música escolhida para uma audiência extremamente exigente: os outros alunos. Se isso era divertido, havia a contrapartida: éramos também obrigados a decorar o Hino Nacional, da Bandeira, da República, do soldado e o que mais houvesse. Tínhamos a temida "chamada oral", quando a professora botava a gente na frente da classe e mandava recitar algum trecho de algum hino específico. E ai de quem não soubesse. Era zero. Lembro de uma vez em que o Mané, grande amigo, foi chamado numa dessas ocasiões. Ele é Venezuelano, havia chegado há poucos anos no Brasil, e na hora de recitar o hino, não sabendo, justificou dizendo que a pátria dele era a Venezuela, e que se ela quisesse, ele cantaria o hino de lá. A professora deu-lhe a maior reprimenda (na época era reprimenda. Hoje seria "esporro"), e disse que "Pátria é a terra que nos acolhe". Essa frase ficou gravada em minha memória, e acho que na dele também, pois hoje vejo-o como um grande patriota. Ah, sim... graças a ela, lembro até hoje da maioria dos Hinos Nacionais. Com a mudança de grau, vieram também novas matérias, que hoje nem constam mais do currículo escolar: Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica, por exemplo. Outra da qual me lembro era "técnicas comerciais", onde a gente aprendia desde o preenchimento de cheques até leis alfandegárias. Matemática para mim era um suplício. Tanto que meus pais chegaram a contratar, no período de provas, uma vizinha para me dar "aulas particulares", pra que eu não levasse bomba no final do ano. Acho que o suplício foi maior para ela do que para mim... Hoje me dou bem com a matemática. Nessa época e meio sem querer, aprendi uma forma bem legal de estudar: movido talvez pela preguiça de escrever, e como eu tinha um gravador, eu lia a matéria ao microfone para ficar ouvindo depois e assim "decorar" a matéria. Porém, só o fato de estar lendo e tendo que prestar atenção ao que lia, já que estava sendo gravado e não poderia conter erros, permitia que eu assimilasse, sem perceber, o assunto em minha mente, e acontece que eu passei a me dar muito bem nas provas. Claro que não funcionava com as ciências exatas, mas as matérias de humanas e biológicas tirava de letra. Talvez por isso sempre fui muito bem nessas duas áreas. Lembro do professor Élcio, de ciências que, naquela época, já havia feito uma adaptação na sua Variant para rodar com gás de cozinha. Um cara muito além do seu tempo. Mas o que eu gostava mesmo era das aulas de inglês, que na sexta série, substituíram as de francês. Gostava primeiro, porque a professora era muito gata, e todos os moleques eram apaixonados por ela. Talvez por ela ser gata, a gente prestava muita atenção à sua aula. Depois, porque eu gostava de música - mas como eu dizia: de MPB: Música Popular Britânica – e tinha a maior vontade de traduzir as letras. Então, me identifiquei bastante com o idioma. Infelizmente o ensino público não era lá grande coisa, e tempos depois tive que me virar por conta própria, para aprender o pouco que sei.

Continua no próximo capítulo.  

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