Capítulo 24 - Fogueiras, batatas assadas, chuva de ovos e adeus à infância

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Como eu dizia no início, a gente ficava na rua até escurecer. Voltava da escola, comia alguma coisa e já saía pra encontrar os amigos, ou ia pra casa de alguém fazer algum trabalho escolar. Lembro dos mapas de geografia, que a gente era obrigado a fazer, e eu como sempre gostei e levava jeito para desenho, caprichava ao máximo. Para fazer os trabalhos a gente tinha que ir antes à lojinha da dona Marisa, na rua da Esperança, pra comprar o papel almaço e as sulfites, e quando não fazíamos o trabalho no meu quarto das bagunças, eu ia na casa do Mané. As irmãs dele, mais velhas, sempre acabavam ajudando a gente. Lembro particularmente de uma dessas vezes, onde a gente tinha que fazer um mapa do Brasil detalhando os estados e capitais, cada um com uma cor. Apesar de na época existirem gabaritos com o contorno do mapa, desta vez resolvi inventar: para não ter que detalhar TODO o litoral, cheio de curvas e reentrâncias, inventei uma técnica que deixou o mapa muito mais bonito: decidi "esfumaçar" toda a linha de fronteira, inclusive o litoral, usando lápis de cor. Ficou realmente muito bonito, e parecia que o mapa havia sido recortado e colado sobre outro papel, como se fosse em relevo. Apesar de bonito, tomei pau, pois o objetivo do trabalho era DETALHAR o mapa, e com essa minha técnica eu havia perdido todos os detalhes. A professora não levou em consideração o trabalho artístico demandado, mas avaliou somente a parte técnica...

Terminados os trabalhos ou tarefas escolares, a gente ia pra rua. Jogar bola, taco, empinar pipa, valia qualquer coisa pra não ficar em casa. Só nos lembrávamos de voltar quando a mãe chamava. E por questão de educação, não precisava chamar duas vezes. Muitas vezes, a gente jantava e voltava pra rua. Era comum, na turma da Caracaxá, a gente fazer fogueira à noite, geralmente perto da oficina do Ferreirinha. Saíamos pela vizinhança catando tudo que pudesse ser queimado. E junto a essas fogueiras, a gente ficava agachado batendo papo até a hora de ir dormir. Lembro uma vez que o Katá resolveu roubar umas batatas no armazém da dona Inês pra gente assar na fogueira. Todo mundo duvidou, e ficamos imaginando como ele iria fazer isso. Na época ele tinha um cabelão estilo "blackpower". Foi até o armazém, e numa distração da dona, pegou duas ou três batatas, colocou no alto da cabeça, no meio do cabelão e saiu tranquilamente, sem mexer a cabeça. Voltou no grupo de mãos vazias, fazendo cena com cara de triste, e todo mundo começou a zombar dele. De repente, ele abaixou a cabeça e as batatas caíram no chão... Risada geral. No fim, acabamos realmente comendo batatas assadas na fogueira. A Caracaxá era multicultural. Havia a Alemoa, o Mané e seus irmãos, Dani e Virgílio, que a gente chamava de "Rilo", venezuelanos, muitos descendentes de japoneses, e até ingleses. Em frente ao Ferreirinha, havia a família do André e do Anton, dois ingleses. André tocava violão, e lembro dele na beira da fogueira tocando violão e imitando Bob Dylan. Eles tinham uma mesa de pingue-pongue na garagem, e algumas vezes, por falta de coisa melhor a fazer, a gente passava a noite de sábado jogando pingue-pongue. Na época, eu tinha mais contato com o Anton, que era mais novo. Mas o André, depois de um tempo, acabou tornando-se colega de trabalho e até um meio que sócio, num estúdio que a gente montou na casa dele, quando as coisas começaram a ficar pretas no sentido profissional. Foi na época do Plano Collor, e a empresa na qual havíamos trabalhado fechou. André havia saído antes, e já estava em carreira solo. Quando a empresa fechou, eu fiquei meio "desnorteado", fiz alguns contatos, e consegui alguns trabalhos para fazer em casa, onde eu montei meu pequeno estúdio. Pegava alguns free lancers, mas não era suficiente. Como ele já estava há mais tempo nessa pegada e tinha mais e melhores clientes, ele meio que me "acolheu", e passamos algum tempo trabalhando juntos nesse estúdio – um quartinho na casa dele. Esse assunto provavelmente será abordado mais adiante, pois há muitas histórias a serem contadas desse período em que trabalhamos juntos nessa empresa.

Moravam também na Caracaxá, ao lado da casa da minha Tia Elvira, duas senhoras cujos nomes não consigo lembrar. Talvez pelo fato delas serem muito chatas e não terem contato com ninguém. Deviam ser duas irmãs solteiras, já com idade avançada, e muito, mas muito rabugentas. Eram também umas das que mais reclamavam dos carrinhos de rolimã, junto com a Dona Aina, quando estes viraram febre na rua. A molecada adorava futebol, e invariavelmente o campo, que era bastante grande, do tamanho da rua, inevitavelmente ficava uma parte em frente à casa delas. Mas a gente precisava sempre tomar muito cuidado com os chutes. Assim como a dona Belinha, elas tinham a péssima mania de rasgar todas as bolas que caíssem no seu quintal. E uma vez, aconteceu isso com nossa bola "Dente de leite" recém-comprada na lojinha da dona Marisa. Apesar de ser de plástico, era uma das melhores bolas no mercado e novinha, foi rasgada pelas irmãs. Planejamos nossa vingança. Eu e o Mané arrumamos uma caixa de ovos, e no cair da noite desse dia, fizemos chover ovos na casa das irmãs, acertando a fachada, a porta, a varanda, o quintal, enfim, praticamente toda a frente da casa. Depois da chuva de ovos, tratamos de correr pra casa. Estávamos os dois ainda sob efeito da adrenalina, rindo, quando alguém bate palmas no portão. Meu pai foi atender, e eram dois policiais. As velhas haviam dado queixa, e os policiais foram em casa pra tirar satisfação. Meu pai, que nunca havia sido sequer parado na rua por um policial, ficou putíssimo conosco. Lembro que o policial, ao fazê-lo assinar o Boletim de Ocorrência – porque nós éramos menores de idade - o aconselhou, dizendo pra "não matar os moleques na porrada", que isso era coisa normal da idade, etc. e tal. Eu, que já estava preparado para a surra, não acreditei quando meu pai voltou pra casa, senão rindo, menos puto do que estava quando saiu. A preocupação dele nessa hora, além de ter seu nome na polícia, era onde a gente havia arrumado os ovos... Fato é que, se eu não apanhei dessa vez em que merecia, houve outra em que quase apanhei sem merecer: Estávamos eu e o Rafa jogando bola no quintal, no corredor lateral de casa. Nesse dia, a casa estava passando por algum tipo de reforma ou pintura, de modo que alguns móveis estavam na varanda da frente. Meu pai tinha um xodó: uma imagem de Nossa Senhora de Fátima que ele trouxera de Portugal, e que ficava em seu quarto, dentro de um oratório de madeira com a frente e as laterais de vidro, em cima de uma cômoda/gaveteiro. Não era pequena, devia ter bem uns 90 centímetros de altura. O oratório era maior, pois comportava a imagem que tinha uma espécie de resplendor com luzinhas que acendiam quando ligadas na tomada. Mais a cúpula em formato de abóboda, calculo hoje que tinha perto de um metro e vinte de altura, se não mais. Com a reforma, o oratório com a Santa estavam na varanda, enquanto se pintava o quarto dele. E, jogando bola, certa hora o Rafa deu um chutão na bola que foi, caprichosamente, quebrar o vidro frontal do oratório. Só lembro do meu pai saindo bufando de dentro de casa. Eu estava tranquilo, pois não tive culpa nenhuma. O Rafa ficou vermelho na hora. Sem perguntar nada, meu pai pegou aquele que estava mais perto - no caso, eu – e com sua mão pesada, tentava me bater. Me segurou pelo braço com uma mão, e com a outra, dava os tapas. Mas à medida em que ele ia dar o tapa, eu, com a mão livre, segurava a mão dele. Fez isso algumas vezes, e não conseguiu me acertar nenhuma vez. Por fim, após algumas tentativas frustradas, acho que acabou percebendo que a gente já não era mais criança, já não era possível bater na gente, porque nós havíamos crescido e ficado mais fortes que ele. Posso dizer com certeza que esse foi o episódio que marcou o final da minha infância. 

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