Meu pai tinha mania de reformas. Pelo menos, é como me lembro dele. Estava sempre inventando uma reforma na casa. A primeira lembrança da nossa casa que eu tenho, é que não tinha laje. Era uma forração comum na época, chamada "estuque". Uma armação de tela, preenchida com reboco. Havia um quintal nos fundos, onde havia também um barracão pra guardar as bagunças. E tinha de tudo, lá... Devo confessar que sou piromaníaco. Adoro mexer com fogo, e desde sempre, andava com uma caixinha de fósforos no bolso – quando havia bolso. E quando era pequeno, não era diferente. Como disse, havia de tudo naquele barracão, inclusive umas cordas e uns guarda-chuvas pendurados. E como eram velhos, tinham muitas linhas soltas, penduradas, pedindo para serem queimadas. Eu colocava fogo nas linhas, e quando elas estavam chegando em cima, perto do guarda-chuva, eu assoprava e apagava. Colocava fogo, assopra e apagava. Até que houve uma que eu não consegui apagar. Conclusão: pegou fogo no guarda-chuvas, e no que estava ao lado dele, depois em outro, e o fogo foi se espalhando pelas tranqueiras... Gritei, e minha mãe logo chegou e apagou o fogo, não sem antes haver feito um estrago razoável na pilha de tranqueiras. Me jurou de surra. Mas eu tinha uma estratégia e ela não conseguia me pegar: pulava no muro da divisa com a casa da vizinha, dona Nair, e subia no telhado de casa. Alí, ela não me alcançava. Mas eu teria que descer, mais cedo ou mais tarde, no máximo quando escurecesse, e meu pai chegaria do trabalho. A mão do meu pai era pesada. Mais que a da minha mãe. Então, antes que a coisa ficasse mais feia, tomei a decisão: desci do telhado, aguardando a surra suave da minha mãe. Mas naquela época não havia "conselho tutelar", e a surra foi com fio de ferro (fio de força do ferro de passar), que doía mais que chinelo, pois era praticamente um chicote. Talvez tenha apanhado outras vezes, (talvez não – com certeza) mas essa foi a surra da qual mais me recordo. Quando meu pai chegou, apanhei de novo! Duas surras pelo mesmo motivo. Naquela época, era tudo farra. Depois passei a perceber a gravidade do meu ato. Poderia ter colocado fogo na vizinhança inteira. Mas ainda gosto de fogo. A Daniela acho que herdou isso de mim... Por exemplo, quando saímos de São Paulo e nos mudamos para a chácara, ela que morou em apartamento a maior parte da vida, também passou a andar com um isqueiro pelo quintal, colocando fogo em tudo. Uma vez, quase incendiou a casa da vizinha, colocando fogo num mato próximo à cerca, fogo esse que saiu do controle e estava passando para o quintal dela, que era forrado de palha de pinheiro. Uma faísca ali, seria a catástrofe. Felizmente, o caseiro dela estava de prontidão e ajudou a apagar o fogo.
Algum tempo depois daquele episódio do fogo, meu pai resolveu eliminar o barracão de vez, e fez uma grande reforma na casa. O estuque estava feio, a casa estava mal-ajambrada, e ele radicalizou: A primeira grande reforma, além de acrescentar mais um quarto, mudou os cômodos de lugar. E foi colocada laje em toda a casa. Lembro que quem fez a parte elétrica foi meu padrinho de crisma,Nego, que era eletricista e veio de Americana só para fazer isso. E, lógico,fomos escalados para ajudar. Não lembro qual dos irmãos estava lá comigo e o Nego, mas tinha mais um de nós, e passamos os três dias de carnaval embaixo do telhado, refazendo a parte elétrica. Nessa mudança, mudei também de quarto; o quarto novo tinha uma beliche, e eu e o Rafael ficamos nesse quarto. O Beto acho que já estava no seminário, então o Ciso ficou com o outro quarto, onde ele tinha um aparelho de som, e quando ele saía pra trabalhar, eu ficava lá,ouvindo os discos dele. Lembro de Rick Wakeman, Viagem ao Centro da Terra, alguns discos do Pink Floyd e até Benito de Paula.
Por falar em som do Ciso, aquele fusca verde dele ficava na garagem, que foi criada onde antes era a varanda, e tinha um toca-fitas. Ele ia trabalhar de ônibus, e o carro ficava o dia inteiro na garagem. Lembro que eu, com o auxílio de um arame, eu arrombava a porta do carro para ouvir música. Lembro que ele tinha uma fita dos Beatles, com o disco Yellow Submarine, que era a minha preferida, e foi no carro dele que eu ouvi pela primeira vez "Octopu's Garden", desse mesmo disco. Fazia isso sempre, até o dia em que fui pego no flagra: minha mãe me viu arrombando o carro, tomou o arame da minha mão, empurrou tudo pra dentro do vidro semi-aberto e prometeu que contaria ao Ciso, assim que ele chegasse. Se contou, eu não sei, porque ele nunca bronqueou comigo. Ao contrário, acho que ele deve ter dado muita risada – eu daria – disso tudo.
Essa última reforma criou, com a laje, dois cômodos em cima da cozinha e área de serviço: Um quarto e uma cozinha, com um banheiro embaixo da escada. A princípio, quando o Ciso casou, foi morar lá. Ficou um tempo, não sei precisar quanto, e quando comprou sua casa, o quarto ficou vazio. E virou o quarto da bagunça: Tinha uma mesa de ping-pong, minha vitrola, coloquei umas lâmpadas coloridas e lembro que a gente dava até baile nesse quarto. Com o tempo, acabei levando minha cama pra lá, e acabou virando meu quarto. Era legal, porque tinha entrada independente, passando por um corredor lateral, sem precisar passar por dentro da casa. A janela do quarto dava para uma laje sobre o banheiro, e quando eu queria mesmo entrar ou sair escondido, usava a janela: pulava no muro do vizinho, subia no telhado, depois na laje do banheiro e entrava no quarto. Com o tempo, as paredes do quarto ganharam pinturas feitas por mim; era a época do grafite, e como sempre gostei de desenhar, mandei logo uma mão gigante ensanguentada do tamanho da parede do quarto. Acredite, isso me valeu até um emprego na área de comunicação. Uma amiga do meu pai, em visita à nossa casa, subiu no meu quarto, e, ao ver as paredes todas grafitadas, me indicou para uma vaga na gráfica do Cursinho Universitário, onde trabalhei como desenhista e onde começou minha epopeia nas artes gráficas.
Eu tinha acabado de sair do Bradesco, e sem emprego, arrumei uma forma de ganhar dinheiro: fazendo pulseiras de artesanato. Achei um cara, no Jardim Brasil, que terceirizava a montagem de pulseiras e correntes de artesanato. Entrei de cabeça nessa história, e posso dizer até que ganhei algum dinheiro com isso. Cheguei até a comprar uma moto, parcelada. Mas trabalhava noite e dia, dormindo muito pouco, montando as tais correntinhas, que depois levava pro cara, e elas então eram banhadas a ouro. Com a moto, fiquei pouco tempo, pois na hora de sair pra namorar, preferia sair de carro. Usava ela basicamente pra ir trabalhar aos sábados, quando o transporte público era bem ruim. Naquela época, o uso de capacete não era obrigatório, e numa dessas idas ao trabalho, quase morri embaixo de um caminhão, na praça Campos de Bagatelle, em Santana. Nesse dia, resolvi que moto também não era pra mim. Foi numa tarde dessas, enquanto eu trabalhava nas pulseiras no meu "ateliê", ou seja, meu quarto, que essa amiga do meu pai chegou em casa e me conheceu.
No Banco Bradesco, trabalhei como "operador de Telex". Quem não conhece, uma rápida descrição: Naquela época, não havia fax, muito menos internet, nada disso. Eu era responsável por transmitir as ordens de pagamento a outras agências, e o telex era basicamente uma máquina de escrever gigante, com um teclado nada ergonômico, que se comunicava com outra máquina igual, na agência de destino, através da linha telefônica. O sistema de telefonia no Brasil naqueles tempos era péssimo. Primeiro, tinha que conseguir uma linha, e chamar a agência de destino. Depois tinha que ter a sorte de achar a máquina na agência de destino desocupada, para conectar e começar a transmissão. Isso tomava tempo; naquela época, o horário de expediente era de 8 horas diárias, e eu sempre tinha que ficar até mais tarde. Com isso, comecei a perder aulas, pois estudava à noite. Dei então uma intimada no gerente, e ele colocou a situação da seguinte forma: Quer, quer. Não quer, sai fora. Pedi demissão. Quem sabe onde estaria hoje, se tivesse ficado no Bradesco?
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Lembranças
Non-FictionUM APANHADO DE ALGUMAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Escrever essas lembranças tem me dado uma enorme alegria. Fazendo isso, relembro dos áureos tempos de criança, quando a maior preocupação era de que modo e com qual brincadeira gastaria me...