Quando foi implantado no Brasil, e até há bem pouco tempo, o sinal das transmissões de TV era analógico. Funcionava em VHF, e as antenas externas de TV eram as famosas "espinha de peixe", porque tinham, literalmente, esse formato. Vários caninhos de alumínio interligados captavam o sinal – geralmente ruim – e enviavam para a TV. Esse tipo de antena tinha que ficar apontada para a torre que transmitia o sinal. Assim, Globo, Cultura e Band, ficavam numa posição; TV Tupi, Manchete e Gazeta, em outra. Quando a gente mudava a posição da antena, geralmente melhorava um canal e piorava outro. Em casa isso não era problema. Lembro que haviam duas antenas no mesmo cano, dispostas em forma de cruz. Assim, não havia a necessidade de ficar virando a antena, pois na parede próxima à TV, havia uma chave de gaxeta, a qual a gente mudava quando a imagem não estava muito boa. Alterando a posição da chave, a gente ligava uma ou outra antena, dependendo do canal sintonizado. Essa deficiência na transmissão (o sinal VHF era muito fraco) fazia com que as pessoas, principalmente as que moravam nas "baixadas" dos bairros mais distantes do centro, fixassem as antenas em canos muuuito altos, para ter uma recepção melhor. Bom, como eram comuns essas antenas, era fácil também achar "restos" delas no lixo ou jogadas num canto. A molecada fazia a festa com as varetas, os caninhos, que eram longos, leves – pois eram de alumínio - e ocos. Foi a fase do "canudinho". Talvez já tenham ouvido falar em "zarabatana", uma arma primitiva que lançava setas com a força do sopro do atirador. Essa brincadeira teve também sua época, com a molecada da Caracaxá. A gente pegava um cano de antena, fazia um canudinho de papel com o formato de um longo cone, geralmente usando tiras de jornal, colava com "guspe", como a gente chamava a saliva, enfiava no cano, media, cortava e Voilá... Estava pronta a nossa arma para as maiores guerras entre a molecada. Alguns, como eu, davam um jeito de colocar dois canos juntos, separados por um bloquinho de madeira e atados com fita isolante ou durex, e a gente tinha uma arma com dois tiros sequenciais. Outros mais elaborados tinham até mira, feita também com pedaços de cano. A gente passava a tarde tentando acertar passarinhos. Quando os pardais fugiam, a gente competia vendo quem mandava o canudinho ou quem acertava algum alvo mais longe.
Na Caracaxá, próximo à esquina da Major, havia, como eu já comentei num capítulo anterior, a casa da Dona Inês, a japonesa dona do empório na esquina. E na casa dela, pertinho do muro, havia um pé de cacto de alguma espécie que eu realmente não sei o nome. Era uma planta bem grande e alta, na qual haviam espinhos também grandes, com perto de uns cinco centímetros de comprimento. Época de muros baixos, e alguém, algum dia, teve a brilhante idéia de colocar um desses espinhos na ponta dos canudinhos de papel. A gente arrancava o espinho e ele saía com uma certa facilidade, inclusive trazendo uma bolinha no final, que era ideal para o travamento dentro do canudinho. Iniciava-se, assim, uma nova fase entre a molecada. E quem sofria eram os gatos da região, constantemente alvejados por esses dardos. Eu andava com minha "arma" sempre municiada, aguardando uma oportunidade para meus disparos. Mas os gatos e cachorros vadios da rua estavam "velhacos", não apareciam à toa, e não dava pra "desperdiçar" esses elaborados dardos. Lembro que numa ocasião dessas, toda a molecada à toa na rua, alguém me irritou tanto, xingando e provocando que eu, num ato impensado, dei um tiro na direção desse cara. Acontece que, depois do disparo, bem no momento seguinte, lembrei que o dardo era um daqueles preparados com espinho, e acertei-lhe a bunda. Hoje lembrando, acho até engraçado o dardo espetado na bunda do sujeito, pendurado por fora do calção... Como toda fase, essa também acabou passando, foram surgindo outros passatempos e brincadeiras que davam menos trabalho que fazer os canudinhos.
Tive também, perto dessa época, uma espingarda de chumbinho. Uma Rossi, modelo Urko, que sinceramente, não lembro onde arrumei. Provavelmente fruto de mais algum rolo com alguém. Creio ter sido com um dos irmãos mais velhos do Jair, que morava próximo. Enfim, adorava essa espingarda. Mas de que adiantava ter uma espingarda se não havia grana para comprar os chumbinhos? Do outro lado da rua, em frente à entrada da viela, na calçada entre as casas da "alemoa", dona Aina, e da tia Elvira, havia uma árvore que não dava flores, apenas umas frutinhas em formato de bolinha. Acontece que essas "bolinhas" tinham uma sementinha dentro que era a medida exata do calibre da carabina. Quando descobri isso, meus problemas de municiamento haviam terminado. O tiro não era preciso, mas dava pra se divertir. Quando havia chumbinho, eu era o terror dos passarinhos. Já naquela época, eu era um bom atirador, tanto que a vizinha da frente pediu insistentemente que a gente não disparasse em nenhum passarinho que estivesse na árvore em sua casa. Certa vez, acertei num pardal que com o tiro, ao morrer, travou os dedos das patas e ficou pendurado num dos fios mais altos da rede. Ficou alí por um bom tempo, pendurado no fio, quase na entrada da viela. E cada vez que eu passava por ali e via o passarinho pendurado, me remoía de remorsos. Um arrependimento profundo. Prometi nunca mais atirar em nada que se mova ou tenha vida. Certo dia, sentado no portão de casa, entediado, procurava um alvo e sem achar nada, resolvi testar minha pontaria atirando nos fios da rede elétrica. Havia um cabo elétrico que alimentava a viela, saía da rede principal da rua e alimentava toda a viela, chegando até a última casa. Era um cabo torcido, onde haviam três fios: duas fases e um neutro. Então, entediado, resolvi treinar pontaria nesse cabo. Não sei se por sorte ou perícia mesmo, o fato é que acertei bem no meio dos fios, entre as duas fases, provocando um curto circuito. Faíscas, barulhos e consequentemente a queda do disjuntor no transformador da rua, deixando o quarteirão inteiro sem luz. Mais que depressa, corri guardar o perigoso brinquedo, antes que alguém descobrisse o autor da traquinagem. Usei tanto a espingarda que a coronha, que era de madeira, acabou quebrando. Lembro que a consertei usando duas placas de alumínio, aparafusadas uma de cada lado, e preenchi o vão entre as placas e a madeira restante da coronha com durepoxi. Não ficou bonita, mas ainda funcional. Com uma pintura de preto, ficou um pouquinho "menos pior". Agora, puxando pela memória e tentando lembrar que fim levou o artefato, não faço a menor ideia. Talvez tenha tido parte em mais algum rolo.
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Lembranças
Non-FictionUM APANHADO DE ALGUMAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA Escrever essas lembranças tem me dado uma enorme alegria. Fazendo isso, relembro dos áureos tempos de criança, quando a maior preocupação era de que modo e com qual brincadeira gastaria me...