Capítulo 26 - Histórias de pescador

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Quando moleque, o Ciso, meu irmão mais velho, levava a molecada pra ir pescar. Lembro que a gente ia pra Mairiporã, na represa. Ninguém era um expert em pescaria, mas a gente se divertia pescando tilápias e às vezes algum lambari. Apesar de hoje achar bem perto da capital, naquela época tinha algo de aventura. Quando a gente é criança, tudo parece maior. Inclusive o trajeto de casa até a represa. Não sei dizer nomes dos lugares, mas a gente passava uma tarde gostosa. Quando não dava peixe, a gente entrava na água pra se refrescar. Lembro que havia um riozinho, que - acho - alimentava a represa. Lembro também que sobre esse riozinho havia uma ponte, da qual a gente pulava. Foge-me à lembrança e não sei precisar se era nessas pescarias junto com meu irmão ou alguns anos mais tarde, quando passei a ir por conta própria. O fato é que essas pescarias me encorajaram, anos mais tarde, já casado, a investir num equipamento melhor. Depois que casamos, os pais da Rô mudaram-se para o interior, a mais de 400 km de S. Paulo, e a gente ia pra lá pelo menos duas vezes por ano, em junho e dezembro, quando eu tirava 15 dias de férias do trabalho. O Sr. Elias, meu sogro, era um pescador fanático. E assim, graças a ele, nessas viagens de férias, peguei mais gosto pela coisa, e acabei adquirindo um equipamento melhorzinho. A gente chegava na casa dele, e ele já ia logo arrumando as tralhas pra gente ir pescar. Mal dava tempo de chegar, e eu e ele já saíamos pra algum corregozinho, num dos lugares que só ele conhecia. Outras vezes, a gente ia pescar no Rio Paranapanema, que era próximo da cidade e fazia divisa com o Paraná. Os tios da Rô tinham um "estaleiro", um lugar preparado no "panema", como chamavam o riozão, e a gente costumava pescar lá. Falar a verdade, nunca peguei um peixão do qual pudesse me orgulhar nesse lugar. Mas houve uma vez em que estávamos eu e o Tio Neco nesse estaleiro, tentando a sorte. O rio estava ruim de peixe, fim de tarde, e chateado resolvi dar uma volta pra esticar as pernas pelo lugar. Lancei a linha com a isca no rio, encaixei a vara numa fresta de madeira do estaleiro e saí pra dar uma volta. Justamente nessa hora algum peixão resolveu morder a isca, e como a vara não estava amarrada, levou tudo embora: vara e carretilha foram parar no fundo do Panema. Eu havia gasto uma grana razoável nessa vara de fibra de carbono e na carretilha importada, então não iria deixar barato. Até a linha que eu usava era cara, verde fluorescente, então não seria difícil identifica-la. Mas como já começava a escurecer, resolvemos vir embora e deixar tudo pra lá. Chegando em casa, foi aquela zoeira: o cara da cidade que não sabia pescar, o peixe levou a melhor, essas coisas. No dia seguinte, determinado a recuperar meu investimento e lavar minha honra, logo de manhãzinha arrumei um pedaço de ferro de construção e fiz um tipo de gancho com três pontas, como uma âncora, com uns 15 cms de comprimento, uma corda de nylon, dessas de varal, e voltei ao rio. De cima do estaleiro, comecei a jogar várias vezes o gancho em várias direções, até que, finalmente numa recolhida, a linha verde fluorescente veio junto. Animado, comecei a puxar, e parece que estava enroscado em algo na beira do barranco. Dei alguns trancos, a linha afrouxou e para minha surpresa, após puxar, veio a vara e a carretilha, com toda a linha descarregada. Tudo cheio de areia, a carretilha mal rodava, e eu lavei o máximo que pude no próprio rio, e consegui faze-la voltar a funcionar. Peguei a vara e comecei a enrolar a linha que estava dentro do rio, na esperança de que o tal peixão viesse junto. Quando consegui recolher, vi que na ponta, não havia nem sinal do anzol e do peixe que a carregou. Não peguei o peixe, mas feliz da vida, voltei pra casa todo pimpão com meu equipamento recuperado e ninguém acreditou que eu tinha conseguido.

Pescar com o sogro sempre rendeu muitas histórias. Ele conhecia cada regato, cada represa da região, e a gente sempre ia nos lugares mais inacessíveis, pois segundo ele, ali deveria haver mais peixes, já que ninguém pescava lá. Nessas andanças, geralmente nas férias de final de ano, a gente tinha que atravessar por algum milharal. Nessa época eu tinha uma Brasília, e na volta da pescaria, invariavelmente a gente parava na beira de alguma plantação e enchia a bichinha de milho verde, pegando as espigas na beira da estrada mesmo, sem nem muito esforço pra entrar no milharal. Chegávamos em casa e era aquela festa. As tias se reuniam no barracão da casa de uma delas pra fazer pamonha, curau e bolo de milho. Montava-se uma operação de guerra: uns descascavam, outros ralavam, outras coavam e outras cozinhavam. E no final, era a festa do milho verde, com todo mundo comendo e se deliciando com as delícias da roça. Tudo muito gostoso, e deixou saudade.

Numa outra ocasião, saímos para uma pescaria noturna. Mas esta não haveria de ser uma pescaria comum: a gente iria pegar tuvira, um peixe comprido e quase sem escamas, parente do peixe elétrico. Iríamos usa-los como isca no dia seguinte para tentar pegar dourados, no rio Paranapanema. Eu não conhecia, então era tudo festa. O que eu não sabia é que a tal tuvira vive em locais inundados, embaixo da vegetação flutuante. E para pega-la, a gente tem que entrar na água, passar um tal de xibiu, uma peneira enorme, por baixo dos aguapés pra poder pegar os tais bichinhos. Comecei a ficar preocupado... Como a operação era complicada, o Sr. Elias chamou uma galera considerável, e sendo muita gente, fomos de caminhão, todo mundo na carroceria. Chegamos na beira de um dos córregos que só ele conhecia, no meio do mato, sem luz nenhuma, na maior escuridão. Cada um com sua lanterninha, alguns tiraram as roupas e, só de cuecas, entraram na água com a peneira na mão. Outros ficavam fora, com um tambor já com água pela metade, para colocar as tuviras pescadas. Eu, cara da cidade, ficava do lado de fora, só observando. Era uma noite de verão no final do ano, fazia calor, e vendo que o negócio era divertido e não apresentava perigo, pois a água era baixa, na altura do umbigo, resolvi entrar também e participar da brincadeira. Peguei uma beira da peneira e fomos passando por baixo dos aguapés. A cada passada, um tanto de tuviras, junto com alguns caranguejos e outros insetos. Até a hora em que, numa dessas passadas, junto das tuviras vem na peneira uma cobra imensa que, sem ninguém pestanejar, foi jogada longe antes que pudesse nos fazer alguma coisa. Nem sei que cobra era, mas era grande e gorda. Talvez uma jiboia. Então, dado o susto, achamos que já havíamos pegado tuviras suficientes, e voltamos pra casa. No dia seguinte, eu, o Sr. Elias e seu amigo Torquato partimos rumo ao Panema para pescar dourado. Eles tinham um bote em sociedade, que estaria ancorado em alguma beira do rio, num lugar que só eles sabiam. Fomos de Brasília até uma beira de mato, até onde o carro conseguiu chegar. Dali pra frente, só à pé. Embrenhamo-nos no mato, e após uma curta caminhada, chegamos no tal lugar onde o barco deveria estar. A princípio, não vi barco algum. Mas eles me mostraram o barco amarrado numa corda, afundado, a uns três metros da beira do rio. Um frio me percorreu a espinha: a gente ia pescar nisso? Se vazio ele já havia afundado, imagina com três caras dentro? Mas como eu não queria passar por covarde, fiquei quieto, esperando ver a solução que eles dariam. O Torquato tirou a roupa, ficando só de cuecas, entrou na água e foi buscar o barco, que estava cheio de barro. Ali mesmo, com a própria água do rio lavou tudo. Tombando o barco várias vezes, para um lado e para o outro, tirou toda água de dentro, e até que o bichinho ficou limpinho. Embarcamos, o Torquato pegou um dos remos, o Sr. Elias o outro e começamos a subir o rio. Eu, com um baldinho na mão, esperava a qualquer momento o negócio começar a fazer água e afundar, mas por incrível que pareça, não entrou uma gota d'água e o botinho aguentou o dia todo. Depois vim a saber que eles deixavam o bote afundado de propósito, para que a madeira não ressecasse, e estando encharcada, dilatava e vedava todas as possíveis infiltrações de água. Subimos um bom pedaço do rio, revezando no remo, até chegar num ponto em que julgaram ideal. Paramos no meio do rio, correnteza razoável, e lançamos ancora. Torquato na frente, Sr. Elias no meio e eu na parte de trás, cada um montou suas tralhas e começamos nossa pescaria. Ficamos um bom tempo ali, sem nem ao menos uma beliscada nas iscas. Até que o Torquato acabou enjoando, se ajeitou meio que deitado na ponta do bote e resolveu tirar um cochilo. Depois de um tempo, o cochilo virou sono pesado, e o cara começou a roncar. Olhei para o Sr. Elias, ele olhou pra mim, e sem dizer nada, resolvemos pregar uma peça no dorminhoco. Com um movimento brusco combinado, acabamos balançando bem forte o barco e o Torquato, que estava apoiado na beirada, acabou acordando dentro d'água. Ficou P* com a gente, mas acabou rindo também, no final.

Realmente não dá pra enumerar nem narrar todas as histórias de pescaria com o Sr. Elias. Foram muitas, uma mais engraçada que a outra. Algumas histórias muito engraçadas tiveram como protagonistas pessoas da família as quais não gostaria de citar aqui, por isso deixo de publica-las, guardando-as apenas em minha memória. Com a morte do Sr. Elias, minhas aventuras pesqueiras foram perdendo a graça e diminuíram drasticamente, já que eu não tinha mais meu companheiro de aventuras, e acabaram restringindo-se tão somente aos pesque-e-pague aqui da minha cidade, onde ia eventualmente com a Isabela, minha filha caçula. A bem da verdade, já faz alguns anos que fomos pela última vez. O equipamento de pesca continua guardado, numa prateleira na área de serviço de casa. Quem sabe qualquer hora dessas a gente se anima novamente pra uma nova pescaria?

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