Capítulo 20 - Os Salgadinhos do Seu Emílio

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Uma das lembranças mais gostosas que eu tenho do meu pai é em relação às partidas de xadrez que a gente disputava. Não tenho certeza, mas provavelmente foi ele quem me ensinou a jogar. E, com 12, 13 anos, eu ficava esperando ele chegar do trabalho, tomar seu banho, e após o jantar, quando ele ia começar a assistir à TV, eu pegava uma mesinha de centro, colocava na frente dele e armava o tabuleiro. Não tinha desculpa nem escapatória. Era pelo menos uma partida por noite, durante muito tempo, até onde a lembrança alcança. Achava engraçado que ele fazia uma jogada, e ao ver que tinha errado, voltava a peça no lugar; fazia tanto isso que a gente teve que inventar uma regra proibindo isso, ou adotar a regra do "peça tocada, peça jogada. Fui ficando bom, e passei a vencê-lo com frequência, até que – acho - ele acabou perdendo a graça, pois só perdia. O tabuleiro com as peças, tenho até hoje. Atualmente, fica em casa, em cima de um móvel. E cada vez que eu olho pra ele, lembro do velho e das partidas noturnas.

 E cada vez que eu olho pra ele, lembro do velho e das partidas noturnas

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Como bom português, ele era devoto de Nossa Senhora de Fátima. E aqui no Brasil, encontrou a igreja com o nome dessa padroeira no bairro do Sumaré, em São Paulo. Talvez fruto de alguma promessa, todo dia 13 a gente ia lá, assistia a uma missa e voltava pra casa. Ele fazia isso mesmo não tendo carro; lembro de tê-lo acompanhado algumas vezes de ônibus. Ele nunca dirigiu, nunca tirou carteira de motorista, mas quando nós, os filhos, começamos a dirigir, passamos então a ir de carro, religiosamente todo dia 13, fosse qual fosse o dia da semana. Lembro que durante o mês de maio, nas comemorações oficiais da padroeira, havia festa portuguesa naquela igreja, com as comidas e doces típicos de Portugal, que ele adorava e comprava pra levar pra casa: pastéis de Belém, fio de ovos, pastéis de Santa Clara, entre outros, faziam a nossa alegria. Havia ocasiões em que, hoje como pai e chefe de família percebo, ele talvez não tivesse dinheiro para gastar, então ficava mais "pão-duro" e não comprava os doces. A gente ficava na vontade, sem perceber, na época, que dinheiro não dava em árvores, como ele dizia. Mas graças a essas idas mensais à Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, fiquei apaixonado pela culinária portuguesa e adoro esses doces, tão difíceis de encontrar bem feitos aqui na minha região.

 Mas graças a essas idas mensais à Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, fiquei apaixonado pela culinária portuguesa e adoro esses doces, tão difíceis de encontrar bem feitos aqui na minha região

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Era do tipo que não conseguia ficar parado. No Brasil, desde que chegou, sempre trabalhou com cozinha, na Ford, na Walita, entre outras empresas, onde era o chefe das cozinhas industriais. E era um grande cozinheiro. Fazia um bacalhau sem igual. Fazia também receitas portuguesas como os filhós, no final do ano, e o folar, um pão salgado recheado de especiarias, carne e linguiça, na época da Páscoa. Nunca mais comi nada igual! Quando eles e aposentou, como não conseguia ficar parado, resolveu que iria começar a fazer salgadinhos para festas. Fez um "curso intensivo" com a Tia Walkiria, que já fazia também salgados e morava na Zona leste e começou a empreitada. E o negócio deu tão certo, que ele não parou mais. Coxinhas, empadinhas e rissoles começaram a fazer parte de nossos finais de semana. Eventualmente, algum bolo para festa. Lembro dele sentado na escada, descascando alho para os temperos. A cada encomenda, a quantidade aumentava, a ponto dele ter que ficar vários dias fazendo salgadinho para cumprir o prazo. Com isso, a demanda por matéria-prima também era alta. A gente ia comprar farinha, frango, palmito e azeitona, entre outras coisas, no mercado municipal. Ele era exigente, e só comprava farinha de trigo de uma determinada marca, pois, segundo dizia, as outras "não davam liga". Nessa época, meu fusca tinha rodas de liga leve, mais largas e de aro menor que o original. Como eram mais largas, as rodas ficavam um pouco pra fora do para-lamas. Lembro que o carro voltava tão cheio e pesado que, ao passar por algum desnível, os pneus raspavam no para-lamas. Com essa fabricação em massa, a gente foi se acostumando a almoçar e jantar salgadinho, nos finais de semana, até enjoar e chegar ao ponto de não suportar nem sentir mais o cheiro dos ditos cujos. Como ele sempre fazia uma quantidade a mais e não gostava de ficar parado, um belo dia resolveu sair vendendo pela rua. Arrumou uma geladeira de isopor, forrou com "papel alumínio", colocou uma alça e saiu pela vizinhança anunciando seu produto, com aquele sotaque português: Salgadiiiiinho! As vendas foram melhorando, a freguesia aumentando, e com o tempo eu passei a ir "visitar" os clientes com ele, de fusca. E como tinha cliente esse homem... Depois de entregar as encomendas, a gente carregava o fusca com a geladeira e rodava a tarde toda de sábado, indo nas casas das freguesas. Invariavelmente, a geladeira voltava vazia. Diabético, a doença foi derrotando-o; causou uma gangrena no pé que teve que ser amputado. Então, sem outra saída, finalmente resolveu se aposentar. Pouco tempo depois, foi embora. Mas algumas das suas receitas foram passadas para a Rosângela, que por exemplo, no final do ano, na época do Natal, faz os filhós em casa. O bacalhau que ela faz fica igualzinho. O Folar, nunca mais comi. Muitos anos após sua morte, andei procurando uma empadinha como a dele. Soube de um lugar, que tinha "a melhor empadinha" de São Paulo, na Av. Sena Madureira. Fomos lá experimentar, e confesso: não chegou nem perto da famosa empadinha do Sr. Emílio português. Saudades gastronômicas. Alguém sabe o que é isso? 

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