III. Quinze para a meia-noite

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De domingo à sexta-feira, as noites na Fazenda Villamazzo costumavam não se alongar muito. Às nove em ponto, em seus dias mais comuns, era normal todos já estarem em seus aposentos dormindo ou prestes a dormir, no meio daquele marasmo rural praticamente não havia nada a se fazer quando o sol enfim se punha.
Entretanto, as coisas costumavam mudar um pouco aos sábado e, após os acontecimentos do jantar daquela noite, para os irmãos Villamazzo e certos funcionários da fazenda, não tinha dia mais propício pra ser sábado do que hoje.

Era quinze para a meia-noite. A lua estava exorbitante no céu limpo, iluminando o rosto de Francesco dando um tom frio aos seus olhos azuis. Sentado na cama sacudindo os pés no ar, mesmo de forma inconsciente ele contava os minutos que faltavam para o compromisso semanal começar, este que a pouco tempo o garoto fora incluído. Até um ano atrás Francesco era "novo demais" e tinha de se contentar em apenas ouvir os passos das irmãs na escada durante a madrugada e as risadinhas e conversas enigmáticas no café da manhã. Mas quando completou dezesseis anos a coisa mudou de figura e numa certa madrugada, Vitória foi até sua porta e bateu de forma específica: três batidas seguidas e duas com pausas entre si.

Depois de quase um ano, não tão surpreso quanto da primeira vez, assim que ouviu as batidas Francesco pulou da cama correndo e abriu a porta que estava destrancada havia horas.

- Achei que não iam aparecer hoje! - disse ele assim que encontrou Vitória e Marjorie no corredor prestes a descer as escadas, iluminada apenas pela luz de um candeeiro de metal velho segurado por Marjorie.
- A mamãe demorou de ir dormir hoje, culpa do jantar - Sussurrou Vitória - vamos logo, a Amália e a Marinês já devem estar lá fora.

Sem demora, Francesco encostou a porta de seu quarto o mais silenciosamente que pôde e pé ante pé seguiu as irmãs até o andar de baixo.

O casarão Villamazzo ficava assustadoramente escuro durante a noite, sem um candeeiro era quase impossível enxergar um palmo a frente, mas o breu só durava até chegar no corredor do quarto de Marinês e Amália, este que também dava acesso aos fundos e à cozinha, pois dali em diante todos os cômodos eram perfeitamente iluminados fazendo o medo do escuro cessar e o aconchego do que viria os envolver cada vez mais.
Após passarem pelo quarto de Amália e Marinês, Marjorie, Vitória e Francesco seguiram para os fundos da casa, assim que contornaram o fogão a lenha que ficava do lado de fora e sentiram o vento frio daquele início de madrugada, ouviram também o barulho do rádio indicando que chegaram na hora certa.

- Finalmente! - Amália exclamou assim que os irmãos chegaram.
- É a última leva de comerciais antes da abertura! - Marinês escorregou um pouco para o lado do banco da comprida mesa de madeira onde os peões almoçavam e descansavam, dando espaço para que pudessem se acomodar - sentem-aí.

Além de Amália e Marinês, também estavam sentados na mesa Guilherme e sua irmã Juliana - carinhosamente chamada por todos de "Nininha" - Sandro, o pai dos dois, tragava um cigarro sentado no pequeno muro que separava a área coberta do gramado. Nem havia começado, mas todos já estavam atentos esperando pelo compromisso semanal: Paixão e Pecado, a Radionovela que passava todas as madrugadas de sábado para domingo - e que eles religiosamente não perdiam um único capítulo.

- As patroinhas tudo bem, mas achei que o menino Francesco nem vinha hoje! - Disse Sandro, o sotaque igual ao do filho - gostou mesmo dessa coisa de novela né, Guri?
- Eu lá recusaria uma chance de ficar acordado até altas horas da madrugada, Tio Sandro?

Depois de dar um soquinho no braço de Sandro e ele lhe devolver com um cascudinho na cabeça que bagunçou seus cabelos, Francesco se acomodou ao lado do peão, sua pele arrepiou com o vento frio.

- Ele bem que gosta, Tio Sandro! - Riu Vitória do comportamento dos dois.

Por não ser boba nem nada, Vitória tratou de se sentar no banco da esquerda ao lado de Marinês pois definitivamente preferia ouvir picuinhas da irmã à segurar vela para Amália e Guilherme que inocentemente - ou cinicamente - se protegiam do frio dividindo o velho xale azul escuro de Tia Luzia. Marjorie até ficou no mesmo banco que os pombinhos não oficiais, mas optou por se sentar ao lado de Nininha, como sempre.

- E a Tia Luzia? - Marjorie perguntou para a filha de Tio Sandro.
- Tá lá na cozinha, foi fazer um leite quente pra nós - Ela respondeu sacudindo os ombros enquanto falava, assim como o irmão mais velho, os cabelos de Nininha eram escuros e bem cacheados, mas escorriam compridos pelos ombros por baixo do lenço vermelho na cabeça, este da mesma cor de seus lábios eternamente corados.

Para Francesco, Nininha era fácil a pessoa que mais fazia a Marjorie sorrir na face do planeta. Era só ela falar mexendo os ombrinhos como sempre fazia que a irmã tão comumente quieta e séria já estava sorrindo.

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