XV. Dupla Dinâmica

13 1 0
                                    

A cada volta nos barris, Amália levantava uma cortina de poeira do chãol. Junto ao barulho dos cascos pesados de sua égua de corrida só se ouvia as palmas de Marinês e César, que assistiam ao treino apoiados na cerca. Aquela não era bem a cena romântica que a garota planejava para sua primeira conversa com César, mas com os pais entretidos o suficiente numa conversa sobre política com o acréscimo de bolinhos de chuva e chá de capim santo, era a chance perfeita de começar a arar o terreno.

Vitória assistia a cena encostada na parede do estábulo, Amália estava uma corredora perfeita como sempre, mas o que lhe realmente chamava a atenção era Marinês.
Ela parecia ainda mais graciosa dali, enrolava uma mecha de cabelo entre os dedos com os ombros levemente encolhidos, sorria sempre que César falava e se atentava a sempre olhá-lo de baixo para cima, pois segundo ela "inspirava pureza e inocência".
Articulada, Marinês se movia e agia totalmente de caso pensado da unha do dedão do pé até o último fio de cabelo vermelho de sua cabeça, e pior, estava dando muito certo. César Castilho não tirava os olhos dela nem para afastar a poeira dos olhos. E Vitória podia apostar seu dedo mindinho que a irmã sabia bem de seu triunfo.

Eram um casal bonito, Vitória pensou, pareciam ter roubado toda a beleza da cidade só para eles Terezinha Villamazzo e César Castilho Jr. seriam realmente crianças lindas...
Levando a mão superficialmente sobre a boca e fechando os olhos, Marinês riu de algo que César havia dito e neste momento o olhar dele percorreu a garota inteira dos pés a cabeça.
Vitória engoliu seco. Talvez mais que Marinês, ela esperava mesmo que César tivesse planos de casar...

Enquanto ainda observava os feitos de ambas as irmãs, Vitória ouviu passos na grama se aproximando dela, por instinto virou-se para ver e não tão surpresa assim, encontrou o rosto de quem havia até demorado de aparecer.

- Cheguei numa boa hora? - Vicente se pôs ao lado de Vitória na parede do celeiro, a garota sorriu sem perceber.
- Chegou na hora exata - ela indicou com o queixo para Marinês e César - Parece que o plano está funcionando.
- Não tinha como dar errado - Vicente cruzou os braços e ficaram os dois olhando para seus irmãos - Foi difícil convencê-la?
- Mais do que imaginei - Vitória riu de leve com as lembranças - e você? O que disse a ele?

Vitória perguntou olhando para Vicente, aos poucos um sorriso se afrouxou no rosto dele.

- Sinceramente? - ele olhou para a garota - Nada.

Os dois se encararam com um sorriso apontando no rosto até ambos começarem a rir.

- Acabo de sair do escritório do seu pai - Vicente começou, Vitória deu um sobressalto.
- E então?
- Meu pai vai entrar com uma determinada quantidade de capital para a próxima plantação, e o lucro arrecadado na colheita vai ser dividido em dois: metade para o meu pai e metade para a sua família.
- Certo... e quando começará a plantação?
- Esta semana ou na próxima. É preciso encomendar as sementes, telas, estacas... fora mais homens! Estão planejando uma safra duas vezes maior que o comum, ainda há muito trabalho antes da ação de fato.
- Uau! - Vitória sorriu largamente - isso é incrível! Mal vejo a hora de ver esses campos verdinhos de parreiras outra vez. Obrigada Vicente, mesmo! Me tranquiliza muito saber que está tudo entrando nos eixos novamente.
- Não há de quê - Ele sorriu gentil - Dá para perceber o quanto você também ama essa fazenda, quase tanto quanto o seu pai. É impossível amar estas terras mais do que ele... mas você é uma forte candidata.
- Imagine - Ela riu - mas olhe ali, tenho que agradecer a eles também.

Os dois olharam para Marinês e César na cerca conversando e sorrindo bastante.

- O César não está nem piscando - Vicente citou surpreso - acho que nunca vi ele assim com garota alguma, e ele faz um certo sucesso nas festas da cidade.
- É, estou sabendo - Vitória cruzou os braços e olhou para César que acabara de puxar seus cabelos castanhos para trás num caimento perfeito.

Um breve silêncio os circundou, Vicente notou uma certa preocupação no olhar de Vitória.

- Está arrependida? - ele questionou, Vitória o olhou imediatamente.
- Ah, não! Não, eu só... besteira, não é nada.
- Você está com medo do meu irmão estar vendo a sua irmã apenas como mais uma?

Eles se entreolharam. Vicente inclinou a cabeça levemente tendo a plena certeza de que acertou.

- Desculpe Vicente - Ela fez uma cara de dor, o Castilho sorriu brevemente e negou com a cabeça.
- Eu conheço o irmão que eu tenho, também ficaria preocupado.
- Sabe, é inevitável - ela suspirou - eu não quero carregar a culpa de ter sido responsável caso a Marinês tenha o coração partido, ela não é o maior exemplo de romantismo mas, eu sei que ela quer ser amada. Ela merece ser amada.
- Não vou mentir, o César costuma ser um cafajeste, mas eu nunca o vi falar tanto de uma garota só como ele fala da Marinês, isso deve significar algo, não?
- Bem, é, deve significar...

Vitória encolheu os ombros ainda meio preocupada, Vicente fitou seu rosto de porcelana, o vento balançou alguns fios de seus cabelos dourados.

- Vai dar tudo certo - ele disse com certeza, a garota o olhou - eu não te colocaria na história se não fosse para dar tudo certo.

Vicente levava consigo uma convicção capaz de convencer qualquer um, era fácil confiar nele pois sempre parecia que ele sabia de tudo - e na maioria das vezes sabia mesmo. Só de olhar para ele, ela não conseguiu duvidar que de fato daria tudo certo, e seu coração se acalmou por completo.

- Você é bem confiante não é? - ela riu, Vicente sorriu ainda mais.
- Eu deixo que pensem assim.

Os dois deram um último sorriso um para o outro e voltaram a olhar para frente, Vitória contorceu os lábios na tentativa de controlar um sorriso acidental.

Toda sorridente, Amália passou correndo pelos cantos do curral e de lá, acenou para seu público, todos acenaram de volta.

- É bonita a forma como você cuida da sua irmã, mesmo com todos os seus conflitos - Vicente voltou a falar.
- Isso é coisa de irmão - ela disse casual - Nós brigamos, pegamos as coisas um do outro, somos obrigados a dividir e ceder, mas quando a situação aperta nós sempre sabemos que nunca estaremos sozinhos. Eu amo os meus irmãos e faria qualquer coisa por eles, e eu sei que eles também fariam.
- Todos eles? - Vicente perguntou olhando firme para frente.
- Claro! Desigualdade também gera briga, sabia? Numa família formada de sete pessoas você ficaria surpreso em como TUDO gera briga.
- Deve ser interessante ter uma família grande - Vicente riu baixinho
- Deve ser interessante ter um irmão só! - Vitória rebateu.
- Você nem imagina...

De canto, Vitória olhou para Vicente e percebeu que o olhar dele não mudou de direção, mas não estava em Amália correndo, ou Marinês fazendo charme, nem mesmo em César. Estava muito mais longe, perdido em pensamentos distantes e indecifráveis.

- Você e o seu irmão não se dão bem? - Vitória perguntou cautelosamente.
- Não, nós até que nos damos bem, acho que não como você e seus irmãos mas, nos respeitamos - Vicente suspirou - as vezes eu... eu queria ser um irmão melhor, sabe? Desde que perdemos a nossa mãe eu sinto que venho falhando no meu papel de mais velho, meu pai não é o melhor exemplo de amorosidade então fica essa carência de apoio, essa lacuna, eu tento supri-la de todas as formas que posso mas... - ele olhou para César - parece que nunca funciona.

Vitória olhou para Vicente e depois para César e se sentiu confusa. Dali, César parecia tão despreocupado e alegre, não parecia haver um resquício de tristeza no olhar dele, não como ela via no olhar de Vicente. O luto vem de formas diferentes para cada pessoa, mas seria loucura ter a impressão de que ele falava de outra pessoa?

- Às vezes projetamos nossas dores e inseguranças nas outras pessoas, eu não sei como as coisas acontecem quando estão em casa mas para mim o César parece bem - Vicente ergueu os olhos negros para Vitória - talvez você focou tanto em suprir a lacuna dos outros que se esqueceu da sua própria lacuna.

Ele a olhou um pouco paralisado, ela sorriu tentando passar conforto.

- Faz um pouco de sentido, não faz?

O rosto de Vicente se afrouxou num sorriso grato e até meio tímido.

- Faz, faz sim - ele pigarreou e se recompôs, projetando a voz - Obrigado e... desculpa por ter pesado o clima assim, não tenho o costume de fazer isso.
- Homens com cara de mau também tem sentimentos - Ela brincou.
- O homem mau e a donzela, que dupla dinâmica não é?
- Quem você está chamando de donzela? - Vitória se defendeu

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora