Sentado numa mesa escolhida a dedo por Pilar, Henrique observava a festa de não muito longe. Após o fim da pisa, enquanto todos comiam e bebiam, Tio Sandro puxou sua sanfona e começou a tirar canções vindas diretamente dos pampas gaúchos, terra natal dele e da irmã. Nininha e Guilherme cantavam as modas junto ao pai e a Tia, Marinês e César tentavam dançar juntos sem pisarem um no pé do outro (aparentemente os dois pés esquerdos era um traço comum dos irmãos Castilho), Amália rodopiava na grama de mãos dadas a Marjorie, que já havia desistido de fingir não estar se divertindo. Vitória estava com a mãe petiscando salgadinhos, mas às vezes trocava olhares discretos com Vicente, que batia palmas no ritmo da música junto ao pai e ao Coronel.
Francesco estava ali perto, na mesa de comidas, mas já voltava com um sorriso enorme de satisfação no rosto e um prato de porcelana cheio de comida em cada mão.
- Agora que você é um homem livre, trouxe o que com certeza deve ter sido a pior parte de nunca ter saído de casa - Francesco se sentou ao lado de Henrique e colocou os pratos à sua frente, todo feliz com o banquete que surrupiara da mesa - comidas novas!
Henrique apoiou o rosto sobre a mão e sorriu. Isso era tão Francesco...
- Sei que sou muito bonito e é realmente difícil parar de me admirar, mas me admire depois de comer. Escolhe vai.
- Certo... - Henrique rolou os olhos com tamanha autoestima, mas acabou rindo - você tem alguma recomendação?
- Hm... Ah! Aqui, esse.
Francesco pegou do canto de um dos pratos uma espécie de rosquinha com creme de confeiteiro em cima, tinha uma cereja preta no topo do creme e era polvilhado com muito açúcar.
- O que é? - Henrique pegou e analisou como se fosse uma espécie rara de inseto.
- Zeppole di San Giuseppe - Francesco respondeu num italiano que soou perfeito (e bem charmoso) para Henrique - É o mais perto que temos do churros de barraquinha então pode começar por esse, quando nós formos ao centro você come o de verdade.
Comovido, Henrique sorriu para Francesco. Havia acabado de sair de casa pela primeira vez e ele já estava cheio de planos. Henrique até pensou em dizer algo, mas por uma noite pelo menos ele decidiu não ser tão realista.
- Bom, então vamos lá.
Henrique levou o doce a boca dando uma mordida generosa.
- E aí? - questionou Francesco, empolgado.
- Hm... é bom.
- Dá uma nota.
- Sete e meio.
- Sete e meio?! - Francesco indagou levemente indignado.
- Não, calma - Henrique ergueu o dedo indicador e mordeu novamente, Francesco esperou ansioso - sete.
Boquiaberto, Francesco juntou as pontas dos dedos indicadores na frente do rosto.- Corta aqui, não somos mais amigos.
- Ah finalmente, achei que nunca ia pedir!
Abusando do sarcasmo, Henrique foi com um sorriso torto e creme de confeiteiro nos cantos da boca cortar o "laço de amizade" entre eles quando Francesco baixou as mãos no último segundo.
- Parou! - Ele fechou a cara, conseguindo uma gargalhada de Henrique que o contagiou facilmente.
Enquanto riam, de canto de olho e mesmo não tão de perto, Francesco percebeu que uma sombra os espreitava.
- Não olha agora, mas acho que estamos falhando em fingir que acabamos de nos conhecer.
Francesco indicou rapidamente com o olhar, e Henrique o seguiu discretamente. A sombra era a de sempre: Firmino.
O velho Castilho olhava firmemente para Henrique enquanto virava uma taça cheia de vinho puro como se fosse água, sem fazer questão nem de disfarçar. Henrique sentiu um arrepio, ele devia estar furioso.
- Se você quiser se afastar um pouco...
- Não, Frances - Henrique diz com bastante convicção, mas com um afeto em seu tom que não passou despercebido - ele não pode fazer nada comigo. O Vicente me garantiu, e depois de tudo que aconteceu hoje eu realmente acredito nele.
Francesco ergueu as sobrancelhas surpreso, mas deu de ombros. Ele parecia saber o que estava dizendo.
- Estudante em São Paulo né? - Francesco alfinetou.
- Pois é, não é...
Às vezes era necessário rir para não chorar...
- Mas então - Henrique fez questão de mudar de assunto antes que seu pai arruinasse a noite mesmo indiretamente - o que duas pessoas fazem quando acabam de se conhecer se não rir e conversar?
- Olhe, que eu bem me lembre você me maltratou - Francesco o provoca com um sorriso enorme no rosto - "Boa sorte, Villamazzo".
Ele o imita com uma voz caricata. Henrique aperta os olhos para ele.
- Você nunca vai superar não é? - ele dá a mordida final em seu "churros italiano" e limpa a ponta dos dedos no guardanapo.
- Está no sangue Villamazzo ser rancoroso, acredite - Francesco se defendeu, finalmente conseguindo um riso do Castilho - Mas bem, respondendo à sua pergunta, como eu sou uma pessoa muito receptiva e amável com quem eu acabo de conhecer, do contrário de certas pessoas... - Francesco não perdeu a oportunidade. Henrique fingiu nem ligar - Eu gosto de exibir minha coleção de revistinhas de super-herói. Só que, é lá dentro de casa, e imagino que gostaria de ficar mais na sua primeira festa não?
Henrique deu uma olhada em volta. Gostaria mesmo de ficar, estava sendo estranhamente engraçado ver César tentar dançar fandango. Porém havia uma vontade maior que ele ainda não havia saciado.
- Nós voltamos depois.
Ele sugeriu sem dificuldades. Francesco franziu as sobrancelhas e sentiu vontade de rir de repente, sem saber exatamente pelo quê - ou sabia sim, mas preferiu guardar para si. Henrique ainda não devia estar assim tão corrompido.
- Tudo bem então - Francesco deu um pulo de sua cadeira e se curvou estendendo o braço direito, dando passagem para Henrique - primeiro os mais velhos.
Enquanto passava por ele, Henrique o olhou de canto com um sorrisinho mordaz. Francesco sorriu ainda mais, sentindo o coração saltar dentro do peito.
Não havia mais ninguém como ele.
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HERDEIROS
RomanceDetentores da maior vinícola do interior de Santa Catarina, a família Villamazzo nunca soube o que é ter problemas. Imigrantes italianos, todos os cinco filhos do Coronel Carlos Villamazzo toda vida foram criados a pão de ló, e esta era a única vida...