XXVI. À moda italiana

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Não havia tradição mais italiana para os Villamazzo do que a pisa das uvas, principalmente para Vitória.

Tendo pais e tias de origem italiana toda vida ao seu redor, não havia nem como fugir das tradições, cultura e festejos do país. A infância e adolescência foram marcadas por idas à igreja católica, por feriados tradicionais, comidas típicas, palavras, músicas e até ditados populares em italiano... Mas ainda assim não havia dia em que sentia mais sua linhagem siciliana correr nas veias do que no dia da Pisa das Uvas.

Quando criança era seu dia favorito, lembrava até mesmo de um dia desejar trocar seu aniversário pelo festejo. Adorava ouvir as histórias de seus pais sobre a pequena vila na Sicília onde viviam e ver as mesmas fotos da família pela milionésima vez, como foi a vinda da Itália para o Brasil, sobre o navio de imigrantes, como a Vinícola Villamazzo surgiu e ascendeu. Mesmo depois de adulta continuava achando todas aquelas histórias mágicas, e uma verdadeira prova de que sonhos podem se realizar se você tiver ousadia, coragem e persistência (e um pouquinho de amor, claro).

A pisa das uvas era uma tradição que o Coronel Villamazzo havia imposto quando colheu a primeiríssima safra de uvas de seu parreiral: um 1/3 das uvas colhidas seriam pisadas pela família, para que os vinhos deem bons lucros e sorte para a próxima safra. O festejo acontecia sempre um dia antes da grande festa da uva aberta para todos da cidade, mas naquele ano as coisas seriam um pouco diferentes pois a festa da uva não aconteceria pois não havia safra o suficiente que tenha resistido a tempestade. Então, o que havia resistido, ao invés de ser vendido foi destinado a tradição sem qualquer questionamento.

Traria sorte. Todos contavam com isso.

Naquele ano a festa estava montada no mesmo lugar de sempre ao lado do parreiral, há alguns metros da casa grande e de frente a adega onde os barris de vinho ficavam, o espaço estava separado do restante da fazenda por arcos de flores brancas, arbustos e pequenos varais com fotos da família penduradas. Haviam algumas mesas e cadeiras espalhadas por perto da fogueira já acesa, com taças e garrafas de vinho tinto em cima de cada uma, além da grande mesa cheia de doces e salgados pouco mais atrás da grande estrela da noite, e que merecidamente ficava bem no centro: o lagar, um grande tanque de madeira onde as uvas seriam pisadas no ponto alto da comemoração.

- Vitória! Aqui!

Assim que a viu, Tia Luzia acenou da mesa de comidas. Vitória acenou de volta equilibrando numa mão a bandeja que trouxera da cozinha.

- Era só essa, Tia? - a garota colocou na mesa as fatias de torta de atum cortadas em quadrados desiguais pela quantidade de recheio que transbordava das bordas.
- Era sim meu bem, obrigada - Tia Luzia sorriu para Vitória e continuou distribuindo os bolinhos com recheio de geleia de sua forma para os pratos de porcelana, até que, sem tirar os olhos de seu ofício, ela disse: - os brigadeiros são para depois da pisa das uvas, Chiquinho.

De primeira Vitória olhou em volta e ficou confusa pois não havia qualquer sinal de seu irmão caçula, mas então Tia Luzia indicou com o queixo para o canto da mesa, onde uma mão muito da nervosa surgia de debaixo da mesa prestes a agarrar uma porção de docinhos.

- Você foi pego, Frances! - Vitória reafirmou.
- Ai que coisa, como fazem isso? - Francesco se pós de pé e foi andando insatisfeito até o lado da Tia.
- Anos de experiência! - Tia Luzia riu e beliscou uma das orelhas do garoto.
- Deixa eu pegar um brigadeiro, Tia Luzia! Só unzinho!

Francesco tentou sua melhor carinha de cachorro pidão, mas não teve jeito.

- Não Chiquinho, hoje não vou poder te dar essa colher de chá. Deixe só que o restante dos convidados chegue e você poderá se esbaldar! Tudo bem?
- Tá...

Francesco fez bico, Tia Luzia acariciou seus cabelos num afago maternal e saiu com algumas bandejas debaixo do braço, indo pelo caminho que levava de volta à cozinha da casa grande.

- Os Castilho já chegaram? - Vitória perguntou baixo a Francesco.
- Estão ali e... ali.

Francesco indicou com o dedo para Firmino que estava perto da fogueira, numa prosa junto ao casal Villamazzo. E indicou também para César, que tomava uma taça de vinho junto a Marinês num cantinho perto da parede da adega. Vitória olhou em volta à procura de Vicente, mas não havia qualquer sinal dele.

- Não chegou ainda - vendo o olhar de Vitória, Francesco respondeu antes mesmo que a irmã perguntasse - é ele quem está faltando para que eu finalmente possa comer esses docinhos...

Tentando ser discreta, Vitória olhou para os lados averiguando se não havia ninguém de olho e, sorrateira como só uma ladra profissional de docinhos de festa poderia ser, foi como quem não quer nada até a ponta da mesa e surrupiou dois brigadeiros da bandeja. Em seguida, correu até o outro lado da mesa onde estava o irmão, que a observava em cada movimento furtivo de canto de olho, e o entregou pelas costas o mais discreto que pôde.

- Nosso segredo - ela sussurrou com um sorriso no rosto, Francesco resistiu a olhar para ela, pois o brilho em seus olhos poderia os denunciar.
- Você é a melhor irmã do mundo - ele sussurrou de volta.
- Eu sei.

Ao mesmo tempo, os dois enfiaram rapidamente o brigadeiro de uva na boca, ressonando um "hmmmm" sincronizado que os fez rir imediatamente.

Aqueles dois eram almas gêmeas.

Vitória ainda lambia os dedos sujos de açúcar cristal quando viu duas figuras montadas a cavalo se aproximando de onde a festa estava acontecendo.

- Ei, olha lá - Francesco lhe deu um tapinha no braço.
- Estou vendo - a sinfonia de cascos na terra ficava mais alta cada vez que a dupla se aproximava, o restante da família também se atentou a chegada - o marrom com branco é o cavalo do Vicente, deve ser ele.
- Parece que sim, mas ele está acompanhado! Mas quem será que... Espere um pouco aí! - Francesco apertou os olhos, e então os abriu de uma vez, espantado - ah mas não é possível...

Foi a vez de Vitória apertar os olhos e prestar bem atenção. Eram de fato dois cavalos, o marrom com branco que ela reconheceria em qualquer lugar pois era igual ao dela, que era o de Vicente, e ao seu lado no mesmo trote, vinha um cavalo branco de crina loira montado também por um homem. Vitória não o tinha reconhecido até estarem bem mais perto, mas quando chegaram a entrada da festa, ela entendeu o porquê do espanto de seu irmão.

Quem vinha montado no cavalo branco ao lado de Vicente era ninguém mais ninguém menos que Henrique.

Àquela altura todos observavam a chegada dos dois, mesmo que cada um tenha tido sua reação. Amália, Guilherme, Nininha e Marjorie, sentados juntos numa das mesas, eram os que estavam mais perto da entrada quando os irmãos Castilho desceram de seus cavalos. Assim que os dois passaram por eles todos os quatro acompanharam com um olhar bem curioso, Nininha foi a única a dizer algo, mas foi um cochicho no ouvido de Marjorie que permaneceu insípida, sem qualquer expressão que pudesse denunciar o que ela havia ouvido.
Mas o que realmente chamou a atenção de Vitória - e com certeza de Francesco, pois ele o estava olhando no momento em que ela também percebeu - foi a reação de César.
César estava pálido feito um defunto vendo aquela cena, ele sequer piscava. Marinês, com uma rara preocupação no olhar, dividia sua atenção entre os recém chegados e o estado de choque do namorado. Pelo visto não foi só os Villamazzo que não haviam sido avisados da surpresa.

Francesco deu um pequeno sorriso maléfico.

Os dois irmãos andaram lado a lado pelo gramado sob o olhar atento de todos. A questão era que Vicente todos ali já sabiam em quem era, o que já não se podia dizer do pobre Henrique.

O garoto mal tirava os olhos do chão e apertava os dedos das mãos nervosamente, parecia prestes a sair correndo a qualquer momento com tanta atenção sobre si. Vitória ficou apreensiva por ele. Ela sabia das desavenças de Vicente com Firmino e como Henrique era um ponto crítico. Aquele aparecimento poderia simplesmente mudar tudo dali para frente.
Mas Vicente parecia completamente seguro do que estava fazendo, e mais do que seguro, totalmente determinado. Desde que descera do cavalo ele não tirava os olhos de Firmino. E Firmino, diferentemente de César, não parecia minimamente surpreso, pelo contrário, encarava o filho mais velho de volta numa fúria silenciosa.

- Boa noite Coronel, Senhora Villamazzo - educadamente Vicente fez uma mesura aos anfitriões - perdoem o atraso.
- Não se preocupe, ainda está em tempo - o Coronel também acenou com a cabeça e olhou para Henrique - vejo que trouxe um acompanhante.

Henrique ergueu os olhos do chão encontrando os olhares de Pilar e do Coronel em seu rosto, voltou a olhar para o chão com as bochechas coradas meio segundo depois.

- Este é um evento de família, não poderíamos vir com membros faltantes - Vicente tocou o ombro de Henrique e sorriu afetuosamente - Gostaria de fazer as honras de apresentá-lo, meu pai?

Vicente olhou para Firmino com um sorriso simpático demais. César permanecia estático, o casal Villamazzo e todos bem atentos ao que Firmino diria. Francesco cruzou os braços e parecia até estar prendendo a respiração.

Não vendo outra saída, Firmino toma o restante do vinho em sua taça em um único gole, pigarreia e pega um novo charuto dentro do paletó.

Era agora.

- Este garoto é meu filho, Coronel.

Francesco arregalou os olhos sem acreditar, Nininha levou as mãos à boca. Henrique ficou tão surpreso que qualquer timidez que estivesse sentindo até segundos atrás sumiu completamente, ele encarou o pai no mínimo chocado. Vicente só continuou sorrindo.

- Cadê seus modos, garoto? - Firmino repreende com a voz áspera e puxa a fumaça do charuto - os cumprimente.

Completamente desprevenido, Henrique abre a boca mas não sai uma só palavra.

- O que está havendo? - Tia Luzia perguntou a Vitória, que mal havia visto quando a senhora retornou.
- O Vicente chegou... - Vitória respondeu sem tirar os olhos dele e de Henrique.
- ...e trouxe o segundo irmão - Francesco completou com um ar tragicômico na voz.
- Segundo irmão...? - Tia Luzia questionou confusa, e também passou a observar.
- O amigo nunca havia comentado sobre ter um terceiro filho - foi a vez do Coronel questionar a Firmino, seu tom dançando entre a cordialidade e a desconfiança. Pilar acompanhava a conversa atentamente, segurando sua taça de vinho branco com a ponta dos dedos.
- Não havia porquê - ele solta a fumaça para cima, que ondula até ser levada pelo vento - não é de sangue.
- Não é de sangue?! - Pilar exclama acidentalmente, pigarreando logo em seguida na tentativa de se recompor – digo, se ele é seu filho ele....
- A mãe dele era uma cozinheira da fazenda, foi embora e o deixou para trás - Firmino justificou logo com uma indiferença cruel, Henrique se encolheu com o olhar triste de Pilar - a Vivian tinha acabado de perder um filho então se afeiçoou e resolveu criar.
- Oh Vivian... que coisa, eu não me lembro de já o ter visto antes, nem mesmo no funeral da própria Vivian - Pilar disse com um sorriso gentil. Dava para ver que era uma dúvida genuína.
- Ele não mora aqui, estuda em São Paulo desde os quatro anos de idade - Firmino finalmente olhou para Henrique - está só de passagem.

Os dois se encararam por breves segundos, até Firmino olhar para o céu e baforar o charuto mais uma vez.
Uma mentira, claro. Henrique não podia dizer que estava surpreso em ouvir o pai tratá-lo como um bichinho de estimação.

- Bom, se é assim, seja bem vindo de volta, querido - Pilar sorriu, tentando não deixar o choque se sobressair à classe - Como se chama?

Henrique olha para Vicente como se pedisse permissão, Vicente acena com a cabeça e sorri.

- É Henrique - acanhado, ele aperta a mão de Pilar e do Coronel - é um prazer, ahm, conhecê-los, Senhor e Senhora Villamazzo.
- É um prazer conhecê-lo também, Henrique - o Coronel sorriu de forma receptiva - fique à vontade, essa festa agora também será para comemorar sua volta.
- Obrigado - Henrique sorriu quase emocionado, Firmino olhou para o chão sentindo o gosto amargo do orgulho ferido.

O pai podia não o querer ali, mas de alguma forma, mesmo em meio a uma mentira, ele sentiu com a cordialidade dos Villamazzo que podia sim ser uma pessoa da qual poderiam gostar. Ainda havia como ter uma vida normal longe da paredes do casarão mesmo após tantos anos. Vendo o sorriso no rosto do irmão, Vicente afagou seu ombro em apoio.

- Eu te falei que ia dar certo - ele sussurrou e sorriu.
- Bem, já que estamos todos aqui presentes, acho que já está na hora de começar a pisa da uvas, Hm? - Pilar empolgou-se.
- Ai finalmente, ótima ideia! - Em apoio, talvez muito influenciado pelo seu ódio aos vestidos brancos que as mulheres da família só podiam trocar depois da pisa, Amália se levantou da mesa e puxou Guilherme consigo.

E os dois saíram correndo na direção da adega para pegar os sacos de uva, Tio Sandro já os aguardava na porta.

- Bom, eu vou ajudá-los - o Coronel puxou as mangas da camisa.
- Nós vamos - Firmino jogou o charuto na fogueira, disposto a sair dali o quanto antes - não é por ser visita que tenho de ficar encostado, não é?

Ele deu uma gargalhada estrondosa e saiu, o Coronel riu baixinho e negou com a cabeça. Mas, antes de sair, olhou para Henrique novamente.

Por alguns breves momentos Henrique pensou que ele lhe diria alguma coisa, mais um bem-vindo, ou até mesmo que voltaria atrás em sua cordialidade por ele não ser um Castilho legitimo. No entanto, num gesto silencioso e quase paternal, o Coronel apoiou uma mão no ombro dele e sorriu.

- Aproveitem - ele fez uma mesura com a cabeça e saiu, seguindo Firmino.

Henrique o seguiu com o olhar se sentindo anestesiado. Não sabia se aquele tinha sido um gesto de pena por sua história trágica de abandono parental, mas mesmo se tivesse sido, agora ele entendia o porquê de Francesco idolatrar tanto o pai. Com um único sorriso, ele se sentiu mais acolhido do que nunca havia sido em quase 18 anos de vida.

- Isso quer dizer que ele gostou de você - Pilar comentou com humor, conseguindo um sorriso dele - sabe que eu tenho um filho mais ou menos assim, do seu tamanho? Talvez vocês se deem bem.
- Ah é? - Henrique comentou, Vicente riu disfarçadamente.
- É sim! Ele está ali! Tome Vicente - ela entregou sua taça de vinho nas mãos de Vicente - vamos lá conhecê-lo.

Como uma verdadeira mãe em festa infantil, Pilar entrelaçou seu braço ao de Henrique e caminhou com ele pela festa. Henrique ainda olhou para Vicente que ficou para trás, em resposta ele ergueu a taça num brinde e riu.

Foi dada sua benção.

Sob guarda de Pilar - que a propósito tinha um cheiro muito chique, daqueles perfumes que a gente não sabe dizer do que é, mas cheira chiqueza - Henrique foi levado até a mesa de comidas, que não era muito longe de onde estava antes. Assim que se aproximou de Vitória, Tia Luzia e Francesco, ele percebeu a situação.

Atuação nunca foi seu forte, mas dessa vez ele teria que caprichar.

Os três perceberam a aproximação de modo quase instantâneo, mas dá mesma forma disfarçaram fingindo estar numa conversa entre si nem ligando para o que estava acontecendo ao redor. Henrique se sentiu grato.

- Francesco! Te trouxe um amiguinho.

Toda sorridente, Pilar apresentou Henrique o segurando pelos ombros. No momento em que Francesco ouviu a palavra "amiguinho", quase engasgou com o pedaço da torta de atum que havia acabado de morder. Henrique teve de se segurar muito para não cair na risada. O sorriso de Pilar desapareceu em segundos.

- Ai Henrique, perdonami pelo comportamento do meu filho caçula - Pilar respirou fundo enquanto Francesco tentava se recompor escolhendo entre rir e terminar de engolir. Vitória levou uma mão ao rosto rindo sem que ninguém visse - Francesco este é o Henrique, filho do seu Firmino. Henrique, este é meu filho esganado!

Francesco bateu as mãos na calça nova tirando os farelos da massa da torta e, com aquele ar travesso de sempre, estendeu a mão para Henrique.

- Opa, tudo bom?

Francesco abriu o maior sorriso do mundo, um sorriso que ele nunca, nunca exibiria para alguém que acabou de conhecer (e principalmente que a mãe tenha acabado de chamar de amiguinho).
Foi instantâneo. Henrique sentiu seu corpo inteiro formigar de animação e foi difícil não agarrar Francesco ali mesmo num abraço apertado de meses de saudade.

E só de olhar para ele, para todas as estrelas do céu catarinense refletidas naquele olhar, ele teve a certeza de que Francesco sentiu o mesmo.

- Oi - Henrique sorriu brilhantemente - tudo bem, e você?

Francesco saiu de órbita por um momento, o sorriso tremulou.

- Tudo ótimo...

Vitória cruzou os braços e sorriu. A parte boa de fazer parte de segredos, é que tudo sempre tem mais intensidade quando se sabe da verdade completa.

- Bem, vou deixar vocês se conhecerem sozinhos - Pilar lançou um olhar de alerta para Francesco que estava longe demais para perceber.
- Booom... - Assim que a mãe saiu, Vitória interveio com um sorriso alegre, Francesco sacudiu a cabeça voltando ao foco - me deem a honra de começar. Oi Henrique, eu sou a Vitória a mais nova das irmãs. Está é a Tia Luzia, ela é caseira daqui da fazenda e cuida de nós praticamente desde que nascemos.
- Prazer conhecê-las - ele apertou a mão das duas.
- É um prazer também, Henrique. Você é um menino muito bonito e muito educado assim como seu irmão.
- Ah, gentileza sua, senhora.

Assim que Henrique sorriu cheio de vergonha, instantaneamente algo mudou na feição de Tia Luzia. Como se ela tivesse acabado de ter um estalo.

- Desculpe, meu bem - Tia Luzia franziu as sobrancelhas - quantos anos tem mesmo?

Antes que Henrique pudesse respondê-la, uma comemoração recheada de palmas e sorrisos irrompeu a conversa quando o primeiro saco de uvas foi derramado no grande lagar de madeira. Vitória sorriu alegremente.

- Acho que a pisa vai começar - ela voltou-se novamente para Henrique e sorriu - foi muito bom vê-lo, Henrique. Sinta-se em casa e não deixe que o Francesco te leve para o mau caminho.
- É essa a visão que você tem de mim? - Francesco fingiu-se de ofendido.

Dando uma piscadela para os dois, Vitória saiu indo para perto das irmãs enquanto o Coronel e Tio Sandro terminavam de derramar o restante das uvas. Também de lá, Pilar gritou por Luzia, a chamando para a festa.

- Estou velha para essas coisas, Dona Pilar! - Luzia gritou de volta.
- Largue de desculpas esse ano não vai me engambelar! Andiamo!
- Vem Tia! - Marinês chamou também.
- Ora... - Tia Luzia riu e apoiou as mãos na cintura - Bem meninos, acho que não vai ter jeito - ela desamarrou o avental de sua cintura - depois conversamos melhor, oportunidade tenho certeza de que não vai faltar!

Ela deu um último olhar saudoso para Henrique, ele a olhou de volta e sorriu, não havia muito o que fazer além disso.

- Comportem-se, Hm? - ela afagou o cabelo de Francesco e deixou o avental sobre uma das cadeiras da mesa mais próxima, indo até o restante das mulheres.

Finalmente sozinhos, Henrique e Francesco finalmente olharam um para o outro com um sorriso frouxo no rosto.
Henrique parecia um verdadeiro aristocrata. O terno que vestia era de um tom de verde oliva um pouco mais escuro que a cor de seus olhos, a gravata modelo comum estava perfeitamente atada a gola da camisa branca, e os sapatos marrons lustrosos e perfeitos. Estava impecável da cabeça aos pés, não muito diferente do comum, mas definitivamente não havia ninguém mais elegante que ele naquela noite.

- Villamazzo - Henrique começou, Francesco não poupou um sorriso.
- Castilho - Francesco apoia as mãos nos bolsos da calça - ou melhor, é você mesmo? Afinal, o Castilho que eu conheço costuma ser mais discreto, de poucas aparições...
- Sentiu minha falta, italiano?

Em um tom ácido de provocação, Henrique estica o braço para pegar uma taça cheia na mesa atrás de Francesco. Com um pouco de sorte seria suco de uva.

- Não mais do que você sentiu a minha, aposto.

Em meio a um sorriso, ele dá um pequeno gole. Vinho tinto.

- Vejo que alguns meses não mudaram seu lado engraçadinho.
- Você também não mudou nada, sabia? - Francesco cruzou os braços e tombou a cabeça. Um sorriso doce o tomou - Mesmo após quatro meses você continua ranzinza e muito bonito.

Em meio a uma risada de surpresa, as bochechas de Henrique coraram imediatamente e estava longe de ser pelo álcool. Sabendo do efeito que causou, Francesco pegou a taça da mão de Henrique.

- Salute!

Ele ergueu a taça em saudação e passou por Henrique, indo para onde o restante das pessoas já formavam um círculo para ver a pisa. Henrique virou-se devagar e observou Francesco se afastar um pouco até enfim segui-lo e se colocar ao lado dele na roda, eles trocaram um leve olhar de canto e Francesco bebericou o vinho, deixando o flerte no ar.

Henrique fechou os olhos brevemente e sorriu de canto, se perguntando como foi se envolver com alguém tão pilantra.

Assim que todos se reuniram em volta do lagar numa meia lua e todas as mulheres já estavam em suas posições lá dentro, Pilar bateu a primeira palma que foi seguida no ritmo pelo restante que assistia da grama, e quando Marinês iniciou a tarantella tradicional italiana que cantava desde os cinco anos com uma voz surpreendentemente doce e afinada, a festa começou de verdade.

Girando as saias dos vestidos brancos que iam pouco a pouco sendo tingidos de vermelho e roxo, conforme a música crescia, não só as irmãs mas Francesco, os pais e até tia Luzia e família cantavam cada vez mais alto, seguindo a letra decorada que fora cantada milhares de vezes naqueles anos todos de tradição, mas que sempre irradiava uma onda de sentimentos inexplicáveis. Era em momentos como estes que Francesco gostava de esquecer o mundo ao redor e apenas observar quem de fato os Villamazzo – e ele incluso - eram.

Vitória e Amália tentavam cantar enquanto riam uma da cara da outra cada vez que beiravam um escorregão, Marjorie tinha um sorriso tão grande no rosto que parecia até outra pessoa, Pilar girava Nininha pela mão fazendo seu vestido e cabelos decorados com flores esvoaçarem, Marinês cantava como um passarinho sorrindo para Tia Luzia. O Coronel cantava alegremente com as mangas da camisa ainda arregaçadas até os cotovelos, numa dancinha desengonçada que arrancou uma risada sincera de Francesco.

Aqueles eram os Villamazzo. Eles tinham suas brigas, suas adversidades, fardos do passado e gritaria recreativa, Francesco sabia bem, mas era inegável o quanto se amavam acima de tudo.

Enquanto observava a família com o coração aquecido, de alguma forma que não soube explicar, talvez instinto, costume ou magnetismo, seu olhar caiu sobre Henrique ao seu lado.

Os olhos do garoto brilhavam e o sorriso não o abandonava um único segundo. Parecia hipnotizando com a música, a dança e toda aquela algazarra que era uma festa tipicamente italiana. Francesco sentiu seu coração ficar pequeno demais de repente.

Ali, o vendo todo feliz, ele quis que Henrique pudesse fazer parte daquilo todos os anos dali para frente, quis ele na família, nas festa da uva, na festa de natal, na festa de ano novo, na páscoa e até fazendo tapetes de sal e serragem no Corpus Christi. Viver com ele e o mostrar tudo que perdeu nesses anos todos... Não era uma ideia estonteante?

Quase delirando de euforia, Francesco sorriu com os olhos se fechando em risquinhos e voltou a olhar para sua família. As uvas já estavam quase completamente esmagadas e a música se aproximava do fim.

E o melhor de tudo, era que aquele querer de Francesco não parecia mais uma ideia tão impossível assim.

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