XXIII - Você sempre me terá

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Anestesiado. Era assim que Henrique se sentia quando entrou em seu quarto com o caderno de desenho e os sapatos encharcados nas mãos e as roupas secas sobre o ombro.
Mesmo após horas fora ainda não havia sinal algum de César. Ele nem notaria que Henrique tinha saído, pelo menos não se o rosto de bobo apaixonado dele não acabasse o denunciando.

Ao passar em frente ao espelho de seu quarto, Henrique conseguiu se surpreender com seu próprio reflexo. Suas roupas estavam amarrotadas e enrugadas, o cabelo úmido e desalinhado, os braços a mostra na regata fina, e aquele sorriso no rosto. Aquela vida toda que ele enxergava no próprio olhar. Parecia uma pessoa completamente do que fora semana passada, ou ontem, ou até mesmo da que era quando acordou ainda naquele dia.

Estava uma bagunça completa, admitia, mas ela primeira vez na vida não ter seguido as regras que ele sempre achou que faria com que fosse melhor aceito, a métrica a qual Vivian o criou a vida toda com os ternos alinhados, educação acima da média e discrição, foi como se ele finalmente se sentisse alguém de verdade.

Ele até podia estar uma bagunça completa por fora, mas por dentro tudo estava alinhado. Tudo estava completo.

Henrique negou com a cabeça e deu as costas para o espelho, era ótimo se sentir completo mas poderia fazer isso também em roupas secas.

Começou deixando seus sapatos em cima do batente da janela sob a luz do sol, colocou seu caderno de desenhos sobre a mesa onde sempre ficava, e ao pegar as roupas sobre o ombro para enfim poder trocar de roupa, ao estender a camisa à sua frente Henrique nem precisou vesti-la para perceber que era uns dois números menor do que seu número. A resposta veio rápido: aparentemente, suas roupas se misturaram às de Francesco e nenhum dos dois havia percebido na hora de recolhê-las.

Lentamente, Henrique aproximou a camisa de Francesco de seu rosto, e com os olhos fechados, inspirou o perfume do tecido. Tinha um cheiro bem suave de sabonete de rosas com um fundo de naftalina. Por instantes de segundos foi como se Francesco estivesse novamente em seus braços.

Ele abriu os olhos novamente e fitou a camisa entre seus dedos. Com um sorriso saudoso nos lábios, abraçou aquela pequena lembrança.

A saudade seria amarga, mas ainda teria um pedacinho dele consigo até que a distância findasse.

***

Francesco entrou em casa pelos fundos, deixando as botas cheias de lama do lado de fora. As roupas estavam parcialmente secas por conta do sol quente da tarde que pegaram no trajeto de volta, mas seus pés ainda estavam úmidos e deixavam um rastro de pegadas no piso marrom da cozinha, Tia Luzia não ficaria muito feliz, mas ele estava tão absorto da realidade que o que normalmente já não o preocuparia, preocupou menos ainda.

Sentia-se leve como uma pluma, não caminhava pelos corredores de sua casa, flutuava! Os músculos de seu rosto já estavam rijos de tanto sorrir e o mundo parecia ter sido tingido de cor de rosa.
Ele não conseguia tirar aquele sorriso, aquele abraço, aquele(s) beijo(s) de seus pensamentos (e nem a incógnita de como Henrique conseguiu esconder por tanto tempo aqueles braços fortes, Francesco nunca acreditaria se não o tivesse visto de regata com seus próprios olhos). Para falar bem a verdade nem estava se esforçando para tirá-lo de sua cabeça, era bom demais sentir aquela euforia correr por seu corpo inteiro, aquela vontade de sair saltitando e dançando por aí. Ele mal havia acabado de deixar Henrique no Casarão e já sentia vontade de correr até lá só para beijá-lo de novo.

Francesco riu de si mesmo. Então estar apaixonado era assim? Se sentia um idiota. Ainda bem.

Quando já estava próximo às escadas para o segundo andar, Frances ouviu risadas e vozes altas vindas da sala de estar, naturalmente algo bem normal para uma família italiana, mas daquela vez o motivo foi esclarecido quando Marinês passou pela porta da sala com um sorriso gigantesco, rodopiando abraçada com o vaso de rosas que estava na cozinha mais cedo.

Mais alguém estava amando por ali.

- Bom dia espiga de milho - Francesco cumprimentou acenando - viu um passarinho verde?
- Ah eu vi sim, vi uma orda de passarinhos verdes, uma família inteira!

Num bom humor estranhíssimo para o normal de Marinês Villamazzo, aos sorrisos, a garota apertou as bochechas de Francesco com uma das mãos e passou por ele entrando no corredor de seu quarto, gritando aos quatro ventos que iria se casar. Francesco negou com a cabeça e riu soprando ar pelo nariz.

Enfim, Castilhos. O que eles fazem com as pessoas é realmente algo perigosíssimo...

Francesco subiu as escadas devagar, mal havia dado seus primeiros passos no assoalho do andar de cima quando ouviu seu nome ser chamado de um jeito meio embolado. Ele olhou para o cômodo de frente para o de seu quarto e viu Vitória escovando os dentes encostada no batente da porta do banheiro. Ela acenou pedindo que ele esperasse, e assim ele o fez.

O mais depressa que conseguiu, Vitória terminou de escovar os dentes e ao sair do banheiro com os cabelos ainda presos num rabo de cavalo baixo, ela passou direto para o quarto de Francesco, abriu a porta e pediu que ele entrasse com um aceno de cabeça.

- Desculpa a cerimônia, é que moramos com mais quatro pessoas - Vitória fechou a porta atrás de si assim que os dois entraram - a casa é grande mas as paredes tem ouvidos.
- A Marjorie tem ouvidos, no caso, e bem afiados - Francesco retificou, Vitória concordou.

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora