Os dois caminhavam lado a lado pela trilha de pedregulhos do imenso jardim da prefeitura, as roseiras vermelhas, brancas e amarelas adornavam os bancos e fontes, além de deixar um perfume suave espalhado pelo lugar com o vento frio da noite. Por mais tensos que Vitória e Vicente se sentissem estando ali juntos, sozinhos, à beira de uma conversa que poderia mudar a visão que um tinha do outro, aquela era uma atmosfera inspiradora para que a situação não se tornasse tão péssima assim.
- Então, aquele garoto é mesmo seu irmão?
Vitória perguntou tentando ser delicada, não diria que conseguiu, pois o maxilar de Vicente ainda estava rígido.- É uma história um pouco longa – ele adiantou – mas, ela começa há dezessete anos atrás quando meu pai teve um caso com uma empregada.
Vitória arregalou os olhos e engoliu seco. Não estava esperando que ele seria tão direto.
Ela não achava o Seu Firmino imaculado, homens respeitados possuem seus podres, mas por algum motivo não pensou que ele teria coragem de trair a esposa, e a Senhora Vivian ter morrido há tão pouco tempo só tornava tudo pior.
- Ela era bem jovem, devia ter uns vinte anos ou um pouco mais que isso, lembro que cuidou de mim e do César quando a minha mãe caiu doente de tristeza depois de perder o que viria ser meu segundo irmão, ela ainda estava mal quando aconteceu. Meu pai não queria lidar com o luto dela, então viu na empregada o que não tinha mais da minha mãe - Vicente suspirou driblando o aperto na garganta que não foi difícil de perceber, ele parecia até calmo por fora mas dava para entender que não era um assunto fácil de se tratar – eu não sei por quanto tempo esse caso durou entre eles, mas certo dia a mulher apareceu grávida e procurou pelo meu pai, mas como esperado ele não quis assumir qualquer responsabilidade.Vitória ouvia tudo atentamente, tentando não esboçar o quanto estava chocada com toda aquela história.
- Então, por motivos que até hoje eu não sei, a minha mãe cedeu todo tipo de ajuda à amante do meu pai. Casa, comida, médicos, enxoval. Tudo, durante toda a gestação. Talvez tenha sido uma forma de suprir a dor de ter perdido um filho, ou uma vingança contra o meu pai pois não era difícil imaginar que ela soubesse, minha mãe sempre foi muito inteligente. Porém, quando a mulher deu a luz, ela deixou o filho recém-nascido para trás sem sequer batizá-lo e foi embora.
- Vicente... – Vitória lembrou do rosto assustado do garoto na cozinha de sua casa, sentiu o coração apertar - Ela sumiu? Assim, sem mais nem menos? Nunca sequer voltou para ver como o filho estava?
Vicente negou com a cabeça. Vitória apertou os lábios, sentindo uma melancolia profunda por aquele garoto.- Que cruel... não consigo nem imaginar a dor que esse garoto não sinta.
- Até hoje não se sabe para onde ela foi, mas duvido que ela tenha se preocupado com o bem estar do Henrique. Ela sabia bem onde estava o deixando, 1925 foi um ano de glória na família, o nosso sobrenome era ouvido por todo o estado quando se falava em gado.
- Ela o deixou por interesse, então?
- Eu quero acreditar que foi por necessidade, foi isso que disse no bilhete - Vicente corrigiu de forma mais otimista - o Henrique teve o melhor estudo, as melhores roupas, a melhor comida. Ele não teria nem metade da criação que teve se tivesse sido levado pela mãe. Talvez sequer estivesse vivo.
- Que coisa, este sim é o verdadeiro significado do "há males que vem para bem" - Vitória estremeceu, com o frio e com a história.
- Eu tinha seis anos quando o Henrique nasceu, era um bebê saudável, gordinho, sorridente, com aqueles olhões verdes. Minha mãe levou a mim e César para conhecê-lo e lembro que ele abriu o maior sorriso banguela quando nos viu - Vicente sorriu, Vitória também - César ficou com ciúmes por ter perdido o posto de caçula, até hoje ele ainda sente um pouco de ciúmes, mas eu não via problema algum em ter mais um irmãozinho para cuidar. Ele foi criado como o filho que minha mãe perdera e o nosso irmão mais novo que nunca chegou. Eu era criança, não tinha ideia de todo o caos que aconteceu até chegarmos ali então era só como se nada tivesse saído dos eixos.
- Certo, mas uma coisa eu não entendi - Vitória franziu as sobrancelhas - se ele foi criado como parte da família, porque eu, e acredito que todo mundo nessa cidade, nunca ouviu falar sobre a existência de um terceiro filho de Firmino Castilho?
Vicente deu um sorriso de escárnio.
- Imagine, um homem com uma reputação firme e grandiosa como a do meu pai, filho do grande produtor rural José Eduardo Castilho, casado com a única herdeira viva do Clã Leão, os fundadores do banco central da cidade vizinha, com todo esse renome sobre os ombros, que coragem ele teria de apostar tudo que conseguiu com sua influência para assumir publicamente que tinha pulado a cerca dentro da casa que morava com os filhos e a esposa?
As palavras de Vicente atingiram Vitória como um balde de água gelada. Era mesmo óbvio. Numa cidade pequena, qualquer burburinho se espalhava com uma velocidade impressionante e algo assim cairia como uma bomba, principalmente vindo da família em questão. Mas algo também insistia em lhe convencer de que talvez Firmino não sofreria tanta represália por isso, não tanto quanto a empregada que engravidou do patrão casado.
- Meu pai nunca concordou com a decisão da minha mãe de criar o Henrique dentro de casa, conosco, como um Castilho legítimo. Eles brigaram sobre isso até o dia da morte dela. Mas ela sempre bateu o pé e defendeu o meu irmão de todo o ódio e desprezo do nosso pai, eles eram extremamente próximos e as vezes parecia que ela era a única pessoa que ele confiava, e quando ela morreu... - Vicente inspirou fundo, buscando as palavras certas - Quando ela morreu foi como se tudo saísse do lugar de novo e...
Vendo o rumo da conversa, Vitória tocou o ombro de Vicente em reconforto. Eles pararam de andar ao chegar de volta a entrada do jardim.
- Eu sinto muito, Vicente, muitíssimo mesmo. Eu estou chocada, confesso, mas as coisas já me parecem claras o suficiente, não precisa contar mais se não se sentir confortável, tudo bem?
Ele forçou um sorriso em meio a tristeza retribuindo a compaixão de Vitória, que lhe apertou o ombro num afago.
- Era do Henrique que você falava naquela tarde então? Sobre ser um irmão melhor.
- Faz sentido agora não? - Vicente riu soprando ar pelo nariz, Vitória sorriu triste - ainda dói falar da minha mãe e sobre tudo isso, mas sabe eu... depois que o seu irmão descobriu e conseguiu tirá-lo do luto com uma facilidade que eu nunca conseguiria, eu comecei a perceber que esse segredo já foi guardado tempo demais e o Henrique sofrido demais. Meu pai não é tudo isso que acham que ele é, e eu me irrito com todas as... canalhices e covardias que ele fez! Eu me esforço pra ser o melhor irmão mais velho pro Henrique todo os dias pela minha mãe, abandonei a universidade pra ser alguém na vida dele, mas tem sido tão difícil, sinto que estou dando murro em ponta de faca e falhando com ele, falhando com a minha mãe. Eu não quero ser como o meu pai.
- Ei não, não fala isso! Você não é como o seu pai, nunca! Viu como o Henrique te seguiu hoje mais cedo? Você contou o maior segredo da sua família pra uma estranha e ainda assim ele confiou em você o suficiente para ir embora ao seu lado. Ele confia em você!
Vitória e Vicente se encararam, até que a garota percebeu que estava com as duas mãos segurando os ombros de Vicente. Ela puxou-as de volta e pigarreou recompondo a postura.
- Desculpe eu... Acho que me emocionei um pouquinho.
Ela sorriu levemente se sentindo um pouco de vergonha por suas reações sempre tão exageradas. Num movimento lento e comedido, Vicente levou sua mão até a mão de Vitória e a segurou delicadamente.
Os dedos dele estavam frios, a temperatura de suas peles se chocou. Ela o olhou levemente paralisada.
- Você não é uma estranha - ele sorriu doce - não pra mim.
Vitória sentiu o ímpeto de puxar sua mão, mas no momento em que encontrou o rosto de Vicente foi como se tudo ficasse em silêncio. O barulho do vento, os grilinhos nas moitas, a música estridente no salão, seus pensamentos medrosos e inseguros. Silêncio.
Ela só ouvia aquele barulho repetitivo e insistente que chacoalhava seu peito numa sinfonia até então nova. Seu coração estava batendo forte, sinalizando de forma mais que clara que talvez Marjorie e Nininha tivessem razão, e ela só não queria ouvir.
- Vitória, eu...
Vicente mal havia começado a falar quando, do arco de entrada do jardim, os dois ouvem passos na grama, risadas e um par de vozes que arrancaram Vitória de seu torpor imediatamente.
Assim que o cabelo ruivo de Marinês apontou no jardim, Vitória puxou Vicente ela mão que ele segurava e os dois se esconderam às pressas atrás de uma parede de rosas amarelas.
Pelo vão entre as folhas e as flores da roseira, Vicente e Vitória observaram César e Marinês chegarem aos rodopios no centro do jardim.
- O que eles fazem aqui? - Vicente sussurrou para a Vitória que pediu silêncio com um dos dedos sobre os lábios.
- Um jardim secreto? Que romântico! - Marinês melodiou apoiando seus braços sobre os ombros de César, que circundava a cintura dela com as mãos - romântico até demais para você, garanhão.
- Eu sou muito mais que um mero garanhão, ruiva - ele pegou a mão dela e a girou como numa valsa - quer ouvir um cortejo?
- Pago para ver! - ela cruzou os braços e riu para o namorado.
- Isso vai ser horrível - Vicente sussurrou como alguém que conhecia bem o irmão que tinha. Vitória continuou observando curiosa pelo que viria.
A passos largos, César soltou a mão de Marinês e foi até um dos vasos de pedra onde havia algumas rosas vermelhas de decoração. Ele pegou uma e, com um sorriso felino, foi desfilando até ela.
- Mari, minha querida Mari - ele ofereceu a rosa a ela - seu cabelo é vermelho, mas não tanto quanto a chama que arde por ti em meu coração!
Vitória e Vicente se entreolharam lentamente em sincronia, e quando perceberam o mini sorriso nos lábios um do outro tiveram que cobrir a boca para que suas risadas não fossem ouvidas.
- Acho que essa foi a coisa mais linda que eu já ouvi alguém dizer pra mim - os olhos de Marinês brilharam em uma intensidade que Vitória nunca havia visto antes, podia jurar que era só mais um cortejo desses e eles correriam pro cartório ainda naquela noite.
Marinês pegou a rosa das mãos de César a jogando para longe e o puxou pela gola da camisa de pirata para um beijo bem acalorado. Vitória se sentiu um pouco envergonhada com a cena, Vicente não parecia diferente quando desviou seu olhar para o céu estrelado.
- Ei espera, ouviu isso? - Marinês se separou de César e apontou com o dedo indicador para cima.
- O quê? - César questionou com um sorriso de quem acabou de acordar de um sonho muito bom.
- Essa música! Eu amo essa música, vamos voltar pro salão!
- Ah mas aqui está tão bom - César tentou beija-la mas Marinês esquivou-se com um largo sorriso no rosto.
- Prometo lhe dar muitos beijinhos mas só depois que dançarmos esta música, vamos!
De mãos dadas,, Marinês e César saíram do jardim quase correndo, suas vozes foram diminuindo com a distância até não serem mais ouvidas.
- Eles já foram - Vitória disse com um resquício de risada em sua voz enquanto dava os primeiros passos para fora da roseira - isso foi hilário, eles estão mesmo apaixonados hein?
- Pois é - Vicente riu - se a sua irmã conseguiu ver beleza nas cantadas baratas do César olha, acho que foram mesmo feitos um para o outro.
- Isso me deixa tranquila, saber que eles se gostam de verdade...
- Eu imagino.
Frente a frente os dois se olharam por alguns instantes, sem saber o que dizer agora.
- Bom, agora que as coisas estão claras eu... vou voltar pro salão, a Amália deve estar se perguntando onde eu me enfiei. Tchau Vicente e... Obrigada, pelas respostas. Seu segredo e o do seu irmão estarão guardados comigo.
- Vitória - Vicente chamou assim que ela lhe deu as costas, ela parou, já sentindo o coração voltar a desenfrear - por favor, não faça isso outra vez.
- Isso o quê? - ela perguntou ainda sem se virar.
- Me deixar.
O ar escapou dos pulmões de Vitória sem que ela percebesse. Sua única reação foi virar-se lentamente de volta para Vicente, com medo do que veria em seu rosto. Mas ao olhá-lo, tudo que ela encontrou foi um Vicente com um sorriso tímido, bochechas coradas, apertando nervosamente os nós dos dedos da mão em busca das palavras certas a se dizer.
Vitória ficou surpresa em vê-lo daquela forma. Tão distante do homem sério, confiante de suas decisões. O primogênito Vicente Leão Castilho. Mas a cada vez que se viam, que conversavam, mais ela tinha certeza de que era tudo um disfarce seguro para um simples jovem de 23 anos. E particularmente, ela diria até que gostava mais dele assim.
- Por favor me diga, eu a incomodo?
- Imagine Vicente, claro que não - Vitória explicou com pesar - mas, você sabe! A Marinês, ela...
- A Marinês acabou de sair daqui de mãos dadas ao meu irmão declamando cortejos aos ventos!
- Você não a conhece, não sabe o temperamento difícil e todos os malabarismos que faço para pelo menos termos uma conversa civilizada!
- E os seus sentimentos? Também são malabarismos?
Vitória arquejou, sentiu o coração pesar no peito. Ela odiava pensar assim, mas algumas verdades são impossíveis de se negar.
- Me diga, ela deixaria o César se você dissesse que o ama? - Vicente questionou - ela abdicaria de tudo que gosta só para ficar bem com você? Abdicaria do amor que sente?
- Você acha que é fácil para mim? - a voz dela tremulou - eu não espero que ela me compense, eu só faço o que é certo! E... e se for necessário...
- Eu a amo, Senhorita Vitória!
Vicente a interrompeu conseguindo uma expressão surpresa de Vitória.
- Desde que te vi na igreja naquele primeiro dia - ele começou a caminhar até ela, que o encarava sem piscar - desde que nos encontramos no saguão da sua casa e arquitetamos aquele plano maluco, em cada dia que conversamos por menos de dez minutos, em cada palavra dita, olhar e gesto eu a amo. E eu lhe juro, se não me quiser eu a deixarei em paz e nunca mais precisará se preocupar comigo, mas caso contrário, não me peça para desistir e aceitar que realmente acredita que seus sentimentos não importam. Porque importam, e eu queria que soubesse disso.
- Naquele dia você me disse que queria apenas ser meu amigo - ela falou olhando diretamente nos olhos dele.
- Bem... - um sorriso tímido se afrouxou no rosto dele - Eu menti.
Numa ação quase involuntária, Vitória observou o rosto de Vicente e levou sua mão ao rosto dele, usando a ponta dos dedos para afastar os fios de cabelo soltos em sua testa. Ele fechou os olhos e suspirou profundamente sentindo o toque dela em sua pele.
Vitória se lembrou do que Marjorie havia dito a ela há poucas horas atrás sobre receber, não só doar, lembrou-se de Nininha a incentivando a falar com Vicente, lembrou-se até mesmo de Marinês e César realmente felizes e apaixonados um pelo outro. Marinês conseguiu o que queria, estava com um Castilho! Não havia mais motivos para intrigas, e se houvesse, por que tinha de haver?
Quando as pálpebras de Vicente se levantaram novamente e seu olhos negros cintilaram com a luz prata da lua, ela sentiu um arrepio no corpo todo. Não dava para negar, ele tinha um efeito sobre Vitória que ela sabia que poderia se tornar cada vez mais perigoso se continuasse fugindo dele e do que ele a fazia sentir.
E se não há como fugir, o que resta, é se entregar.
- Talvez eu tenha mentido também.
Ela disse e sorriu levemente. Sendo o suficiente para que fosse batido o martelo.
Como se combinassem, Vitória deixou uma mão no ombro largo de Vicente, as mãos de Vicente acolheram o rosto de Vitória a puxando para perto e enfim seus lábios se tocaram num beijo explosivo, Intenso. Libertador. Como se esperassem por aquele momento há mais tempo do que tinham noção.
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HERDEIROS
RomansaDetentores da maior vinícola do interior de Santa Catarina, a família Villamazzo nunca soube o que é ter problemas. Imigrantes italianos, todos os cinco filhos do Coronel Carlos Villamazzo toda vida foram criados a pão de ló, e esta era a única vida...