XX - Caindo em tentação

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- Francisquinho seu malandro!!!!

Com a feição de quem via seu maior ídolo, assim que Francesco entrou no salão, Nando o abraçou forte levantando-o do chão e o sacudindo como um boneco de pano.

- Sizenando, não me faça xingar a sua avó antes de meia-noite! - Francesco riu e entortou a coroa de príncipe que o amigo usava assim que ele o colocou de volta no chão.

Sizenando Rubião Junior, o Nando, era idêntico ao pai. Alto, com braços forte e pernas compridas, pele retinta e um par de grandes olhos escuros. Vivia com um sorriso torto no rosto e era fácil o mais bem vestido dali. E não era para menos, o pai devia ter gostado uma nota no traje de príncipe que ele usava, e não dava para dizer que não caiu como uma luva em seu corpo, posto e personalidade. Era perfeito pra ele.

- Faz dois meses que eu não ralho com você, o que esperava? Que eu te chamasse pelo seu nome de batismo?
- Isso sim seria ralhar com ele - logo ao lado de Nando, Miguel citou - adorei a fantasia de bobo da corte inclusive, é a sua cara.
- Eu não vou nem comentar a sua, já que você é literalmente um santo.

Francesco e Nando juntaram as mãos e imitaram da melhor forma um anjo caricato com direito até a canto lírico. Miguel revirou os olhos e riu.

- Vocês não fazem ideia de como posso ser mau! - Miguel disse enquanto os três adentravam o salão.
- Aham, tipo da vez que você não dormiu porque ficou devendo quinze cruzeiros pra senhora da vendinha - Nando relembrou.
- Não foi quinze - Miguel fez uma pausa dramática - foi dez.
- É um anjinho mesmo - Francesco riu e apertou as bochechas do amigo - mas então Nando, o que o senhor Prefeito encomendou pro buffet dessa vez?
- Para sua sorte estou por dentro de todo o cardápio da noite, papai me colocou para trabalhar esse ano e eu escolhi ficar ali pela cozinha, sabe como é, tenho um legado a seguir na política e é preciso conhecer de perto os mais diversos núcleos.
- Cristo, só vai ter manjar de coco na mesa! - Miguel estremeceu, Francesco gargalhou.
- Manjar de coco e quem sabe, uns beijinhos da Lavínia.

Sonhador, Nando acenou para uma garota morena gordinha servindo champagne numa bandeja para um casal vestidos de sereia e marinheiro. Ela acenou de volta para Nando com um sorrisinho.

- Legado na política não é? - Francesco citou.
- A Lavínia é linda, inteligente, um doce! Que nem os quindins deliciosos que ela faz. Ela é mineira, sabiam? O sotaque dela, aaaah... - Nando levou as mãos ao peito e fechou os olhos, Francesco abriu a boca e apontou para a língua, Miguel riu - ah meus companheiros, vocês estão perdendo tempo sendo tão recatados.
- O Francesco está perdendo tempo! Porque ele já tem uma admiradora à espera - Miguel sorriu afiado.
- Não faço a mínima ideia do que você está falando - Francesco desconversou.
- A Lurdinha já perguntou por você hoje inclusive, devia dar uma chance pra ela, Francisquinho! Tenho certeza que ela largaria o noivo no mesmo momento pra ficar com você. Seria ótimo não é Miguel? O Francesco ia entrar pra sua família!

Nando deu um tapinha no ombro de Miguel que riu de leve.

- É! Daí só faltaria você casar com uma das minhas irmãs, então estaríamos todos reunidos na ceia de natal - Francesco ironizou.
- Adorei a ideia, a Vitória ainda está solteira? - Nando se animou.
- Pra você ela está casada há cinco anos.

Os três já se aproximavam da mesa de petiscos quando Francesco avistou Vicente andando no meio do salão, na direção da entrada. Ele estava chique como um cavalheiro do século passado. Parecia até que ele e Vitória tinham combinado.

Sentiu um arrepio percorrer sua espinha e o rosto de Henrique voltou a sua memória com força total. Mesmo depois de tantas horas ele jurava que ainda podia sentir a temperatura das mãos de Henrique em seu rosto. Se sentiu tonto com a lembrança.

- Francesco? - Miguel perguntou ao perceber que a pele do amigo perdeu a cor - está tudo bem? Está passando mal?

Nando também notou a estranheza de Francesco e ficou confuso com o estado repentino do italiano. Diria até que nunca o viu assim.

- Estou sim, eu... Eu acho que me desacostumei com multidão, muito tempo no marasmo da Fazenda Villamazzo, sabem como é - ele deu um sorriso nervoso
- Quer sair pra tomar um ar? A gente te espera - Nando sugeriu, Francesco levou a mão a testa e negou.
- Não, estou bem.
- Está sim! - Miguel incorporou seu posto de mãe do grupo e apoiou as mãos na cintura - ande, a porta dos fundos está aberta. A comida não vai correr da mesa!

Francesco encarou os olhos impetuoso de Miguel e enfim, cedeu. Talvez precisasse mesmo de um pouco de ar afinal até agora não conseguiu ter um momento a sós consigo mesmo para pôr as ideias no lugar.

- Certo - Francesco disse arrastado e pegou uma taça de champagne da bandeja do garçom - Volto já.

Nando e Miguel observaram o amigo sumir entre as pessoas no mínimo espantados.

- Desde quando o Francesco bebe?! - Nando exclamou espantado.
- Não sei não - Miguel encolheu os ombros, calculando suas próprias teorias. Nando o olhou e apertou o queixo
- Por que será que eu não acredito?

Miguel o olhou de volta de canto e engoliu seco. Ele já começava a formular uma mentira quando seus olhos azuis enxergaram de relance uma figura não muito indicada num momento estranho como aquele seguindo Francesco pelo caminho da porta dos fundos.

- Nando! Nando! Olha!

Miguel bateu incessantemente no braço de Nando, até ele olhar.

- Cacete é a...
- Lurdinha - Miguel completou num tom que dançava entre o cômico e o dramático bem condizente com a situação.

Assim que notaram a garota vestida de bailarina sumir pelo corredor atrás de Francesco, nem precisaram combinar pra sair correndo instantaneamente atrás deles na tentativa de impedir o apocalipse que seria caso alguém visse o que poderia estar prestes a acontecer.



Sair do salão pareceu mesmo uma boa ideia quando o vento frio externo soprou a testa úmida de suor de Francesco. Além dos latões de lixo, não havia mais nada nos fundos do salão da prefeitura, e, bom ou ruim, todo aquele silêncio colocou Francesco totalmente à deriva de seus pensamentos. Ele então encostou na parede e fechou os olhos.

Era para estar tudo bem. Ele havia conseguido enrolar o Firmino com maestria e não estava tão preocupado com o fato de agora Vitória também saber da existência de Henrique, pois confiava nela até mais do que em si mesmo. Ela manteria segredo, ele tinha certeza.
Estava tudo bem e teria ficado tudo bem, a não ser pelo fato de Henrique ainda estar ali, como uma pulguinha, preso em sua cabeça.
Isso já havia acontecido antes, quando se conheceram e ele estava curioso pra saber os segredos dos Castilho. Mas agora era um sentimento completamente diferente de curiosidade.

Ele não parava de pensar no rosto dele perto do seu, na mão dele em sua nuca, no calor do abraço dele, no olhar dele em seu rosto, em como ele parecia tão bonito hoje à tarde e sua voz tão arrepiante, em como já sentia falta dele antes mesmo de suas malas chegarem ao internato.
O coração disparava, o rosto queimava e ele sentia uma vergonha e vontade de sorrir além do que conseguia aguentar. Só queria cobrir o rosto e se esconder em um canto até parar de se sentir tão magnetizado, tão fascinado, tão... atraído...?

Francesco olhou para a taça de champanhe em sua mão, as bolhinhas cintilavam com as luzes dos postes. De uma vez, ele virou a taça e a bebida desceu estranho em sua garganta lhe provocando uma careta. Horrível, mas jurava ter esquecido os problemas por pelo menos uns vinte segundos.
Mal o champanhe havia chego em seu estômago ameaçando reacender suas questões quando Francesco foi despertado por uma voz que ele já conhecia de muitos anos, mas que sempre conseguia o assombrar todas vezes que voltava a seus ouvidos.

- Finalmente - a voz feminina manhosa soou no silêncio. Francesco abriu os olhos imediatamente e encontrou exatamente o que já esperava - eu esperei por esse momento a minha vida toda!

Com o cabelo quase branco torcido em um coque no alto da cabeça, um tutu prata com pedrarias e aqueles olhos azuis iluminados pela lua, Lurdinha estava mais para Rainha da neve do que bailarina. No entanto, algo nela queimava o suficiente para o apelido nunca ter funcionado de verdade.

- Lurdinha...?! - Francesco gaguejou se apegando a parede. A garota veio andando em sua direção devagar - quem te mandou aqui?
- Nossos destinos estão fadados a se entrelaçarem sozinhos, benzinho - ela sorriu - eu estive te procurando desde que cheguei a festa e finalmente consegui te ver a sós.

Ela se pôs em frente a Francesco que ainda tentou fugir, mas Lurdinha apoiou suas mãos na parede ao lado do rosto dele e o encurralou. Ele engoliu seco. Para quem só tinha 1,59 de altura ela dava bastante medo.

- E nem pense que vai fugir de mim outra vez.
- Lurdinha, ahm, acho que este não é o melhor jeito de conversarmos, sabe? Você está noiva e...
- O Valério é um banana, papai quer nos juntar por dinheiro, você sabe que sempre gostei mais de você - Ela deu um peteleco no guizo do chapéu de Francesco - e afinal, quem foi que disse que vim para conversar?

De forma repentina, Lurdinha agarrou a gola da fantasia de Francesco e começou a se aproximar demais do rosto dele. Mas antes mesmo de seus narizes se tocarem, Francesco girou a garota de modo que ela ficasse encostada na parede.

- Não, não! Isso não está certo! - Francesco se desvencilhou de Lurdinha e começou a andar de um lado para o outro nervosamente.
- Ora essa Francesco! Tudo isso é porque estou noiva? Quando se tornou tão obediente?! - ela bateu o pé e ele a encarou.
- E já não é motivo suficiente?! - a voz de Francesco aumentou três oitavas.
- É arranjado! Eu não suporto o Valério, já viu como os ombros dele parecem desproporcionalmente grandes? Fora aquele perfume de jasmin que ugh! Dá pra sentir o cheiro há milhas!

Francesco revirou os olhos entediado.

- A partir do momento em que há uma aliança no seu dedo as pessoas podem achar o que quiserem! Não conhece essa cidade?
- Eu acabo tudo! - Lurdinha correu até Francesco o pegando pelos ombros - Se seu empecilho é meu casamento eu fujo de casa, dou um pé no Valério e no pai rico dele, eu faço tudo pra você ficar comigo! Papai vai te amar, vocês Villamazzo também tem influência e...
- Lurdinha, não! Para com isso! - ele se soltou do agarrão dela e lhe deu as costas - não pode forçar ninguém a gostar de você e eu... eu não gosto de você!
- Por quê?! - ela se ofendeu de imediato - eu sou bonita, educada, inteligente, bordo, cozinho, costuro, sou a nora e a esposa perfeita, meu irmão é seu melhor amigo, os garotos de todo o colégio matam e morrem por mim, por que raios você não me quer?!

Francesco ficou em silêncio. Ele tinha uma lista de porquês de não querer nada com Lurdinha. Ela era egocêntrica, mimada, insistente, egoísta. E ele lhe diria de muito bom grado para pôr um ponto final naquela história de uma vez, já estava cansado de fugir dela. Isso se ela não resolvesse tirar suas próprias conclusões e conseguir arrancar a voz do garoto com uma única frase.

- Por acaso não gosta de mulheres?!

O sangue de Francesco gelou em suas veias e ele ficou paralisado.

- Como é que é?
- Nunca te vi com nenhuma garota em todos esses anos, você foge de mim como o diabo foge da Cruz! E não acho que seja um casto romântico que esteja se guardando para o amor verdadeiro! - ela cuspiu as palavras sem um pingo de graça - É a única explicação!
- Depois ainda me pergunta porquê não gosto de você... - Francesco sibilou - e se eu for mesmo um romântico? Brega, cafona, a procura do amor verdadeiro?
- Daí você estaria perdendo a oportunidade de viver esse seu sonhado romance comigo!

Lurdinha andou novamente até Francesco, deslizando sua mão pelo braço dele.

- Você nunca nem pensou em me dar uma chance? Nunquinha?
- Lurdinha...
- Me diz - ela sussurrou devagar perto do rosto dele, ele ficou tenso - não sente nada?

Francesco nunca saberia explicar o que foi que aconteceu com ele naquela noite. Se foi efeito do champanhe, daquela pergunta que era a segunda vez que ouvia em menos de uma hora, ou se seus sentimentos bagunçados lhe pregaram uma peça, mas quando percebeu, sua mão direita estava no rosto corado de Lurdinha, seus olhos fechados e sua boca colada à dela.

A partir dali as coisas escalonaram rápido demais. Lurdinha não demorou a retribuí-lo agarrando os cabelos e as costas da camisa de cetim de Francesco com uma força surreal para uma garota tão franzina. E Francesco se viu mais imerso naquele beijo do que jamais imaginaria estar algum dia.

Ele não a repeliu. Ele não fugiu do toque dela. Nem sequer pensou em empurra-la para longe. Sua mente estava completamente vazia.

Depois de alguns segundos naquela briga de rua com os lábios os dois finalmente se separaram com as respirações descompassadas e o coração acelerado.
As mãos de Lurdinha deslizaram do cabelo para o rosto de Francesco, então ele abriu os olhos e encontrou o rosto fino de traços delicados da irmã de seu melhor amigo, as bochechas dela coradas como pitangas, os fios de cabelo loiro escapando do penteado grudados na testa, os lábios finos rosados e os olhos azuis bêbados de desejo.

Ele teve certeza que gostou do beijo. Se sentia pegando fogo da cabeça aos pés. Mas de alguma forma parecia ter beijado certo a pessoa errada. E quando sua mente voltou a pensar corretamente, com as lembranças certas, ele teve certeza. As coisas não pareciam erradas por ser uma garota ali a sua frente com o rosto corado e lábios úmidos, mas por que era Lurdinha ali.

Talvez ele fosse mesmo cafona, brega, um casto à espera do verdadeiro amor. Um artista a procura de sua musa.

Ou melhor, uma musa a procura de seu artista.

- Isso foi... Isso foi... - ela murmurou grogue, Francesco a encarava sem piscar e levemente em pânico pelo que acabara de fazer - isso...

E sem aviso algum, a garota despencou nos braços de Francesco num desmaio cinematográfico.

Francesco a segurou no reflexo, mas quase a deixou cair quando viu Miguel e Nando saindo de trás de um dos latões de lixo e indo ajudá-lo a segurar a pobre garota.

- Caramba Francesco, precisava desmaiar a minha irmã? - Miguel pegou Lurdinha dos braços de Francesco com um pouco de dificuldade.
- O que estão fazendo aqui?!!!! - os olhos de Francesco estavam arregalados de susto.
- Viemos impedir a situação, mas pelo visto você se saiu muito bem! - Nando gargalhou e apertou o ombro de Francesco, que não esboçou alegria alguma.
- Lurdinha! Ei, acorda! - Miguel deitou a irmã na grama e começou abana-la com a mão - quanto tempo dura um desmaio, hein?
- Acho que ela morreu de amor - Nando sugeriu ainda com um riso nos lábios.
- Isso não tem graça Nando! - Francesco passou uma das mãos pelo cabelo - acho que a gente devia chamar o Valério, ele é o mais perto que temos de um responsável pela Maria de Lurdes.
- Não! - Miguel se sobressaltou imediatamente, Nando e Francesco se entreolharam - quer dizer... Olhe ela já está acordando.
- O que houve? - Lurdinha murmurou - Miguel?
- Sim, sou eu - ele respondeu sem ânimo - você teve um apagão, está se sentindo bem?

A garota abriu um sorriso embriagado.

- Eu tive um sonho maravilhoso! Cadê o Francesco, hein? Para onde meu príncipe romântico foi?

Nando levou as mãos ao rosto controlando com muito esforço uma risada escandalosa, Francesco deu um tapa em seu abdômen.
Ela ia levantando a cabeça para olhar na direção de Francesco mas Miguel entrou em sua visão a tempo.

- Por que não me conta sobre esse seu sonho, hm? - ele puxou o assunto e acenou freneticamente para Nando e Frances sumirem dali logo. E foi o que eles fizeram.

A passos apressados, Nando e Francesco rodearam a prefeitura até chegarem novamente na escadaria da entrada principal.

- Vem cá, isso foi planejado? - Nando perguntou enquanto subiam os degraus recuperando o fôlego da corrida - vai mesmo dar uma chance para ela?
- Claro que não, está maluco?! - Francesco respondeu ainda ansioso - acho que nunca mais vou conseguir ver a Lurdinha na minha frente.
- Cruzes! Foi tão horrível assim? Você parecia estar gostando! - Nando cutucou Francesco com o cotovelo e riu. O italiano esfregou o rosto com as mãos - Ei rapaz, não precisa ficar tão perturbado! Foi só um beijo, nada de mais, ninguém vai te pôr na cadeia por isso.
- Não Nando! - a voz de Francesco parecia enterrada em sua garganta - não foi só nada demais, eu... e-eu... droga, devo estar ficando maluco!
- Francesco o que você tem hoje? - Nando questionou começando a ficar realmente intrigado - está todo assombrado, cadê sua confiança de sempre? Sua certeza? Por acaso tem outra pessoa além da Lurdinha?

Substituindo a palidez anterior, lentamente o rosto de Francesco foi avermelhando até ficar da cor de uma pimenta biquinho. Nando arregalou os olhos.

- Nãaaaaoooo...
- Eu preciso de mais champanhe - ele deu as costas para Nando e cambaleou para dentro do salão.
- Ei Francesco espera, volta aqui, me conta essa história!

E Nando saiu em seu encalço, novamente.

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora