VIII. Eu sei quem você é

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Os passos da governanta ecoavam estridentes pelos corredores. Suas mãos seguravam firme a bandeja de almoço por todo o trajeto nas entranhas daquele casarão imenso como se sua vida dependesse disso. Há algum tempo, mais do que a vivência numa casa enorme onde mais da metade dos antigos moradores já havia falecido, uma certa tarefa vinha assombrando aquela governanta novata, mas não porque envolvia mortos, muito pelo contrário.

Ao chegar em frente à porta de madeira escura idêntica a todas as outras, a garota que devia ter no máximo seus 20 anos e não mais que dois meses de trabalho ali, respirou fundo e bateu três vezes na porta do quarto, onde na última ouviu a voz do dono soar de lá de dentro.

- Quem é?
- Almoço! – sua voz vacilou brevemente.
- Está aberta.

Tensa, ela girou a maçaneta dourada, empurrou a porta com as costas e de olhos fechados mentalizando uma oração, entrou.

Desde que começara a trabalhar ali, diversos boatos e histórias envolvendo o filho mais novo do patrão chegaram a seus ouvidos a apavorando de diversas maneiras. Ela já ouvira de tudo: que o garoto era um vampiro, que ele almoçava no quarto pois quem olhasse direto nos olhos dele virava pedra, que na verdade ele não era humano por isso raramente era visto andando pela casa, dentre outras lendas que quem trabalhava a mais tempo ali sempre desmentiam dizendo que era bobagem, mas a dúvida e o "vai que" nunca a convenceram do contrário. E quando lhe disseram que naquele dia ela seria a responsável por levar o almoço dele, a governanta já esperava abrir a porta do quarto e dar de cara com um calabouço e uma fera encarcerada morrendo de fome.

Porém, quando finalmente abriu os olhos, um sentimento bem diferente do pavor que ela jurou que sentiria lhe tomou. Já dentro do cômodo, a governanta sentiu como se tivesse atravessado um portal, saindo de um lugar sóbrio de paredes beges e portas idênticas entre si e caindo numa dimensão de pinturas coloridas no teto e paredes, desenhos em carvão espalhados pelos cantos e respingos de tinta perdidas pelo assoalho como se houvesse chovido um arco-íris ali dentro.

E claro, o tão temido dono do quarto, que estava bem longe de ser inumano ou uma besta enjaulada como lhe disseram, embora fosse realmente muito sério não chegava nem perto de dar medo.
Vestido formalmente como poucos se vestiam em sua própria casa, Henrique estava sentado à beira da comprida janela de vidro, com o caderno de desenhos apoiado nos joelhos e admirando com atenção a paisagem verde dos fundos da fazenda.

Ao notar a garota olhando impressionada para todos os cantos do quarto, Henrique se levantou do assoalho para recebê-la um pouco mais educadamente.

- Oi - ele tentou dizer de forma suave, mas a garota se assustou mesmo assim - não me lembro de já tê-la conhecido, é novata?
- Não! Q-quer dizer, sim - ela sorriu desviando do olhar de Henrique de todas as formas que conseguia.

Henrique não achou estranho toda aquela aflição no rosto da governanta, na verdade, era bem comum e nada difícil de imaginar o porquê.

- Ah... a-aqui está sua refeição, Seu Henrique - ela deixou a bandeja em cima da mesa perto de alguns desenhos, sem querer, acabou olhando de relance para um deles e quase imediatamente reconheceu o retrato feito a carvão numa das folhas.

Mesmo tendo a visto apenas através dos quadros espalhados casa, era impossível não reconhecer o belo sorriso de Vivian Castilho.

Antes que pudesse dizer qualquer coisa sobre o retrato perfeito da falecida, Henrique se aproximou e virou o desenho para baixo sem cerimônias. A garota deu um pequeno pulinho, ruborizando de vergonha.

- Obrigado pelo almoço... ah...
- Lara - ela grunhiu num fio de voz.
- Lara. - ele disse de forma suave para a funcionária que agora sim, o encarava a altura ainda que com um pouco de medo (ou comoção) - Obrigado, Lara.

Os dois se encararam por alguns segundos até a garota perceber que aquele era um convite mais que claro para que ela se retirasse.

- Ah, desculpe - ela abaixou a cabeça e passou a tirar a refeição de Henrique da bandeja para a mesa, recolhendo a prata quando terminou - boa refeição seu Henrique, é um prazer conhecê-lo.
- Ah, Lara!

Henrique chamou-a antes que ela saísse, a governanta virou a cabeça imediatamente com o coração acelerado.

- Não acredite em tudo que meu irmão César te conta - aconselhou Henrique com uma seriedade que fez com que ela se arrepiasse - as vezes ele mente.

A jovem arregalou os olhos e sentiu suas bochechas torrarem em seu rosto, sua única resposta foi um acenar de cabeça incessante.

Henrique indicou para a saída e Lara saiu de fininho encolhida de vergonha e sem nem olhar para trás. Quando a porta se fechou, ele ainda a encarou por alguns segundos até suspirar profundamente perguntando-se se César disse à pobre novata que seu irmão mais novo tinha uma segunda cabeça falante que bebia sangue humano e se alimentava de carne humana como fez com a última que chegou antes dela.

Alguns passam o tempo livre jogando xadrez, golfe, gamão... já outros se divertem inventando lendas urbanas sobre o próprio irmão. Em outros tempos, Henrique ficaria irritado com César espalhando histórias que fazem as pessoas se afastarem dele, mas nos últimos meses, a solidão tem deixado de ser amedrontadora.

Henrique deu uma olhada no almoço do dia: Arroz, carne bovina assada e legumes salteados acompanhados de um suco que pela cor e cheiro, deveria ser limão. Parecia delicioso mas, sua atenção não foi captada para a refeição mas para o desenho logo ao lado, virado para baixo. Ele o pegou virando-o para si novamente.
Aquele tinha sido o último esboço que fizera antes da morte de Vivian, um dia antes para ser mais exato. O médico já havia a desenganado então ele decidiu desenhá-la uma última vez. Era uma das poucas formas que ele tinha de matar a saudade da mãe, de não deixar que a memória vívida de seu rosto sempre tão sereno se apagasse - por mais impossível que isso fosse acontecer.

- Quanto tempo mais essa dor vai durar - ele suspirou sentindo o coração apertar no peito - quanto tempo mais...

Henrique ainda admirava o desenho quando ouviu novas batidas na porta, ele já puxava o ar para perguntar quem era quando simplesmente a porta se abriu.

- Vicente - ele respondeu se deparando com o rosto do irmão mais velho na fresta da porta
- Olá - ele sorriu de forma cordial - posso entrar?

Virando novamente o desenho para baixo na mesa, Henrique deu as costas e foi para a janela novamente, sem responder. Vicente suspirou.

- Bom, estou entrando - disse ele fechando a porta atrás de si.

Vicente não costumava ir muito até o quarto do irmão, mas das poucas vezes em que esteve ali ele sempre sentia como se fosse um cômodo a parte da casa, um lugar bem... Henrique.

- Seus desenhos continuam ótimos - Vicente olhou para as telas grudadas nas paredes.
- Obrigado - Henrique respondeu sem muita emoção, Vicente suspirou.
- Por quanto tempo mais vai ficar aqui? - ele cruzou os braços - Há meses está fazendo suas refeições no quarto, nem me lembro da última vez que te vi caminhar no gramado.

Henrique ficou em silêncio absoluto, os olhos fixos na janela.

- Eu sei como você se sente, eu também a perdi e a dor parece mesmo que nunca vai passar - Vicente viu o irmão suspirar - mas você não vai poder se isolar para sempre, eu sei que sabe disso.

Henrique continuou em silêncio. Vicente já estava quase desistindo de conversar quando finalmente ouviu a voz do garoto.

- Eles já foram? - ele perguntou, Vicente soltou os braços ao lado do corpo - os Villamazzo. Para você estar aqui tão cedo eles já devem ter ido.
- Há cerca de uma hora - Vicente se sentou na ponta da cama. Se ele quer conversar sobre outra coisa, porque insistir? - não ficaram muito tempo, mas tivemos tempo o suficiente para nos conhecer. São boas pessoas.
- Que bom.
- Mas me diga você irmão, o que achou do Francesco Villamazzo?

Com isso, Vicente esperava pegar o irmão de surpresa mas mais uma vez ele subestimara Henrique, que passou longe de se surpreender.

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