XII. Terceiro corredor à esquerda

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Aquela era naturalmente uma ideia estúpida.

Francesco sabia muito bem que se seu plano desse errado ele estaria mais encrencado do que já esteve em toda a sua vida, não queria nem imaginar quantas palavras novas em italiano iria passar a conhecer com o sermão pesado que seus pais lhe dariam. Mas quando adentrou as terras Castilho e sentiu como se tivesse uma corrente elétrica percorrendo suas veias, ele entendeu porque todos que o conheciam o consideravam uma verdadeira peste.

- Tudo bem - Francesco abriu dois botões de sua camisa, bagunçou um pouco seus cabelos e respirou fundo - é só seguir o plano!

Sacudindo as rédeas, ele rumou num trote devagar para aos fundos do casarão, onde haviam dois peões conversando. Francesco não achou que eles fossem notar sua presença até que estivesse bem perto, mas bastou ele apontar no horizonte para atrair todos os olhares. Nesta hora, ele se arrependeu de não ter nem cogitado ir a pé.

- Bom dia! - Francesco tentou dizer com o máximo de naturalidade que conseguiu.
- Bom dia - um dos peões, um de bigode, respondeu acenando com a cabeça, fazendo questão de olhar Francesco de cima a baixo - o senhorzinho está perdido por essas bandas? A entrada da casa grande é do lado contrário.
- Ah eu bem sei meu senhor, mas não chego nem perto de ser um senhorzinho! - Francesco olhou para a mesa atrás do peão de bigode - ou, eu não perderia o café.

O outro peão riu. Já era alguma coisa.

- Peão você não é - o de bigode afirmou levantando-se da mesa - nunca vi peão montar puro sangue.

Os dois peões o encararam à espera de uma resposta convincente, Francesco quase ficou aflito em ser pego no pulo. Quase.

- É raro não é? - Francesco acarinhou seu cavalo - algumas pessoas tem bastante sorte com bingos de quermesse, minha mãe costumava dizer que nasci virado para a lua - Francesco fez o sinal da cruz e olhou para o céu - que Deus a tenha...
- Hum... - o peão cruzou os braços e encarou o garoto ainda não totalmente convencido.
- Vim fazer uma diária - ele resolveu ser direto - Seu Firmino me contratou pra cuidar dos cavalos do estábulo.
- Cavalos? Com esses bracinhos? - o homem voltou a questionar, Francesco apertou os olhos, aquele cara já o estava cansando.
- Eita Tobias, está com ciúmes, é?! - o outro peão se manifestou com humor, o de bigode o encarou feio - se ele diz que foi pago pra lida dos cavalos é porque aguenta ué, não conhece o Seu Firmino?
- Obrigado - Francesco acenou com a cabeça, Tobias resmungou.
- Aí garoto - o da mesa continuou - se ainda estiver com fome a mocinha da cozinha pode passar um café pra você.
- Convite tentador mas na verdade não vim até aqui para o café, vim por outro motivo.

Os dois olharam para o italiano atentamente.

- Tem uma égua no estábulo, toda bonita, uma andaluz marrom. Ela parece muito melhor cuidada comparado aos outros cavalos. Queria saber se tem algum tipo de cuidado especial, não sei...
- É a Perséfone - Tobias afirmou - fez bem em vir até aqui antes, o garoto do Seu Firmino é bem ciumento com aquela égua, ninguém nem toca nela sem a permissão dele.
- Ah é? - Francesco sorriu de canto - Poxa ninguém me avisou disso! Será que eu poderia falar com ele? Só pra, sabe, ter certeza de que meu trabalho está sendo bem feito.
- Olha, poder falar até pode - o peão na mesa deu uma risadinha - a coisa é se ele vai querer falar com você.
- Aquilo ali é de uma marra, tsc tsc tsc - Tobias olhou para o chão - se trocamos duas palavras nos tempos em que tenho trabalhado aqui foi muito.
- Nossa - Francesco emulou sua melhor expressão de choque - ele é assim tão carrasco?
- Carrasco não é bem a palavra...

Uma mocinha franzina de olhos grandes apareceu na porta da cozinha dos fundos, ela cruzou os braços e olhou feio para os três.

- ...e vocês não deviam estar falando do filho do patrão assim!
- Ei, não liga não - o peão na mesa sussurrou para Francesco - essa aí tem a maior paixonite por ele, e olha que só o viu uma vez!
- Paixonite é o seu nariz! - Corada, a garota bateu com o pano de prato nas costas do homem que resmungou - ele é tímido e mais bem educado que todos vocês brutos juntos - Ela olhou para Francesco - a propósito, eu sou a Lara.
- Prazer Lara - Francesco sorriu cordial, ela sorriu de volta - e então, como eu faço para encontrá-lo?
- Eu posso passar seu recado e avisá-lo de que quer conversar, sendo sobre a Perséfone pode ser que ele se convença a sair do quarto - Lara sugeriu.
- Vou com você - Francesco propôs descendo de seu cavalo - assim, ele nem precisa se dar o trabalho de sair.
- É uma boa ideia - o peão de bigode aprovou, Lara apertou os lábios um pouco relutante.
- Vai Lara, eu preciso muito desse dinheiro e só vou conseguir se tratar de todos os cavalos! - Francesco juntou as mãos - por favoor!
- Tudo bem! - ela cedeu, Francesco sorriu largamente e foi indo na direção da garota, que o impediu de entrar em casa assim que ele chegou a porta - mas só entra se tirar essas botas.


Descalço mas triunfante, lá estava Francesco novamente dentro do casarão dos Castilho passando por todos aqueles corredores igualmente velhos exatamente como planejou, mas agora que uma parte deu certo, ele precisava bolar um novo plano para despistar a empregada que o guiava até o quarto de Henrique, e isso antes de chegar até lá.
Mas, como o universo gostava de o ajudar, Francesco tinha uma ótima carta coringa na manga.

- Então Lara - o italiano chegou de mansinho na garota enquanto andavam - quer dizer que você tem uma paixão secreta pelo filho do patrão?
- Não! - ela retrucou no mesmo momento de forma nada convincente.
- Não é o que seu rosto está dizendo!
- Não tem graça! - ela levou as mãos ao rosto tentando esconder o rubor.
- Está tudo bem - Francesco sorriu lhe dando uma cotoveladinha no braço - eu só vou trabalhar aqui esta manhã, não conto pra ninguém!

Lara o olhou de canto, Francesco cruzou os dedos da mão e os beijou.

- Juro! - ele reafirmou.
- Bem - ela juntou as mãos atrás das costas - talvez eu o ache bonito, misterioso... mas no que isto te interessa hm? - ela voltou a relutar e apertou o passo, Francesco desfez seu sorriso e correu para alcança-la novamente.
- Ah Lara em nada! Mas, é que eu estava aqui pensando - ele resgatou sua voz mais mansa - como eu vou conversar com o filho do patrão, eu podia te dar uma ajuda...

Ela o olhou novamente dessa vez com os olhos um pouco mais atentos.

- Uma... ajuda?
- É! - Francesco sorriu confiante - como eu também trabalho aqui, ele vai acreditar se eu disser o quanto a mocinha da cozinha é gentil, educada, simpática...
- Você não o faria - ela olhou para frente com um sorriso bobo nos lábios.
- É o mínimo que posso fazer para agradecer a sua ajuda! Eu só precisaria de mais uma coisa para que dê certo.
- O quê? - ela parou no corredor, os olhos brilharam por instantes.
- Que você deixe que eu converse sozinho com ele.

A garota franziu um pouco as sobrancelhas, Francesco pigarreou. Foi com muita sede ao pote.

- É uma conversa particular! Para que ele não fique tímido com a sua presença e pior, que pense que foi você quem pediu que eu intermediasse! Imagine que tragédia?
- Tem razão - ela mordeu o lábio - tudo bem, eu deixo que vá sem mim - Francesco conteve uma comemoração - mas isso fica só entre nós, tá certo?
- Palavra de escoteiro! - Francesco ergueu a mão direita.
- Terceiro corredor à esquerda, é o segundo quarto, não esqueça de bater antes de entrar.

Francesco segurou as mãos de Lara e as beijou.

- Vou dar o meu melhor, te prometo!

E o Villamazzo foi andando a passos largos deixando a garota cheia de esperanças para trás - e verdadeiramente impressionado com suas habilidades de sempre conseguir tudo que quer.

Depois de contar os corredores e enfim chegar no certo, quando parou em frente à porta do quarto de quem o deixara plantado mais cedo, Francesco foi invadido pelo sentimento de vitória. Quem precisava de sorte agora?

Sem medo e sem demora ele ergueu a mão fechada em punho, e bateu cinco vezes na porta, segundos depois ouviu uma voz já conhecida vinda lá de dentro.

- Quem é?

Francesco se esforçou muito para não responder "seu pior pesadelo", e apenas bateu novamente. Desta vez, ele ouviu o barulho crescente de passos até a porta e então, ela foi aberta.

Assim que Henrique viu o rosto de Francesco, com aquele sorriso diabólico, seus olhos verdes dobraram de tamanho.

- Surpr-

Francesco mal abriu os braços quando Henrique o puxou com tudo para dentro de seu quarto, colocando contra a parede e cobrindo sua boca com uma das mãos. O italiano quase perdeu o ar de susto.

- O que diabos você faz aqui?! - ele sussurrou bem perto do rosto de Francesco, sua feição estava atormentada - Como chegou? Alguém te viu?!

Francesco mexeu o rosto e murmurou, Henrique tirou a mão de sua boca.

- Pode fazer uma pergunta de cada vez? Não consigo lembrar de todas.

E sorriu, o sorriso mais irônico e debochado possível. Henrique encarou o rosto de Francesco achando aquilo tão absurdo que a ideia de estar surtando lhe era extremamente plausível.

- Uau - Francesco contornou Henrique e olhou em volta - seu quarto é bem bonito, e bem diferente do que imaginei, até porque sua casa não tem torres altas feitas de pedras e vinhas...
- Você não me respondeu! O que faz aqui?!
- Ué - Francesco foi passeando pelo quarto tocando e analisando tudo - não dizem que quando os gatos saem os ratos fazem a festa?
- Quer parar com esse deboche? - Henrique arrancou um desenho das mãos do italiano e encarou-o firmemente - Estou falando sério!
- Eu também! - Francesco se impôs - achou mesmo que eu ia ficar esperando você como um paspalho e depois simplesmente esquecer o assunto?
- Você não está falando da loucura que propôs ontem, está?
- Estou!
- Você achou mesmo que eu iria?! - rebateu Henrique com obviedade.
- Sendo bem sincero não, mas pela sua cara de desespero quando seu pai apareceu no estábulo eu dei um voto pra possibilidade de você aparecer nem que fosse pra prestar uma denúncia.

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora