Era cedo. A luz do dia mal havia começado a entrar pelas janelas da casa quando Tia Luzia prendeu os cabelos opacos atrás de um lenço amarelo, caminhou de sua casa nos fundos da fazenda até a cozinha da sede, se apossou do caldeirão e subiu no banquinho que elevava seus 1,59 de altura para esquentar a barriga no fogão mexendo seu tradicional doce de banana.
Ela fazia aquele doce há pelo menos 40 anos, vinte deles só naquela fazenda, e tantos anos de experiência lhe renderam saberes que ninguém tira - e certezas que se fossem apostadas, lhe renderia um bom dinheiro.
Atrás dela, a mesa da cozinha estava posta com um bolo coberto por uma tela que impedia as moscas rurais de saborearem o café antes dos patrões, mas antes a pressa fosse apenas da parte das moscas. Mesmo cantarolando, Tia Luzia escutou os passos descalços do garoto no corredor, e sem nem se virar para ter certeza, ela podia apostar que ele estava à espreita da mesa com o dedo indicador a postos para tirar pelo menos uma fileira da calda de goiabada do bolo de milho. Com um sorrisinho no rosto, a senhora inspirou e com a voz mais aveludada que podia, finalmente começou seu dia.- 14 a 0 pra mim.
Num pulo, o filho caçula dos donos da casa recolheu seu dedo indicador direito e resmungou. Ele foi flagrado, como sempre.
- Como você faz isso?! - exclamou o garoto se levantando do pé da mesa de madeira.
Luzia gargalhou alto sem parar de mexer na panela, onde a mistura de açúcar e banana nanica começava a levantar fervura.
- Quem manda andar com os calcanhares?
- Eu sou muito discreto tá? - ele encostou-se na beira da mesa - A senhora é que tem o ouvido fino demais!
- E o senhorzinho é um péssimo perdedor.
A senhora continuou mexendo seu doce vitoriosamente, por um momento tinha até pensado que o patrãozinho fora embora da cozinha depois de mais uma derrota na tentativa de furar a fila do café da manhã, mas então sentiu o garoto se aproximar do fogão e apoiar o queixo em seu ombro. Ela se perguntou quando ele havia ficado tão alto.- Esse doce tá cheiroso hein Tia Luzia... já disse que a senhora é a melhor cozinheira desse mundo?
A senhora apertou os olhos cinzentos na direção do garoto sardento ao seu lado. O sorriso largo e a traquinagem que ele carregava no olhar desde que nasceu não descansavam. Ele definitivamente não sairia do pé da caseira até conseguir o que queria.
- Se a Dona Pilar descobrir que você está se enchendo de doces antes do desjejum... - Tia Luzia franziu as sobrancelhas.
- O que os olhos não veem e os ouvidos não escutam o coração não sente - o garoto manhou com um sorriso enorme e persuasivo - só uma colherinha, eu não conto pra ninguém!
- Hoje você não vai tirar nada de mim, Chiquinho, nem tenta!
- Poxa Tia Luzia, só um pouco pra abrir o apetite! A Mama não vai nem notar!
- Não e ponto final! - a senhora disse firme, ainda que relutante pois raramente chamava a atenção do garoto daquela forma - Vai pra mesa de jantar que já já o café tá servido e mais tarde eu mesma levo um tacho pra você, tudo bem?
O garoto fez bico e ficou quieto por alguns segundos, Tia Luzia ainda sentiu uma ponta de culpa, mas mal teve tempo de senti-la por completo até uma única frase ser capaz de transformar toda a situação.
- Ai meu Deus, aquilo é um rato?! - ele falou em um leve tom de alarde mas que soou como um grito de guerra para a pobre Luzia.
- AI MINHA SANTA BERNADETE, ONDE? - ela exclamou imediatamente olhando para todos os cantos da cozinha.
Aproveitando a distração da senhora, o garoto catou uma colher de sopa da mesa e pescou uma senhora colherada do doce de banana.
- 1 ponto pra mim! - ele deixou um beijo no rosto da senhora e saiu correndo logo em seguida antes que as mãos de Tia Luzia o alcançassem
- Mas olhe... FRANCESCO!
Berrou Tia Luzia em mais uma manhã perfeitamente normal na Fazenda Villamazzo.
Francesco desacelerou ao chegar no corredor, estava assoprando a colher de doce de banana cru quando quase trombou com Amália, sua irmã mais velha, que acabara de sair de seu quarto.- Já está atazanando a pobre Tia Luzia à está hora da manhã Francesco? - a garota bocejou esticando os braços e jogando as longas madeixas escuras para atrás das costas, exibindo o esparadrapo na corada maçã do rosto após cair de cima da jabuticabeira ainda ontem.

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HERDEIROS
RomansaDetentores da maior vinícola do interior de Santa Catarina, a família Villamazzo nunca soube o que é ter problemas. Imigrantes italianos, todos os cinco filhos do Coronel Carlos Villamazzo toda vida foram criados a pão de ló, e esta era a única vida...