IX. Os Castilho

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Quando a noite caía, a estufa do casarão Castilho era tomada por uma aura mágica.

As lamparinas de luz clara, espalhadas por toda a estufa refletiam uma iluminação verde-claro, os vaga-lumes cintilavam em riscos fluorescentes entre a vasta variedade de plantas e flores espalhadas pelos canteiros, e através do teto de vidro, o céu noturno pontilhado de estrelas prateadas emoldurava o brilho intenso da lua cheia, completando perfeitamente o ambiente e deixando claro o porquê daquele lugar ser de longe o favorito de Henrique em toda a casa.

Ele estava sentado num banco de madeira à beira da fonte já havia um bom tempo, encarando sobre os joelhos a folha amarelada e vazia de um de seus cadernos de desenho.

Desde a morte de Vivian, Henrique tem enfrentado um extenso bloqueio criativo. Por mais que tentasse pintar ou desenhar qualquer coisa, ele nunca ficava satisfeito com o resultado final ou até mesmo as primeiras linhas que traçava. E naquela noite, da mesma forma como naquela manhã, ele tentava encontrar a sua volta algo que te inspirasse.

Mas passeando por sua mente, mais que o bloqueio outra coisa vinha o impedindo de se concentrar, e embora dessa vez ele não estivesse pessoalmente o enchendo de perguntas, Francesco Villamazzo continuava rondando seus pensamentos como uma mosquinha ao redor de um doce.

Henrique não podia negar, não imaginou que o Villamazzo descobriria seu nome tão rápido, não conseguia nem supor quem poderia ter revelado seu nome para Francesco e isso podia significar muitas coisas, as vezes, ele não era assim tão invisível quanto achava que fosse.

Ele só não cogitava também a ideia de que o italiano descobrira mais do que seu nome, pela reação no mínimo inesperada que teve quando esteve prestes a sair correndo do estábulo. Com tanto o que lembrar daquele momento, como o agarrão no braço ou o desespero que sentiu com a chegada repentina de Firmino, Henrique só conseguia enxergar entre suas memórias aquele olhar mordaz com o qual Francesco Villamazzo o encarou.

Foi como se de repente o mundo girasse devagar, o ímpeto de desviar o olhar estava ali mas aquele azul o fisgou de tal maneira que por pouco as palavras não se perderam em sua boca por completo. Talvez fosse a repentina - e difícil de acreditar - preocupação com a qual o fitou, ele tinha certeza que ninguém nunca o havia olhado com tanta atenção antes e isso arrepiou sua pele só de lembrar.

Estremecido, Henrique chacoalhou os ombros. Até pouco tempo atrás ele não simpatizava nem um pouco com o vizinho da fazenda ao lado e agora não conseguia o tirar da cabeça? O que era isso?!

Na tentativa de limpar a mente e voltar ao foco que tanto desejava, Henrique respirou fundo e procurou qualquer coisa para olhar, desenharia qualquer coisa apenas para não dar o gosto de ocupar seus pensamentos com aquele atrevido que lhe chamou de velho em sua cara sem um único pingo de vergonha!

Ainda que sem rumo, os olhos castanho-esverdeados de Henrique pararam à beira da fonte, onde vasos de raras tulipas azuis rodeavam o mármore branco.

Tulipas Azuis. Azuis como...

- Ah não... - Henrique sibilou desacreditado de si mesmo e esfregou os olhos por baixo dos óculos. Lá estava o italiano de novo. Aquele sorriso largo, aquela imitação de Monalisa, aquela risada de quem sequer sabe o que é ter uma preocupação na vida...

Ele riu e levou as mãos ao rosto.

- Meu Deus - Henrique desceu as mãos até a boca e encarou as tulipas de canto com um sorrisinho - que garoto mais...

Antes que Henrique decidisse qual adjetivo - bom ou ruim - associaria ao italiano, uma voz nas suas costas o pegou de surpresa pela segunda vez no dia. Mas dessa vez o cheiro de fumo queimado lhe adiantou o rosto que encontraria quando olhasse para trás.

- Você está aqui - a voz de Firmino Castilho soava rouca, como sempre.

Desde a partida dos Villamazzo no início da tarde, Henrique ficara na expectativa de que em algum momento seria abordado pelo pai, mas visto que já passava das oito da noite ele até havia começado a pensar que se preocupara atoa. Mas pelo visto, Firmino só não estava com pressa.

Ainda que relutante, lentamente Henrique virou-se de frente para o pai e encontrou exatamente a imagem que conhecia desde sua primeira memória: O olhar escuro e frio, as sobrancelhas grisalhas franzidas gravemente e a fumaça espessa do charuto o rodeando como uma sombra.

- Não vai cumprimentar o seu pai? - Firmino cobrou exercendo o que ele achava ser seu lugar de pai.

***

Ainda calçado com as botas de montaria, Vicente caminhava pelos corredores olhando para todos os lados. Havia acabado de ser informado que a mesa estava servida para o jantar, e naquela noite ele mandara que fizessem um banquete especial com as comidas favoritas de seu irmão caçula, na esperança de que se apenas palavras não conseguiam o convencer de jantar com toda a família, quem sabe gestos e um bom pudim de leite pudesse fazê-lo juntar-se à mesa outra vez.
Vicente já estava perto do corredor do quarto de Henrique quando passou em frente ao salão de jogos, lá dentro, com um cigarro aceso no canto da boca, um taco de madeira nas mãos e uma concentração de dar inveja, César mirava uma bola de bilhar numa partida de sinuca emocionante dele contra ele mesmo.

- Jogando sozinho de novo? - Vicente encostou no batente da porta assim que seu irmão acertou a bola 11, encaçapando-a com êxito.
- Você nunca joga comigo - César tragou o cigarro soprando a fumaça para cima despreocupado - correndo atrás do Henrique outra vez? Sabe que ele não está nem aí pra você e sua vontade de declarar paz, não é?
- Diferentemente de você eu ainda me importo com a nossa família - Vicente cruzou os braços, César encolheu os ombros indiferente e voltou ao seu jogo de bilhar - você por acaso viu ele por aí? O jantar está na mesa.
- Ele deve estar com o nosso pai - César fechou um olho e mirou o taco na bola 12 - Seu Firmino passou agorinha perguntando onde ele estava.

Vicente desencostou do batente como se tivesse tomado um choque.

- E você falou onde ele estava?
- Falei.
- Ah, merda! - Vicente levou as mãos ao rosto – Está pancada, César?!
- Ai pelo amor de Deus, o Henrique não é nenhuma criança indefesa! Além do mais ele está precisando ouvir umas boas para largar de ser arrogante - César fechou um dos olhos e sacou a jogada, mas errou - droga!

Tamanha calmaria - e burrice! - de César diante de uma inevitável catástrofe fez Vicente sentir vontade de agredi-lo. Mas ele se conteve apenas em arrancar o taco da mão do irmão e arrastá-lo consigo para fora da sala de jogos.

- Ai! Que isso! - César resmungou se desvencilhando do agarrão de Vicente em sua camisa
- Onde é que eles estão? - Vicente quase gritou.
- Na estufa, onde mais? - César gritou de volta desamarrotando sua camisa.

A passos apressados, Vicente passou por César esbarrando em seu ombro e foi em direção ao corredor da estufa, cruzando os dedos para que seu pai esteja apenas tendo uma conversa pacífica com Henrique - por mais difícil que fosse acreditar num cenário desses.

***
Henrique não se lembrava exatamente quando foi que entendeu que nunca foi querido. Mesmo em sua memória mais antiga, ele não conseguia lembrar se algum dia seu pai o olhou como olhava para seus outros dois filhos, se algum dia o ódio em seus olhos escuros ao menos amansou para que ele tivesse alguma esperança de que ele ainda podia mudar. Mas não. Em quase 18 anos, nada nunca chegou perto de mudar, e depois de tanto tempo não era como se ele fizesse mais questão disso.

- Então? - Firmino estendeu a mão na direção de Henrique - não vai me cumprimentar?

Henrique encarou o homem de cima a baixo em completo silêncio e não moveu um músculo, fosse por receio ou ousadia.

- Incrível - Firmino riu em meio a uma tosse seca - a cada dia que passa mais se parece com a sua mãe... mas enfim, como queira.

Firmino recolheu sua mão e andou até a beira da fonte, dando as costas para Henrique que acompanhava seus passos com o olhar. Firmino tragou seu charuto outra vez.

- Sabe, garoto - ele começou - há gerações, esta família tem habitado estas terras levando adiante a indústria pecuária como a única e absoluta fonte de renda, tudo que construímos até aqui foi com muito esforço, suor e acima de tudo, honra - Firmino deu uma pequena pausa, Henrique continuava encarando as costas do pai sentindo seu pescoço começar a suar por baixo da gola da camisa - e, é de mérito desta honra que não procurei mas sim fui procurado por uma das famílias mais poderosas da região. É de mérito desta honra que estou negociando com o Coronel Carlos Villamazzo e tudo praticamente já está acertado para que a partir da próxima semana comecemos a trabalhar em conjunto, ele está confiando em mim para reerguer sua plantação, e eu estou confiando nele para elevar ainda mais o sobrenome Castilho na região, mas... imagine - Firmino começou a andar em volta da fonte olhando para o nada - Imagine que de repente, em uma singela conversa com seu filho mais novo, o Coronel acabe descobrindo que existe uma infame rachadura nesta família que ele depositou tanta da sua confiança?

Firmino parou e olhou de canto no fundo dos olhos de Henrique, o garoto apertou ainda mais o caderno de desenho entre as mãos suadas.

- Imagine se de repente - Firmino virou e começou a caminhar na direção de Henrique - o herdeiro Villamazzzo decide relatar ao pai o que ele descobriu numa pequena conversa com um suposto terceiro filho do novo sócio do papai, hm? - Firmino olhou severo para Henrique que engoliu em seco - então, consegue imaginar?
- Eu não disse nada a ele.

Henrique respondeu o mais rápido que conseguiu tentando evitar que as coisas passassem daquele limite, mas não adiantou nada.

- MENTIROSO! - Firmino esbravejou no rosto de Henrique fazendo-o pular de susto - Fale a verdade! Eu sei que você disse alguma coisa!
- Eu não disse nada! - Repetiu Henrique levantando-se do banco e afastando-se - por que eu diria alguma coisa?
- Para se vingar! Acha que não sei que seu maior desejo é destruir esta família? - Firmino voltou a ir na direção de Henrique, que continuava recuando.
- Não! Eu não-
- Eu vi vocês de conversinha no estábulo - Firmino gritou por cima da voz do filho - ande, confesse!
- Ele só sabe o meu nome, e nem fui eu que contei, ele descobriu sozinho! - Henrique tentou se defender, Firmino gargalhou não acreditando em uma palavra.
- Acha que eu não percebi aquele garoto Villamazzo me olhando diferente! Como se desconfiasse?
- E que culpa eu tenho disso?!
- Se você me disser o que estava fazendo naquele estábulo eu te conto que culpa tem!
- Eu só fui ver o cavalo da minha mãe, foi uma coincidência.
- Quem você está chamando de mãe?! A Vivian? - Firmino jogou o charuto dentro da fonte com fúria - está vendo como é mentiroso? É um espertinho, um aproveitador! Igualzinho aquela polaca da sua mãe!
- Que eu saiba a polaca da minha mãe não me fez sozinha!!

Assim que as palavras escorregaram por sua boca, Henrique mal teve tempo de se arrepender do que disse quando foi atingido por um tapa no rosto que o emudeceu.
Vivian sempre esteve a postos para impedir que Henrique fosse engolido pelo desprezo de Firmino, ela sempre aparecia para protegê-lo, como uma super-heroína ou um anjo da guarda, pronta para fazer o que fosse preciso para não deixar que nada acontecesse. Mas quando Henrique olhou para a porta da estufa esperando vê-la pronta para afrontar o marido sem o mínimo de medo, a dor em seu rosto de repente já não era nada perto do aperto em seu coração.

Por um momento ele quase esqueceu que ela se foi.

- Pai! - Vicente chegou bem na hora, estava ofegante pela corrida e quando viu Henrique imóvel e um filete de sangue em seu lábio inferior, praguejou aos céus por ter como irmão alguém tão imbecil quanto César – céus, o que está acontecendo aqui!

Vicente encarou firmemente seu pai e inclinou a cabeça para a saída indicando para que ele saísse. Percebendo que extrapolou todos os limites, Firmino resmungou e saiu irado da estufa sem dizer mais nada.

- Henrique - Vicente segurou o irmão caçula pelos ombros - Henrique pelo amor de Deus, você está...
- Fala pro seu pai - Henrique sibilou reerguendo seu rosto e olhando nos olhos de Vicente que se calou - que eu menti para os Villamazzo e eles acham que eu sou um cuidador de cavalos.

Vicente relaxou as mãos e Henrique se soltou, pegando seu estojo ainda em cima do banco e saindo correndo sem olhar para trás, passando por César que chegava à estufa só agora e foi recebido por um olhar furioso de Vicente.

- Eita... - César exclamou apertando os lábios.

Vicente catou um cascalho do canteiro das gérberas e jogou no ombro do irmão só para deixar claro o quanto estava irritado com ele, e com tudo.

Qualquer possibilidade de Henrique ir jantar com a família estava completamente arruinada, e sentar à mesa de jantar não foi nem um pouco prazeroso para Vicente, Firmino e César depois de todo aquele clima desagradável. O silêncio era tão denso que os grilinhos da relva do lado de fora eram mais barulhentos que uma escola de samba.

- Até quando vai ficar com essa cara, Vicente? - César soltou o ar de seus pulmões, impaciente.
- Até o dia que vocês começarem a me ouvir! - Vicente largou os talheres no prato e olhou para o pai - o que foi que combinamos? Eu falo com o Henrique daqui para frente!
- E que progresso você está conseguindo com isso, Vicente? - Firmino emendou a fala numa tosse aguda - aquele moleque não gosta de ninguém...
- Preciso dizer o porquê? - Vicente e Firmino se encararam até o pai desistir e resmungar - inclusive, ele pediu para te avisar que não contou nada aos Villamazzo, e que eles acham que ele é um peão.
- Está de pilhéria? - César questionou em meio a uma risada, Vicente negou com a cabeça – Mal sabem...

- E dificilmente vão saber, ainda mais depois do que aconteceu hoje.

- Deviam me agradecer! – Firmino grunhiu para Vicente – os Villamazzo são do tipo certinhos, se aquele bastardinho abre a boca para o menino do Coronel, a sociedade vai à ruína junto com o meu nome e o de vocês.

- Não acho que faria mal ao Henrique fazer amizade com o Francesco – Vicente deu uma garfada em sua refeição, Firmino e César o encararam como se ele fosse louco – é um garoto engraçado, poderia trazer um pouco de alegria ao Henrique se ele já não o odiasse.

- Ele te falou? – César questionou, Vicente assentiu.

- Henrique disse o achar "irritante" – Vicente sorriu brevemente, César riu alto – mas ele não conhece ninguém de sua idade, foi apenas um mecanismo de defesa inicial que eu aposto que o tempo e a persistência do Francesco Villamazzo conseguem derrubar facilmente.

- De que lado você está afinal? – Firmino questionou incrédulo – tem ideia de quantas ideias estúpidas aquele garoto pode pôr na cabeça do Henrique? Do que ele pode o convencer caso saiba de pelo menos um terço da vida dele? Estaremos arruinados!

- O filho do Coronel Villamazzo não me parece do tipo que se importa com essas coisas – Vicente deu uma risadinha ao lembrar da forma como Francesco disse sobre os seus "assuntos em comum" – o máximo que ele pode convencer o Henrique a fazer é ajuda-lo a roubar um bolo da cozinha – Vicente puxou o guardanapo de seu colo e limpou os cantos da boca – além do mais, o que precisamos é fazê-lo sentir-se parte da família, ele precisa confiar em nós, e não levar um tapa ao trocar meia dúzia de palavras com o pai que sente sua honra ameaçada por um adolescente e as paranoias que o peso na consciência o fazem carregar.

- Mais respeito comigo rapaz, eu ainda sou seu pai e a autoridade destas terras! - Firmino bateu na mesa chacoalhando toda a prataria, César tomou um grande susto mas Vicente sequer se mexeu.
- E o Henrique é seu filho – Vicente olhou para seu pai sem medo - e as coisas poderiam ser bem mais fáceis se você simplesmente aceitasse isso.

Resmungando ainda mais, Firmino levantou-se da mesa e saiu sem nem terminar seu jantar.

- Caramba hein Vicente! - César exclamou, Vicente continuou sua refeição como se nada tivesse acontecido - a nossa mãe ficaria orgulhosa de toda essa sua proteção com o favorito dela.

Vicente não respondeu nada diante da acidez do irmão, mas também, não era como se fosse mentira. Ela ficaria mesmo orgulhosa.

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora