II. Tempestades

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Um cochilo após o almoço não era muito comum para Francesco. Mas após um belo prato de galinha assada com batatas salteadas e arroz carreteiro que havia sido servido junto a um copão de suco de maracujá fresquinho, ele mal percebeu quando caiu no sono no divã da sala de estar. Dizem que o sono no sofá é o melhor de todos, e agora até mesmo Francesco - que particularmente odiava dormir alegando ser "a perda de um tempo precioso" - ia passar a concordar com esta afirmação.
No meio de um sonho estranho com batatas dançarinas e galinhas assadas cantoras, o caçula Villamazzo foi despertado por uma gota de algo frio e molhado pingando na bochecha. De primeira, apenas passou a mão no rosto pálido afastando-a, mas então, duas outras gotas pingaram no mesmo lugar e dessa vez não teve como ignorar.
Meio grogue e com a visão levemente turva, Francesco foi abrindo os olhos lentamente para a situação, aos poucos seus ouvidos foram ficando apurados e gradativamente um chiado foi se tornando audível. Cada vez mais alto.
Ao abrir os olhos completamente, Francesco percebeu a janela atrás do divã aberta, as cortinas voando e as gotas de chuva respingando onde dormia. O céu estava tão escuro que por pouco o garoto pensou ter dormido até as 20h da noite, mas ao olhar o relógio de parede centenário de sua avó, notou que ainda não havia passado das 18h.
Esfregando os olhos, ele olhou novamente para a janela e notou que a chuva estava forte demais para ser só uma "chuvinha", e quando um raio cortou o céu iluminando seu rosto com o clarão, ele teve certeza que estava muito mais para uma tempestade.
Com um único pulo por trás da cabeceira do móvel, Francesco fechou a janela de vidro silenciando o barulho da tempestade lá fora, mas com isso, o barulho de dentro se sobressaiu.

Francesco levantou- se preguiçosamente do divã e caminhou de pés descalços para o cômodo ao lado, o saguão de entrada. Lá ele encontrou sua família quase toda espalhada cada qual em um canto. Marjorie observava absorta a chuva da janela ao lado da porta de entrada, Marinês abraçava os joelhos sentada no terceiro degrau da escada que levava ao andar de cima e Vitória estava encostada no batente da parede do corredor que dava para a porta dos fundos, não havia nem sinal do Coronel Villamazzo mas, no meio do saguão, Pilar e sua filha mais velha estavam numa discussão bem visível - e audível.

- Não importa se são seus cavalos, Maria Amália! - Pilar quase gritava segurando com dificuldade nas mãos finas e delicadas uma cela marrom e prata perfeitamente polida - o temporal lá fora está perigoso demais!
- Mas mama são três estábulos! Os peões nunca vão conseguir tirar todos os cavalos rápido sem ajuda! - Amália bateu as botas de montaria no piso, ela parecia ainda mais alta com roupa de equitação. Pilar apertou seus dedos ainda mais na cela.
- O Sandro e o filho dele são experientes no que fazem, tenho certeza que darão conta!
- Tá dizendo que eu sou inexperiente?! - a primogênita exclamou indignada.
- Meu Deus Amália! - Marinês descruzou os braços os batendo sobre os joelhos com impaciência - se você sair a cavalo nesse dilúvio você vai morrer! É tão difícil entender?
- Se eu cavalgasse tão mal quanto você eu poderia morrer mesmo! - a garota retrucou possessa, a boca de Marinês se escancarou em surpresa.
- Ei ei ei ei! - Vitória interveio - ninguém vai morrer aqui, parem com isso! Melhor a gente esperar o papai voltar, as vezes o Sandro e o Guilherme já até trouxeram os cavalos e nós estamos aqui desesperadas por nada.
- Duvido! - Amália coroou com uma cara emburrada.

Mal a discussão havia cessado quando, numa velocidade absurda, dois cachorros da raça Bernese passam correndo por Vitória quase pisando na barra de seu vestido longo rosa quartzo. Ele correram direto para Francesco assim que o viram.

- Pandora, Max! - Francesco abaixou-se para fazer carinho em seus cachorros, eles o lambiam competindo por sua atenção e o sujavam com a lama que ficara presa nas patas, mas não era como se Francesco ligasse muito.
- Acordou a margarida! - Disse Marinês com um sorrisinho - nem tinha te visto aí, tampinha.
- Eu também poderia dizer o mesmo mas seu cabelo de fogueira não deixa - Retrucou Francesco, Marinês exibiu um sorrisinho sarcástico.
- Está o maior temporal lá fora - o Coronel Villamazzo entra no saguão seguido de Guilherme, os dois encharcados dos pés à cabeça - eu nunca vi uma chuva dessas em todos os anos em que estamos aqui!
- E como estão os estábulos? E a Dalila? A Ameixa? O Bordô? O Bentinho?! - Amália perguntava impaciente.
- Os estábulos destelharam quase completamente, além da chuva também está ventando muito! A Dalila eu tinha levado pro celeiro antes da chuva e os outros cavalos meu pai e os outros peões estão cuidando da situação neste exato momento - explicou Guilherme com seu sotaque gaúcho carregado.

Com essa explicação, Pilar e os irmãos acharam que agora sim Amália se acalmaria, mas foi totalmente o contrário.

- Os outros cavalos ainda não estão seguros?! - a voz de Amália aumentou três oitavas, ela olhou suplicante para a mãe com um biquinho - Mãe!!!
- Guilherme, você pode por favor repetir a parte em que diz que a chuva lá fora está perigosa demais pra estar se aventurando?! - o olhar de Pilar foi do jovem peão para a filha enquanto sua voz aumentava.
- Olha, cê me desculpa patroinha mas a Senhora Villamazzo tem razão - Guilherme passou a mão atrás do pescoço, a voz oscilando como se soubesse que não era isso que Amália queria ouvir - tá perigoso lá fora até pra gente que tá acostumado com a lida e...

Num único movimento, Amália arrancou a cela das mãos da mãe, interrompendo o novo discurso de proteção que ela já estava cansada de ouvir.

- Olha só - ela parou diante de Guilherme abraçando a cela com lágrimas nos olhos - Se alguma coisa acontecer com os meus cavalos eu juro pra vocês que não vou perdoar ninguém!

Apressada, Amália passou por Marinês na escada e subiu a passos pesados, mas quando chegou na metade do caminho parou e olhou novamente para Guilherme, uma lágrima solitária - mais de ódio que tristeza - escorreu pela maçã de seu rosto.

- E "patroinha" é a senhora sua avó! - ela gritou e subiu o resto dos degraus correndo. Segundos depois, só se ouviu a batida forte da porta do quarto que fez com que todos dessem um pulinho de susto.

Guilherme ficou imóvel por um tempo coçando a cabeça por baixo dos cachinhos, olhando para o alto da escada com os olhos perdidos como um cãozinho depois de levar uma bronca por comer os sapatos do dono.

- As portas dessa casa estão sofrendo hoje - ironizou Francesco rindo sozinho.
- Dio Santi... - Pilar massageou as têmporas, o Coronel se pôs ao lado da esposa afagando seus ombros - É incrível como a Amália parece não ter um pingo de amor pela própria vida.
- Eu vou tentar falar com ela - Vitória desencostou do batente - ela geralmente costuma me ouvir então posso tentar convencê-la do perigo.
- Obrigado filha, já ajuda muito - O coronel sorriu agradecido por alguém finalmente pensar em resolver as coisas no diálogo. Ao fundo, Francesco viu Marinês revirar os olhos entediada.

Era em momentos assim onde Vitória tomava ações naturalmente assertivas que a inveja de Marinês se sobressaia, ela podia puxar o saco dos pais o quanto fosse mas nunca era o suficiente para receber aquele olhar de orgulho que eles sempre olhavam para a irmã mais nova, Francesco cansou de ver cenas assim ao longo de toda a sua vida.

- Patro... q-quer dizer, Dona Vitória - Guilherme chamou meio acanhado, Vitória riu de leve achando fofo o tom de rubro das bochechas do peão - pode dizer à Dona Amália que eu mesmo vou cuidar de trazer os cavalos, cada um deles... e estou indo agora!
- Digo sim - ela sorriu graciosamente como sempre - tenho certeza de que ela vai ficar feliz em saber.

Um breve sorriso pintou no rosto de Guilherme, ele não parecia totalmente aliviado mas um pouco mais tranquilo pela possibilidade de não ter decepcionado completamente sua amiga de infância e constante companhia nos estábulos da fazenda.

- Obrigado Guilherme! - O Coronel agradeceu
- As ordens, patrão!

Guilherme acenou com a cabeça e saiu correndo para os fundos da casa.

- Eu vou ver como a Mai está, qualquer novidade não deixem de me avisar - Vitória sorriu uma última vez e também subiu as escadas atrás da irmã.
- Então - a voz de Marinês destacou-se em meio ao barulho da chuva e dos trovões - o que a gente faz agora?

O Coronel caminhou sem pressa até a janela onde Marjorie observava as árvores balançando violentamente com as rajadas de vento e as gotas d'água respingando no vidro.

- Acho que por agora não há muito o que fazer além de esperar - Respondeu o Coronel, com um fundo de preocupação na voz que fez Francesco sentir um leve temor do que poderia significar.

***

E a espera foi grande! Choveu o resto da tarde, a noite toda e boa parte da madrugada. Por diversas vezes enquanto tentava dormir, Francesco acordava atordoado e sentia um pequeno desespero ao perceber que ainda estava chovendo, parecia que todo o estoque de água do céu estava sendo derramado naquela noite e ele não se surpreenderia se nunca mais chovesse depois daquele dia. Mas, perto do amanhecer, aquela chuva torrencial de verão enfim cessou.

Na manhã seguinte não pra menos o tempo estava nublado. O vento frio que entrava pela janela de seu quarto foi responsável por acordar Francesco antes das oito, o trinco de uma delas estava frouxo e com todo aquele vento foi fácil que elas abrissem sozinhas durante a madrugada. Preguiçosamente o garoto levantou de sua cama, sentiu um leve arrepio ao pisar no chão gelado, passou por Pandora e Max que dormiam no tapete e aos pulos foi até a janela.
A ideia era fechá-la e voltar a dormir como se nada tivesse acontecido, era sete da manhã de um sábado! Existe desgosto maior que acordar às sete da manhã em um sábado?
Entretanto, ao chegar ao pé de sua janela, Francesco tomou um grande susto.
Depois do escritório de seu pai, o quarto de Francesco era o que tinha a vista mais privilegiada para os vinhedos da Fazenda Villamazzo, mas diferentemente do que ele e todos estavam acostumados a ver por lá, naquela manhã à vista através da janela era a mais pura destruição.

As parreiras que garantiam a produção dos vinhos e traziam a renda fundamental da família estava destruída quase por completo. A tempestade depenou os pés, derrubou as hastes das plantações e as espalhou por todo o terreno de plantio e tamanha era a destruição que parecia que um furacão tinha passado por ali. Ainda da janela, Francesco viu Vitória, seu pai e Sandro parados diante dos estragos, a angústia visível no rosto dos três. Um súbito entendimento lhe invadiu.

Era essa a pitada de preocupação na voz de seu pai que ele não contou mas sempre soube que era possível.

Vendo que dificilmente conseguiria pregar os olhos novamente depois daquela visão quase apocalíptica do vinhedo da família, Francesco vestiu um casaco de lã azul não muito grosso e saiu do quarto, ainda que com medo do que mais de estrago encontraria lá fora. Depois de desviar de várias goteiras pelo corredor dos quartos do primeiro andar, desceu as escadas e quando chegou ao saguão ele encontrou Vitória e Amália entrando em casa.

- Quando foi que o mundo acabou e eu não percebi? - Exclamou Francesco quase rindo de nervoso.
- Nem me fale - suspirou Vitória enquanto fechava a porta dupla de vitral atrás de si.
- A parte boa é que os cavalos estão bem - Disse Amália tirando as botas de montaria as deixando no canto da parede e seguindo de meia com os irmãos rumo ao salão de jantar - já a plantação... mas o que esperar de uma chuva que literalmente destelhou os estábulos, né? A coisa foi feia!
- E o papai? Ainda está lá fora? - perguntou Francesco olhando através das janelas assim que chegou à sala de estar, procurando do lado de fora pela figura alta de ombros largos e cabelos pretos com fios prata.
- Sim, ele foi olhar o resto da fazenda junto com o Tio Sandro e alguns peões, pra saber se mais alguma coisa se perdeu - Vitória respondeu.
- Eu sei que a gente tem que ser otimista e tal mas não sei não viu - Amália terminava de trançar seus cabelos enquanto falava - se as uvas já estavam em frangalhos imagina as outras árvores?

Francesco apertou os lábios também não conseguindo imaginar um fim diferente. Vitória negou com a cabeça, frustrada.

- Só de pensar que as coisas inventam de dar errado justo agora que o papai finalmente conseguiu fechar negócio com o português cabeça dura... - Vitória apertava as juntas dos dedos nervosamente - eu não sei o que ele vai fazer pra contornar essa situação, realmente não sei.
- Ele vai dar um jeito Vi - Disse Francesco despreocupado - ele sempre dá
- Quero acreditar que sim - ela sorriu singelamente.

Depois de passarem pelo último corredor e entrarem no salão, Pilar, Marjorie e Marinês já se serviam, o cheiro de café e chá fresco foram sentidos de longe.

- Bom dia - Amália foi a primeira a dizer.
- Bom dia - as três na mesa responderam em coro.

Amália, Francesco e Vitória se juntaram ao café, Pilar ainda ficou olhando para a porta esperando que seu marido entrasse mas desistiu depois de um tempo.

- Ele ficou pra olhar os arredores com os peões - Amália disse ao notar a aflição da mãe.
- Mas ele vem tomar café? - perguntou Marinês
- Não sei - Vitória encolheu os ombros.
- Conhecendo o pai de vocês, enquanto ele não achar uma solução pra esse problema ele não vai tocar em um só grão! - Pilar tomou um gole de seu café, pela fumaça que voava da xícara devia estar extremamente quente mas ela não esboçou um mínimo jeito de ter se queimado.
- Vocês... acham que a gente vai falir? - falou Marinês de um jeito assombroso, todos olharam pra ela imediatamente - não me olhem desse jeito! Se o papai realmente negociou 80% da safra, que perdemos inclusive, a dívida vai ser enorme!
- Eu ouvi o papai comentar um pouco dessa arte com o Tio Sandro - Vitória cruzou as mãos sobre a mesa como uma executiva - Se o problema for a entrega dos vinhos, ainda há muitos tonéis no estoque da safra passada, dá pra vender! O problema real é como a gente vai ressarcir a venda do estoque todo sem uma safra pra repôr. Querendo ou não, começar a plantação com tudo que é preciso pra obter sucesso na colheita vai dar um prejuízo dos grandes.
- Ou seja, estamos falidos - resumiu Francesco
- Aah... talvez? - a voz de Vitória ficou esganiçada.
- Mas ele já tem algum plano pra... reverter a situação? - Pilar inclinou-se sobre a mesa, atenta.
- Empréstimo seria uma boa - Marjorie falou de seu cantinho, Amália concordou.
- Ele não falou nada sobre isso, pode ser que ele faça um empréstimo, pode ser que não - Vitória serviu sua xícara de leite quente com café, pouco café, como sempre - isso só ele vai dizer.
- Ele vai tomar uma boa decisão - Pilar respirou fundo e sorriu - nunca duvide da capacidade do Coronel Carlos Villamazzo de ter ideias brilhantes.
- É nisso que estamos nos apoiando - Vitória suspirou.
- Enquanto isso, sugiro que a Marjorie deixe para ler seus livros de romance medieval à luz do dia para cortar gastos com energia - Francesco tentou descontrair, Marjorie o olhou de canto.
- Esse é de 1939, só de três anos atrás - Marjorie levantou o livro de capa vinho, aquele mesmo da manhã passada, na capa estava escrito "As Três Marias, Rachel de Queiroz" - é revolucionário, devia ler.
- Quem sabe quando tiver gravuras - ele sorriu largamente, a irmã sorriu de volta com os olhos semicerrados.

Marjorie, além de Vitória, era a única irmã que conseguia rir dos desaforos de Francesco... ou ela só não via vantagens em perder tempo discutindo com um adolescente de 16 anos.

***

Da forma como Pilar, casada com Carlos Villamazzo há quase 25 anos e particularmente a pessoa que o conhece melhor que ninguém, disse que aconteceria, aconteceu. Assim que voltou da vistoria na fazenda, das nove da manhã em diante, o Coronel não tocou em um só grão. Não comeu nada. Perdeu o café da manhã, pulou o almoço e mesmo com a insistência fervorosa da esposa, não aceitou a bandeja recheada de café da tarde preparada no capricho por Tia Luzia com os quitutes favoritos dele. Passou o dia inteiro trancado dentro do escritório no andar de cima, as vezes, quando ficava nervoso, triste ou precisava pensar, ele se isolava por algumas horas alegando precisar de silêncio - o que era entendível vide que o que mais sua família, composta em sua maioria de jovens entre 16 e 21 anos, fazia era barulho -, mas nunca havia ficado tanto tempo assim.

A hora do jantar logo chegou, Pilar estava agoniada com todo aquele silêncio, pensou diversas vezes em ela mesma ligar para um banqueiro e fazer logo um empréstimo pra acabar de vez com isso, Vitória também não estava muito diferente mas com certeza estava mais calma que a mãe. Além de todos os outros predicativos como beleza, gentileza e inteligência, Vitória também era extremamente paciente, e queria acreditar que todo aquele mistério era a prévia de um plano brilhante de seu pai.
Francesco tentava não pensar muito no que estava acontecendo, pra ser sincero, sua maior preocupação no momento era afastar as uvas passas do arroz e evitar a todo custo mastigá-las por engano, para ele aquilo seria realmente trágico. E quanto ao pai, uma hora ele teria que sair do escritório, ele não poderia ficar sem comer pra sempre...

Os talheres batiam no prato de porcelana no meio do silêncio gutural do salão vazio e repleto de eco enquanto a família engolia a comida como conseguiam. De repente, Pilar levanta de supetão da mesa cravando a faca no pedaço de bife em seu prato.

- Eu vou lá! - sua voz soou mais alta que o normal.
- Mãe! De novo? - Marinês disse com ar cansado - você voltou de lá faz dez minutos!
- Na verdade cinco - Marjorie olhou para o relógio na parede - agora, seis.
- Meu Deus o tempo não passa! - Amália levou as mãos ao rosto e as deslizou puxando os cabelos para trás
- Se acalma mama, daqui a pouco ele está de volta - Vitória tentou, mas não adiantou nada
- Non mi interessa! - Pilar quase gritou, Vitória arregalou os olhos.
- IIh - Francesco apoiou os cotovelos na mesa preguiçosamente - vai começar...

E como se alguém tivesse mexido nas configurações da mulher, Pilar desatou a gritar em italiano toda a sua frustração. Isso não acontecia com muita frequência, só quando a mãe ficava num estado tão grande de impaciência ou raiva que precisava extravasar de alguma forma - e na grande maioria das vezes era desta forma!
Pilar passou pelo menos dois minutos inteiros falando sem parar, Francesco já estava com a testa encostada na beira da mesa sem fazer mais questão de forçar seu cérebro a traduzir a frustração da mãe quando, no meio do falatório que ele julgou ser sobre "arrombar a porta do escritório e tirar o pai de lá a força", Marjorie tomou a palavra.

- Gente peraí peraí! - todos ficaram quietos - escutem.

Passos começaram a ser ouvidos ao longe descendo a escada, Francesco ergueu a cabeça em um pulo e todos ficaram em alerta. Pilar voltou a se sentar e todos foram se ajeitando enquanto os passos ficavam mais alto e mais próximos do salão.

- Eu espero realmente que ele tenha decidido algo megalomaníaco, estupendo e até mesmo perigoso, porque se tiver feito todo esse drama e optar por um empréstimo eu me mudo dessa casa - Marinês sussurrou em um resmungo.
- Vou guardar esta informação - provocou o caçula voltando a comer.
- Frances, acho que agora não é uma boa hora - Alertou Vitória, tensa.
- Na dúvida - Amália sussurrou também - vamos fingir que não estávamos nem ligando.
- Diga por você! - Pilar sussurrou, porém grave decorrente da raiva.

De repente a porta dupla do salão se abriu e, sem mudar uma linha de sua expressão, o Coronel entrou tranquilamente como se fosse mais um dia comum.

- Boa noite - ele disse assim que se sentou em sua cadeira de sempre.
- Boa noite - todos responderam ao mesmo tempo.

Então ele se serviu e começou a comer tranquilamente, as família acompanhando cada movimento feito pelo homem.

Por mais que a garganta de todos estivesse formigando para dizer alguma coisa, o silêncio desajustado ainda perdurou um pouco na mesa. Mas só a tempo de Francesco fazer o que faz de melhor: Acabar com qualquer tipo de cerimônia.

- E então pai? - ele começou enquanto cortava um pedaço de seu bife, todos o olharam de um jeito que, se tivessem poderes, fariam a língua do garoto cair na mesma hora - O que o senhor vai fazer?

Sem parar de mexer sua comida no prato, Carlos Villamazzo deu uma garfada no arroz com passas, engoliu, bebeu um pouco d'água por cima e só então, calmamente, olhou para a família depois de horas de suposta deliberação, prestes a dizer alguma coisa.

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