XVIII - Imutável

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O amor nunca foi uma prioridade para Vicente.

Desde a adolescência ele se contentou em apenas assistir César ser o grande garanhão, o galã, o conquistador, o "irmão disponível", enquanto ele ficava com as responsabilidades de ser o futuro da família.
Algumas garotas lhe jogavam piscadelas, o olhavam de canto esperando que ele as convidasse para dançar nos bailes da cidade em que a família ia antes da morte de Vivian. Eram sempre bonitas, influentes, recatadas, porém, para todas ele dizia o mesmo: que não sabia dançar e indicava para um certo garoto bebericando a quinta taça de champanhe sem deixar a gravata - e o sorriso predador que honrava seu nome de guerreiro romano - afrouxar.

César dizia que ele era careta, a mãe que ele era apenas um romântico e o pai, bem, ele não tinha pressa para ter crianças correndo pelo casarão tão cedo enquanto ainda pulsasse vida em suas veias e lucidez suficiente para mandar e desmandar em suas terras. Mas a verdade é que mesmo Vicente ainda não havia descoberto o que o amor era para ele.

O sol de fim de tarde pintava a fazenda Villamazzo de um laranja fechado, sobrepujando as sombras do anoitecer. Vicente havia acabado de sair do escritório do Coronel e como todas as outras vezes, a missão era encontrar Vitória para lhe contar os próximos passos da Vinícola. E como ela sabia que ele a procuraria, não foi difícil encontrá-la.

De longe, ele a viu admirando as poucas flores que restaram da plantação, as que não foram destruídas com a chuva que culminou naquela sociedade. Ela usava um vestido branco florido de rosa e amarelo e as ondas de seus cabelos dourados brilhavam ainda mais com o sol. Percebendo a presença de seu informante, Vitória ergueu seu rosto agora sendo tocado pela luz solar, e acenou para Vicente. Ele acenou de volta.

- Boa tarde, Vitória.
- Boa tarde, Vicente! - ela sorriu cordial.

Sempre cordial. Sempre educada.

- Quais novidades me traz hoje, hm?
- Não muitas - os dois passaram a caminhar lado a lado pela lateral do parreiral - a pauta hoje foi os últimos preparativos pra viagem à Florianópolis amanhã.
- Vão ver o Doutor Borges mesmo ou o advogado de vocês?
- O Doutor Borges. O Coronel exigiu que fosse ele a organizar o restante da papelada das terras da minha família que serão arrendadas para a próxima safra. Seu pai garantiu que ele é de confiança então concordamos.
- Ele é o advogado da família há anos, diria até que o papai confia mais nele do que em si mesmo - Vitória suspirou - mas sabe o que é engraçado? Eu nunca o vi.
- Bem, posso te fazer um retrato falado - Vicente encolheu os ombros e olhou de canto para o rosto de Vitória. Se sentiu satisfeito ao ver um pequeno sorriso nos lábios dela.
- Você também vai à capital? - Vicente assentiu, Vitória ergueu as sobrancelhas - Uau... Porquê sinto que você está tomando minhas chances de participar dos negócios da minha familia?
- Não se enciúme, se eu tivesse a escolha de ficar aqui na cidade eu lhe cederia meu lugar no trem de muito bom grado.
- Não quer ir? - ela o olhou, o sol pintando a íris de seus olhos azuis de dourado claro.
- Não mais que você.

Ele sorriu brevemente para ela, de forma gentil. Ela o encarou por alguns segundos até seu rosto reagir também em um sorriso, mas logo em seguida evitou o olhar dele, dando passos mais rápidos a sua frente.

- Irá a festa de carnaval hoje à noite? - Ela desconversou, Vicente se apressou para não ficar para trás - a cidade inteira estará lá, vai ser uma festança.
- Eu soube, o prefeito não mediu esforços este ano, mas não tenho certeza se irei. Meu irmão com certeza irá.
- Você deveria ir também.

Vicente se surpreendeu por um momento.

- É um convite? - ele finalmente conseguiu se aproximar.
- Ah... bem- eles se olharam e pararam na entrada do parreiral - é só que, todo mundo merece se divertir não é? Escritórios não devem ser mais divertidos que salões de festa.
- Eu poderia dizer que tem razão, mas digamos que não sou o melhor dançarino.

Vitória sorriu. Rindo de algum pensamento que lhe passou na cabeça.

- Me imaginou dançando frevo ao som de uma marchinha, não é?
- Desculpe - ela passou uma mão pelo pescoço - mas sabe, na minha cabeça não parecia tão ruim.
- Está sendo bondosa.
- Não, acredite. Na minha cabeça eu não estava muito longe de você.

Os dois riram juntos, numa sincronia perfeita de sorrisos.

Algo estranho e engraçado que os dois tinham em comum era o fato de sem querer, fazerem gestos iguais. Levantavam a mesma mão para acenar um para o outro, se apoiavam sobre a mesma perna, andavam em sincronia e as vezes até diziam a mesma palavra ao mesmo tempo. Vicente achava isso algo fascinante, mas tinha a impressão que só ele havia percebido.

- Se eu fosse à festa, faria companhia a este pobre homem de dois pés esquerdos?

Aos poucos, o sorriso de Vitória foi desaparecendo e o olhar dela se perdeu do rosto de Vicente nos resquícios da plantação.

Sempre que se viam, Vitória era o símbolo da doçura. Era gentil, simpática, estava sempre sorrindo e disposta a manter uma conversa divertida o suficiente para que fosse impossível não gostar dela de forma natural. Entretanto, com Vicente as coisas eram um pouco diferentes. Com frequência ela deixava de olha-lo nos olhos, se afastava, cortava a conversa, sempre da forma mais educada possível mas sem deixar desaperceber a distância que ela impunha a força entre eles. E daquela vez não foi diferente.

- Acho que conversamos tudo que tínhamos para conversar, não acha?

Ela sorriu brevemente e tomou o rumo de volta para a mansão. Vicente a observou partir sozinha, lhe dando o espaço necessário para que ela continuasse pensando que aquela era a melhor solução para mantê-los seguros. Para que ela se mantivesse segura.

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