X. Questões

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Naquela noite, durante o jantar, o Coronel Villamazzo finalmente comunicou oficialmente a sociedade entre sua família e os Castilho. Ninguém fingiu surpresa pois àquela altura já estava mais que claro. Entretanto, não dava para negar a satisfação - e alívio - de todos com a novidade e a escolha. Os Castilho eram extremamente bem quistos, e não só por Marinês como se aparentava.

Desde que voltaram do casarão dos vizinhos naquela manhã, em todas as oportunidades que tinha, Marinês fazia questão de deixar claro o quanto estava empolgada com a nova parceria. E era exatamente isso que fazia enquanto escovava seus longos cabelos ruivos em frente ao espelho de seu quarto.

- Ai, eu ainda não consigo acreditar que o papai escolheu os Castilho! - Marinês vibrou - me digam, não parece coisa do destino? Só pode ser coisa do destino!
- Destino eu não sei - Disse Amália, sentada no tapete com as pernas cruzadas - mas que foi sorte, isso foi!

Ela deu uma risadinha que foi logo interrompida por um grunhido de dor.

- Ai! - Amália puxou sua mão da mão de Vitória, que estava tentando tirar uma farpa do dedo anelar da irmã havia pelo menos vinte minutos.
- Desculpa! - Vitória se retratou e estendeu sua mão novamente - devolve.

Amália apoiou sua mão de volta na da irmã e Vitória voltou ao trabalho.

- Eu nunca estive tão perto deles antes - Marinês falou sonhadora - que genética boa a daquela família, benza Deus...
- Eu não os achei nada demais - deitada na cama de Amália, Marjorie comentou enquanto virava mais uma página do livro que trouxe do casarão dos Castilho.
- Mas dos livros você bem que gostou, né? - Marinês deixou a escova sobre a penteadeira e olhou para Marjorie, que deu um sorrisinho que falou por si.
- Este é qual, Marjorie? - Vitória perguntou ainda empenhada em tirar a farpa do dedo de sua irmã mais velha.
- Oscar Wilde - ela respondeu de prontidão.
- E fala sobre o quê? - Amália perguntou.
- Vocês realmente se importam? - rebateu Marjorie de forma certeira.

Marinês e Amália se entreolharam brevemente.

- Naah - as duas responderam juntas e a garota voltou à sua leitura sem reclamar, afinal, nem ela sabia muito bem como explicaria a trama de Dorian Gray, Basil Hallard e aquele quadro...
- Voltando aos Castilho - Marinês puxou o assunto novamente, Amália se conteve bravamente para não suspirar alto de tédio - sério, essa é a minha chance! Vocês viram o César? Ele não parava de olhar para mim! Eu ainda acho o Vicente mais bonito, mas o César parece o que está mais acessível... ai que dificil!
- Você não acha que está se precipitando, irmã? - perguntou Amália - querendo ou não você acabou de conhecê-los, quem garante que são mais do que um mero rostinho bonito?
- Eu concordo com a Amália - Vitória citou, os lábios de Marinês se retorceram - enquanto eu estava tentando... obter respostas... o Vicente praticamente me chamou de fútil! E ele nem me conhece! Isso diz bastante sobre ele...
- É, mas pelo que você mesmo disse ele te pediu desculpas! - Marinês se levantou da penteadeira e foi para sua cama no lado contrário a cama de Amália - isso também diz bastante sobre ele.
- Marinês Angeli Villamazzo, a advogada oficial dos Castilho - Amália brincou.
- É mais que meu dever defender meu futuro marido! - a ruiva encolheu os ombros com a feição mais pimposa possível, Vitória negou com a cabeça - os dois, afinal, o que vier é lucro!
- Você devia focar no César - sugeriu Marjorie de seu canto.
- Mas o Vicente também é um baita de um partido! Primogênito, bonitão, educado, estudado... - Marinês foi contando nos dedos - e ele parece ser do tipo que é só alguém falar de assuntos difíceis perto dele que ele se derrete todo! Então, além de começar a ler o jornal local, preciso principalmente de uma pequena ajuda da minha querida irmãzinha caçula!

Marinês disse de forma açucarada olhando para Vitória, ela deu um sorrisinho.

- Se soubéssemos que tudo que você precisava para se interessar pela Vinícola era uma paixonite que gostasse de negócios, deveríamos ter lhe arrumado alguém a mais tempo - ironizou Vitória - mas você que pensa que vou te dar aulas sobre vinhos de graça, quero pelo menos uma bonificação em sobremesas.
- E quem disse que eu quero aprender sobre a vinícola?

Vitória olhou para Marinês tentando entender sobre o que exatamente ela estava falando, até que a acidez e a maldade no olhar violeta da irmã a atingiram em cheio e as coisas ficaram bem claras.

- Marinês deixe disso, eu estou quieta no meu canto! - Vitória se defendeu.
- Você também estava quieta no seu canto quando o irmão da Bianca que eu estava de olho havia uns dois meses, te cortejou com flores e bombons! - Mas Marinês insistiu na discussão gratuita, como sempre.
- Pelo amor de Deus, a gente tinha doze anos! - Vitória largou a mão de Amália e encarou a ruiva - e você sabe muito bem que eu só aceitei por pura educação, fora que o Francesco comeu a metade da caixa e... e eu nem sei porque eu estou me justificando! Não devo nada!
- Não deve? - Marinês questionou com humor - acha que eu não sei que você estava louquinha pra ficar a sós com o Vicente? Na primeira oportunidade que teve saiu correndo pro lado dele!
- Eu fui falar com ele porque precisava de respostas sobre a sociedade e você sabe muito bem disso! - Vitória suspirou tentando manter a calma - e mais, se depender de mim você pode ficar com os dois!
- Então se não for pedir muito - Marinês apertou os olhos na direção de Vitória - mantenha-se longe dos irmãos Castilho porque você pode até não ter interesse neles, mas nada impede deles terem interesse em você.
- CONSEGUI!

Amália exclamou sorridente segurando aquela farpinha de madeira minúscula numa mão e a agulha fina que a ajudara a tirar na outra. Vitória mal tinha visto quando a irmã pegara a agulha de sua mão, na verdade nem ligava para isso, estava aliviada pois agora não tinha mais motivos para ficar ouvindo de graça tanto desaforo.

- É - Não muito contente, a caçula das meninas se levantou do tapete - talvez o problema esteja mesmo em mim!

Desamarrotando a camisola e com uma visível chateação, Vitória saiu do quarto sem sequer dar boa noite. Amália olhou repreensiva para sua irmã do meio.

- O que foi? - Marinês deu de ombros - estou apenas falando a verdade, e ela costuma doer! A Vitória não é boba não! Ela conversou com ele, ela viu a beleza dele, e se ela furar meu olho independente do irmão, eu não vou perdoá-la nunca!
- Ai ai - Marjorie disse bem alto - que coisa mais patética.

Marinês revirou os olhos diante do comentário - mesmo que a irmã não tenha explicado se estava falando do livro ou dela, mas para bom entendedor meia palavra basta.

No andar de cima, acabando de sair do banho, Francesco secava os cabelos úmidos com a ponta da toalha quando encontrou Vitória subindo os últimos degraus da escada.

- Ué, você por aqui? - Francesco questionou jogando a toalha por cima de seu ombro, não era comum Vitória se deitar antes das 22:00, e ainda não devia sequer ser 21:00.
- Estou cansada, o dia foi bem longo hoje - ela disse jogando os cabelos para trás e sorrindo fraco.

No geral Francesco era bem desligado. Desligado com os assuntos familiares, com preocupações, responsabilidades e até sentimentos alheios. Mas não atoa a Vitória era sua irmã favorita, ela era tão transparente quanto água e ficava fácil saber o que ela estava sentindo só de olhar para seu rosto.

- Hm - Francesco inclinou a cabeça - cansaço ou Marinês?
- Você me conhece tão bem que me dá raiva! - Vitória riu e bagunçou os fios molhados do cabelo do irmão, lançando gotinhas d'água por todo o lado.
- Posso deixar a Pandora e o Max dormirem na cama dela de novo como fiz no ano passado, se você quiser.
- Não, não quero, foi terrível!
- Foi só um pouco de lama! - O caçula encolheu os ombros inocentemente – e sejamos francos, ela mereceu por ter manchado seu vestido favorito, além de ter pego emprestado sem pedir...
- É! mas não foi a Marinês e nem você quem teve de lavar tudo - Vitória ficou séria, o irmão cedeu.
- Tá, você tem razão, claro que tem... mas o que foi que aquela chata encrencou dessa vez?
- Nada – Vitória olhou rapidamente para seus pés - só a conversa de sempre sobre os Castilho, umas ideias tortas... mas ela está apaixonada, está marcando seu território, eu não a culpo embora eu me sinta ofendida.
- Apaixonada... - Francesco rolou os olhos - isso que ela tem chama outra coisa, mas se querem chamar de paixão, chamem.
- Mas isso não importa não é? - Vitória tentou desconversar, mesmo indignado com tanta proteção, Francesco não estendeu a discussão – está sabendo que amanhã nós vamos com a mamãe à cidade ver as nossas fantasias para o carnaval? Espero que já saiba qual vai querer.
- Pior que ainda não, mas Deus me livre deixar esta decisão na mão da mamãe de novo!
- Quem sou eu para discordar, lembra da fantasia de leãozinho?
- Ugh! - Francesco estremeceu, Vitória gargalhou - nem fale numa coisa dessas! Tenho pesadelos até hoje.
- Então decida você mesmo e me diga amanhã cedo, passo no seu quarto antes do café.

Vitória já estava dando as costas quando Francesco teve um estalo imediato e a chamou.

- Ah, amanhã cedo eu também vou sair - ele disse, Vitória o olhou surpresa.
- Tão cedo? - ela ergueu uma sobrancelha - Para onde?
- Vou... cavalgar por aí, voltar a acostumar o Léo com caminhadas mais longas - Francesco sorriu de forma a trazer naturalidade - vou sair as seis.
- Nossa, que revolução! - Vitória sorriu - então deixe um bilhete caso não volte a tempo.
- Tudo bem.
- Tudo bem - Vitória repetiu e sorriu gentilmente - boa noite irmãozinho!
- Boa noite!
- E nada de caçar lagartixas para soltar no lençol da Marinês, ouviu?
- Você descobriu meu segundo plano? Não acredito!

Os irmãos riram um para o outro uma última vez, Vitória se despediu balançando os dedos em um aceno delicado e entrou batendo a porta de seu quarto, Francesco soltou os braços ao lado do corpo e encarou a janela no fim do corredor. Dali, conseguia ver entre as goiabeiras que o rodeavam, um pedaço das águas brilhantes do lago que separava as terras de sua família e as de seus vizinhos Castilho.
Ele não o conhecia, isto agora era um fato.



Na manhã seguinte, Francesco levantou da cama assim que os primeiros raios de sol atravessaram sua janela, vestiu seus suspensórios por cima de uma camisa bege velha que ele adorava e desceu para o saguão de entrada, estranhando como sua casa ficava fria e silenciosa àquele horário.
Resistindo à tentação de assaltar o fogão antes de sair, Francesco passou pelo cantarolar de Tia Luzia na cozinha e o cheiro gostoso de seu café recém coado, e saiu de fininho pelos fundos, indo de lá direto para o estábulo.

Enquanto caminhava ouvindo o som dos próprios passos na grama respingada de sereno, Francesco pensava o que ouviria de Henrique. Pensava se ele contaria uma história novelesca sobre o amor jovem e promíscuo de sua mãe e seu pai verdadeiro, justificando seu medo de Firmino Castilho, se ele desmentiria tudo e na realidade ele realmente era um cuidador de cavalos e seu nome sequer era Henrique, ou até se ele iria mesmo ao lago já que saiu correndo sem confirmar nada. Francesco se sentiu um idiota de repente, mas foi um sentimento que durou apenas até que pudesse se lembrar do olhar aflito de Henrique no dia anterior. Havia algo errado, muito errado, com aquele olhar. E isto intrigava Francesco a ponto de levantá-lo as 5 da manhã sem nem ter certeza se daria resultado. Ele precisava saber, ele queria saber. E tinha certeza de que não ficaria em paz até descobrir a peça que faltava.

Depois de selar seu cavalo, Francesco montou e saiu cruzando as terras de seu pai ainda no limite das cercas, rumo ao lago e quem sabe, às respostas...

...mas aparentemente as respostas não tinham tanta pressa assim em chegar.

De início, esperar enquanto desfrutava de um banquete de goiabas maduras direto do pé era algo fácil até para os mais impacientes - como o próprio Francesco - mas, depois de quase horas inteiras, um cochilo de vinte minutos e as contas de quantas goiabas foram comidas se perderem depois da décima, Francesco já estava quase convencido de que foi feito de otário, e pior, que ele mesmo se fez de otário por realmente acreditar que aquele sujeitinho esnobe iria fazer questão de lhe dar alguma satisfação. Mais fácil as goiabas nascerem sem caroços.

Já passava das oito e meia da manhã, o sol estava tinindo no céu azul e alguns feixes de luz atravessavam a copa da goiabeira atingindo os olhos de Francesco, este que depois de esperar sentado por tanto tempo, resolveu avançar de nível e esperar deitado num dos galhos, balançando tediosamente uma das pernas para baixo como um relógio de pêndulo. Léo também já estava deitado na relva, pois se seu dono se cansava de esperar, ele também tinha esse direito.

Enquanto olhava para os pedacinhos de céu que se dava para ver entre as folhas da copa, Francesco relembrava o que te trouxe ali. Era o último mês de férias, estava há mais de 60 dias sem uma única novidade. Todos os dias ele acordava, tomava café, lia alguma história em quadrinhos ou assaltava a cozinha atrás dos doces de Tia Luzia, irritava Marinês, jantava e ia dormir. Todos os dias era exatamente a mesma rotina e quando lhe surgiu uma luz no fim do túnel em forma de uma história cabeluda cheia de reviravoltas, quem poderia lhe contar, não vai!

E falando nele, o rosto de Henrique ainda não lhe saía da cabeça, tentava imaginar o que poderia estar se passando detrás daquele medo todo, Henrique poderia muito bem saber muito mais coisas sobre os Castilho do que ele e sua família, afinal ele morava com eles. Embora populares, como disse a Nininha os Castilho eram extremamente reservados e pouco se sabia sobre eles, numa cidade pequena era praticamente impossível que alguém não saiba da vida um do outro, e aquilo era muito suspeito!

Ter uma cabeça muito imaginativa na maioria das vezes ajudava Francesco a se virar em certas situações da melhor maneira possível, mas naquele momento, no meio daquele silêncio todo, com o juízo abarrotado de perguntas sem respostas e com o tédio querendo tirá-lo do chão a todo custo, o garoto começou a pensar demais.

E se de repente os Castilho estiverem planejando algo? E se Henrique souber destes planos e por isso teve medo de que seu pai pensasse que ele abriu o jogo todo para Francesco? E se a família Villamazzo fosse o alvo principal deste plano por isso aceitaram montar uma sociedade tão rápido? Um golpe? Uma fraude? Algo pior?!

Francesco já estava completamente imerso dentro de suas múltiplas possibilidades – e até começando a acreditar nelas - quando ouviu, não muito longe dali, o som de cascos de cavalo contra a terra. Pensando ser Henrique, em meia fração de segundo ele levantou-se do galho da goiabeira sacudindo os cabelos fazendo milhares de folhinhas caírem dos fios, e subiu até um galho mas alto para tentar ver quem se aproximava dali. Já quase no topo da copa, em frente às estacas de madeira que cercavam o casebre de Tia Luzia e sua família, Francesco viu três cavalos: dois marrons e um marrom com manchas brancas, e montados neles, Firmino, César e Vicente Castilho respectivamente, cavalgando não muito rápido mas cheios de elegância e presença, como deveriam ser na maior parte do tempo.

- Lá vão eles – Francesco sussurrou os vendo irem em direção à sua casa, ele negou com a cabeça – e sem Henrique...

Francesco olhou para trás, para o casarão dos Castilho, depois olhou novamente para os três homens que já estavam longe. Se ele estivesse certo, isto significava que Henrique estava sozinho em casa, e se estivesse ainda mais certo, ele estaria só por boas horas...

O italiano olhou outra vez para o casarão – que àquela distância só se dava para ver um pedaço do telhado -, uma ideia começou a borbulhar em sua cabeça. Uma ideia que definitivamente não agradaria sua mãe se ela soubesse.

Na mesma rapidez com a qual subiu, Francesco desceu da árvore e pulou no chão. Fazendo um barulho com a boca conseguiu que seu cavalo se levantasse, e sem dificuldade ele o montou, agarrando as rédeas entre as mãos um pouco sujas de terra.

- Scusa mamma – Francesco sussurrou – mas se eu estiver certo, no futuro vai me agradecer pelo meu... trabalho investigativo!

E lá se foi Francesco a todo vapor rumo as terras Castilho, certo de que se havia uma peça faltante naquela história toda, ele iria descobrir! 

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora