IV. Família encontra família

26 2 2
                                    

O dia começou cedo naquele domingo. O sono de ninguém passou das seis da manhã, e alguns nem chegaram a vir quando as primeiras luzes do amanhecer adentraram as janelas.

Mas esse não foi o caso de Francesco.

Francesco dormira muito bem, bem até demais! Tanto que se a mãe não o tivesse acordado - com um (mau) humor matinal tenebroso decorrente dos acontecimentos da noite anterior - seu sono facilmente teria passado das nove na maior paz e tranquilidade.

Entretanto, a paz do garoto durou apenas até que Tia Luzia lhe entregasse a roupa que a mãe pedira que ela passasse para irem, realmente como lhes foi avisado, à igreja.

No pé do espelho de seu quarto, Francesco encarava seu próprio reflexo no espelho com um desgosto evidente. O terno de linho em um tom de marrom chocolate ao leite que sua mãe comprara para as festas do fim do ano passado, para sua infelicidade - que esperava ter crescido o suficiente de um mês para o outro para não servir nunca mais - ainda servia perfeitamente, e ele teria que vestir aquela roupa desconfortável e cheia de quereres durante toda a manhã, aquela camisa cheia de botões desnecessários, aquela gravata brega apertada no pescoço, e o pior de tudo! Aquele cabelo lambido de um jeito que não havia chance nem para um mínimo frizz e envelhecia Francesco pelo menos uns 7 anos. Com a mão coçando para libertar só alguns fiozinhos, ele já a levava ao topo da cabeça quando foi impedido de forma certeira por seu nome sendo proferido a toda altura na porta de seu quarto.

- Cosa stai facendo, Carlos Francesco?!

O garoto tomou um susto tão grande que por pouco seu coração não sai pela boca. Ele olhou para a porta como se tivesse cometido um crime, mas ao invés da polícia - ou sua mãe, o que seria ainda pior! - deparou-se com uma figura trajada num vestido mid azul com detalhes de renda branca, um xale de cetim pérola sobre os ombros abaixo dos cabelos compridos dourados e um discreto arquinho de tecido preto no topo da cabeça.

No fim, era só Vitória.

- Vitória! - ele exclama um pouco esbaforido, deixando as mãos caírem ao lado do corpo - quer me matar de susto?
- É para você ficar esperto - ela se apoia no batente da porta com um sorriso nos lábios rosados - imagina se é a mama que pega você desmanchando o penteado?
- Você chama essa atrocidade de penteado? - ele apontou para o cabelo intacto, Vitória riu.
- Você está uma graça, irmãozinho, sério - ela tentou ser gentil, Francesco riu de puro escárnio - um verdadeiro cavalheiro dos anos 40.
- 40... - ele resmungou ainda mais - eu estou parecendo o vovô Hermes e quando ele tinha a minha idade nós sequer estávamos neste século!

Francesco continuava encarando seu reflexo com desgosto quando Vitória apareceu ao seu lado e, o pegando pelos ombros, foi o conduzindo para a porta.

- Então, Vovô Hermes, vamos logo que mamãe está colérica como nunca vi na vida, e se não quiser tomar esporro, melhor irmos andando.
- Eu sinceramente não sei porque estão todos tão alarmados! - Disse Francesco enquanto Vitória encostava a porta do quarto e eles tomavam o rumo da escada - Todo esse mau humor está afetando até a mim!
- É uma novidade muito grande, Frances - Vitória respondeu de forma neutra - é normal estarmos todos nervosos diante de uma situação inédita, ainda mais com todo o mistério do papai sobre o que vai fazer a respeito.
- Isso eu sei! A questão é vocês estarem preocupados com as ações do papai! Sabe... ele é o papai! Ele sempre sabe o que está fazendo!
- Papai ficaria feliz de ouvi-lo dizer que confia nele de olhos fechados - Vitória deu um sorriso singelo para o irmão.
- E é por isso que eu não quero ser esse "filho herdeiro" que ele tanto quer que eu seja, fora que eu não levo o menor jeito pra isso, melhor deixar pra quem sabe...
- É, mas nem sempre o papai vai estar aqui pra resolver tudo pra gente, ele não faz por mal quando espera que você se interesse pelos negócios da família, ele só está te... preparando! Imagine se, por algum motivo o papai não estivesse apto a resolver a questão dos vinhedos, se não o herdeiro, quem resolveria?
- Ora não é óbvio? - assim que chegaram ao saguão, Francesco corre até a porta e a abre dando passagem para a irmã - até onde sei, possuo quatro irmãs mais velhas e uma delas é você.

Vitória parou diante da passagem olhando de forma dócil para o irmão caçula, este que não abandonava o largo sorriso travesso de sempre. Ela ainda pensou em dizer alguma coisa para convencê-lo do mundo ao seu redor, mas se contentou apenas em dar um tapinha com a mão enluvada no ombro esquerdo de Francesco.

Ele entenderia um dia.

Logo atrás de Vitória, Francesco fechou a porta e seguiu para o gramado, onde de longe já avistava o Pontiac 1938 preto azulado da família estacionado perto da cancela.

HERDEIROSOnde histórias criam vida. Descubra agora