Ghurab
O sol começava a entrar através da cortina do quarto e a única coisa que consegui fazer foi grunhir em reclamação. Minha cabeça latejava dolorosamente e minha boca estava seca. Maldito conhaque. Me virei na cama, tentando bloquear a luz do dia mas não obtive muito sucesso. Uma risadinha de fundo me tirou devagar daquela névoa de entorpecimento e eu me obriguei a abrir os olhos. O quarto girava vertiginosamente.
"Parece que alguém passou dos limites na noite passada." Uma voz contida falou.
Eu não sabia dizer com exatidão de quem era, mas falava brakbariano.
Sentei-me devagar sobre o colchão e olhei ao redor. Os gêmeos estavam lá, Garkah jogado no sofá na área de lazer, enquanto Manva se manteve recostado contra a cômoda perto da janela. Ele olhava pra mim com um sorrisinho irritante.
"Diga mais uma palavra e passará uma semana procurando seus dentes pelo chão." Grunhi rouco.
Manva ergueu as mãos e soltou uma risadinha baixa. Virou-se para a cômoda e encheu uma caneca com água antes de me entregar. Bebi avidamente e respirei fundo para controlar meu estômago embrulhado.
Garkah sentou-se mais ereto no sofá e olhou na minha direção.
"Alioth saiu essa manhã, foi até o distrito com o loirinho. Devem estar na tal reunião a essa hora. Thesig está com Caeli no quarto, disse que era para nos arrumarmos assim que você acordasse."
Assenti uma vez e fiz menção de levantar, mas o quarto rodopiou e eu me mantive parado até que passasse.
"Vai levar mais tempo que o esperado, pelo visto." Manva provocou. "Vamos acelerar o processo, sim?"
Com isso, ele abriu a cortina num puxão, a luz do sol queimou meus olhos antes que eu tivesse tempo de me preparar.
Depois que consegui finalmente me levantar e tomar um banho, a vertigem pareceu dar uma trégua. Ao que parecia, Alioth passara pelo quarto mais cedo e deixou roupas para usarmos daquele dia, nada extravagante como na noite anterior, apenas roupas simples e neutras. Talvez ela não quisesse chamar tanta atenção naquele momento, o que era um alívio.
Havia pouco que eu conseguisse me lembrar da noite anterior, apenas alguns momentos. Lembrava-me de Alioth se afastar para procurar o tal capitão, eu seguindo-a sorrateiramente depois enquanto bebia copo após copo do maldito conhaque. Lembrava-me de vê-la dançando com um estranho e então tudo não passava de um borrão, até o momento em que ela me prometia uma dança quando surgisse a oportunidade. Pelo menos eu me lembraria de cobrar tal coisa algum dia.
Quando estávamos prontos, saímos do quarto e atravessamos o corredor para bater na porta de Thesig. Caeli a abriu com um sorriso e caminhou até Garkah, imediatamente lhe segurando a mão. Thesig saiu em seguida e nos cumprimentou com um leve aceno da cabeça. Se ela tinha algo a dizer sobre minha bebedeira da noite anterior, sabiamente deixou para outro momento.
Alioth explicara a mulher exatamente o que fazer ao sairmos da pousada, pois ela cuidou de tudo, desde pagar a estadia até caminhar com confiança até o estábulo e pegar os cavalos. E assim, colocamo-nos em movimento até o distrito no qual Alioth estava.
Cavalgamos em ritmo acelerado, mas sem parecer desesperados demais para ir embora, discrição era essencial para que tudo corresse bem. Mesmo assim, eu me pegava vez ou outra olhando ao redor para ter certeza de que não estávamos sendo seguidos, velhos hábitos custavam a morrer.
Cerca de duas horas depois, era possível ver o conjunto de prédios do distrito aumentando diante de nossos olhos, mas diferente do dia anterior, ele parecia mais movimentado. Conforme chegávamos perto, era possível ouvir os homens trabalhando lá. Nas oficinas, martelos batiam contra o metal, dentro do distrito era possível ouvir o som agudo emitido por lâminas se chocando, gritos de comando e passos - muitos passos - ritmados, como uma marcha. Estavam em treinamento, que ótimo. Todos com acesso à variedades de armas, enquanto três brakbarianos adentravam o distrito.
Como daquela primeira vez, deixamos os cavalos com um rapaz dos estábulos depois que Thesig disse ao mesmo que esperaríamos por Alioth, o mesmo assentiu e apontou para o centro do distrito. Provavelmente nos dispensando para que andássemos pelo pequeno mercado que havia dentro do cercado de prédios, e para lá nós seguimos.
Dificilmente eu conseguia ser surpreendido, poderia até ser um pensamento um tanto quanto egocêntrico da minha parte, mas minha criação dentro do Monastério me ensinou o que eu precisava saber sobre quase tudo o que eu veria fora daquelas muralhas. Até que ela apareceu.
Brilhante como um raio em meio a uma dúzia de homens, Alioth treinava. Vestia uma armadura que eu nunca vira antes, prateada e brilhante. Ela empunhava nada mais que uma espada e um escudo. Os cabelos negros como as penas de um corvo estavam trançados, chicoteando conforme ela se movia com fluidez por entre os demais militares. Era como se ela dançasse ao fazê-lo, ao lutar. Os movimentos eram calculados e rápidos, onde sua espada parecia falhar, o escudo entrava e cobria o buraco que fora aberto na ação, sem deixar espaço para que fosse pega desprevenida. Sem deixar pontos vulneráveis. Mas ela não errava os golpes, em todas as vezes, a espada encontrava o ponto exato onde ela queria. Estava brincando com eles, cansando-os. Fazendo-os pensar que estava errando o movimento, e quando avançavam, eram atingidos pelo escudo e atirados no chão como um saco de batatas.
Então, aquela era a única dança que Alioth sabia. A batalha. Pensamentos tão rápidos quanto seus movimentos. Era graciosamente feroz. Seus olhos verdes reluziam em satisfação a cada homem que ela levava ao chão. E ela o fez com todos eles. Sozinha ela derrubou uma dúzia de homens, até que ninguém mais se atreveu a confronta-la novamente. Perguntava-me quantas vezes ela tivera que passar por aquilo para se provar digna do cargo que tinha.
Um gritinho agudo de comemoração soou ao meu lado e então Alioth olhou em nossa direção, encontrando quatro adultos boquiabertos e uma criança saltitante. O sorriso presunçoso de resposta vindo dela fez algo em meu estômago se espremer.
Com um gesto, ela dispensou os homens e começou a caminhar em nossa direção, embainhando a espada no cinto preso na armadura.
"Demoraram."
"Estávamos esperando Ghurab, ele dormiu até tarde!" Caeli me denunciou.
Cruzei os braços e não permiti me sentir constrangido pela repreensão de uma criança linguaruda.
"Espero que sua cabeça não esteja muito dolorida." Alioth riu e secou o suor da testa com as costas da mão.
"Estou bem." Movi o queixo na direção no que agora era uma arena de treinamento. "Terminou a reunião?"
"Há cerca de uma hora, então decidi aquecer um pouco. Thuban foi até o mercado providenciar nosso almoço antes de partirmos."
"Moveram o mercado de lugar? Ontem ele estava bem aqui." Perguntou Thesig.
"Durante a época de treinamento, o mercado é movido para a parte de trás do distrito, podemos aproveitar melhor esse espaço assim." Explicou. "Bom, eu vou trocar de roupa, podem esperar Thuban aqui. Preciso de um banho."
Com isso, ela caminhou na direção do prédio mais próximo, tirando pouco a pouco a armadura prateada, e por onde ela passava, homens batiam continência respeitosamente.
Alguns minutos depois, Thuban voltou com algumas sacolas cheias de comida, oferecendo a nós e encontrando um lugar confortável para nos sentarmos enquanto Alioth se arrumava. Ainda havia algumas mesas remanescentes do mercado que fora movido em algum momento entre o dia de ontem e hoje, então nos aproveitamos da chance.
Depois de algumas colheradas, Thuban olhou para todos.
"Ansiosos para partirem?"
"Você não faz ideia." Manva respondeu em thoraniano, com seu sotaque forte tomando cada palavra. "Em Brakbar não convivemos com tantas pessoas, é sufocante."
"Brakbar?"
A voz masculina soou atrás de nós, vinda de um homem que parecia estranhamente familiar. Devia ter por volta de quarenta anos, mas os fios brancos não eram tão visíveis em meio aos cabelos loiros. Os olhos azuis analisaram cada um sentado à mesa, até que pararam em Manva e faiscaram em compreensão. O homem imediatamente colocou a mão no cabo da espada em sua cintura.
Thuban e eu nos levantamos imediatamente. Caeli se espremeu contra Garkah, mas não de medo, ela estava entre ele e o homem, a menina franzia a testa e repuxava um pouco os lábios acima dos dentes, quase como se rosnasse para o estranho. Uma expressão que eu via muito no rosto de Manva. Protegendo Garkah.
"Eles estão com Alioth, pai." Thuban falou.
Todos na mesa olharam de um para o outro, mas ninguém falou nada. Independente de tal explicação, ele sacou a espada. Thesig se moveu devagar, quase imperceptivelmente para ficar na frente de Manva, não com a expressão selvagem de Caeli, mas séria como dificilmente ela ficava. Protegendo-o também.
"Alioth trouxe brakbarianos para Hudra. Isso não sairá impune!"
Ele começou a avançar em nossa direção, Caeli realmente emitiu um rosnado, Thesig não se moveu um centímetro. Percebi também que Thuban estava diante de mim, mantendo-me fora do alcance da lâmina.
Pelo porte físico do homem, ele poderia facilmente derrubar o filho e então enfiar aquela espada até o cabo em qualquer um de nós. Mas, quando estava a cinco passos de distância, uma lâmina se chocou contra a dele, e em um giro rápido, arrancando-a de sua mão. E ali estava Alioth, com os cabelos molhados e roupas comuns, segurando a espada diante do pai de Thuban.
"Olá, Cornath." Falou com um sorrisinho felino.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantasyHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...