Capitulo III

8 1 0
                                    

  A ferraria não ficava muito longe do Salão Central, quase nos mercados de Thorae. Não passava de um estabelecimento separado em dois cômodos grandes. Um para as forjas e outro para a venda dos produtos feitos lá dentro. Passei muito tempo da minha infância dentro da ferraria junto de Thuban. Quando crianças, gostávamos de pedir as mais diversas coisas para o pai dele nos forjar, como miniatura de armas que não eram afiadas para evitar deceparmos os dedos um do outro, mas que mesmo assim resultava em diversos hematomas. Quando eu comecei a ansiar por iniciar a vida nos exércitos, Thuban foi o único que me apoiou completamente para seguir em frente apesar do que todos os outros diziam. Ele me conhecia o suficiente para não achar descabido me ver comandando os homens mais fortes de Thorae. Depois de alguns anos, quando eu estava em treinamento, Thuban ficou com a ferraria de seu pai enquanto o mesmo também voltava sua atenção para o exército, retomando o cargo de arqueiro que havia abandonado quando Thuban nasceu. Um homem bondoso o pai de meu amigo, o melhor arqueiro da ilha. Quando eu subi ao posto de general, o nomeei comandante de Hudra. E ele estava na ilha há cinco anos, junto com o resto dos exércitos. A Ilha de Hudra estava a três dias de viagem pelo mar, o exército thoraniano estava estabelecido lá, em constante crescimento e treinamento. Apesar de fazerem parte do povo de Thorae, eles praticamente se governavam lá. Não havia toda aquela baboseira política para que lidassem, só o foco em se manterem letais o suficiente para o caso de serem necessários, pois o exército thoraniano era o mais forte do continente. Era uma vida que eu queria, dentro daquela ilha praticando aquilo no qual eu sabia que havia nascido para fazer. Mas aquela outra parte de mim que estava enraizada no Salão Central e a Cepheus não permitia que eu fosse embora de Beldarrien. A coroa imaginária em minha cabeça às vezes tinha um peso maior do que deveria e me incomodava. A visão das pessoas sobre mim variava tanto que era como se olhassem para duas pessoas diferentes. Alguns viam apenas a herdeira e outros viam apenas a general.
​  Meus pensamentos continuavam borbulhando quando entrei na ferraria. Thuban ainda trabalhava, forjando uma espada nova. Sem dizer nenhuma palavra, caminhei até uma cadeira e me sentei, cruzando as pernas. Thuban era um homem muito bonito, e isso eu precisava admitir. Seus longos cabelos loiros estavam presos com uma tira de couro, mas devido ao trabalho pesado, alguns fios haviam se soltado e caíam sobre o rosto. Os braços fortes estavam expostos após ele ter dobrado as mangas da camisa para cima dos ombros, e o suor a fazia colar contra o corpo dele. Não era preciso imaginar muito como era por baixo quando a roupa estava colada daquele jeito. Tinha os olhos de um azul cobalto cheios de esperteza e humor. Enquanto eu era como uma nuvem de tempestade sombria, Thuban era definitivamente um raio de sol.
​  "O que está mordendo você?", ele falou enquanto caminhava até uma bacia cheia de água e gelo para resfriar a lâmina.
​  Escondi um sorriso. Enquanto todos os outros alternavam entre ver a general ou a herdeira, havia Thuban, que via apenas a mim, sem título nenhum. A voz dele era muito grave para o rosto de traços delicados que tinha.
​  "Nada está me mordendo."
​  "Está fazendo essa cara.", disse apontando para o próprio rosto e imitou de maneira exagerada uma expressão de irritação, com as sobrancelhas franzidas e uma linha torta com os lábios, os cantos repuxados para baixo.
​  Relaxei a minha expressão e ergui o tom de voz. "Não estou não!".
​  Thuban sorriu e ergueu a espada para analisar a lâmina, caminhando de volta até a forja, enfiando-a mais uma vez entre os carvões acesos. "Sim, estava. Mas não se preocupe, é comum em você. Todos os seus pensamentos estão sempre estampados em seu rosto, duvido que haja alguém em Thorae que fique surpreso com essa sua cara amarrada."
​  Alcancei o primeiro objeto mais próximo a mim e arremessei contra ele sem nem ver o que era. Ele se abaixou e gargalhou, desviando do que quer que eu tenha jogado. Provavelmente uma pedra de afiar as facas.
​  "E você parece estar com um humor ótimo para quem está trabalhando até agora. O que está aprontando? Mais uma invenção?"
​  "O que te faz pensar que eu estou aprontando algo?" ele colocou a mão sobre o peito, parecendo indignado diante da minha acusação. Ergui uma sobrancelha e o sorriso dele aumentou, se tornando malicioso. "Você me conhece demais para o próprio bem, Alioth." Fiquei em silêncio, esperando que ele dissesse logo o que estava fazendo.
​  "Estou montando uma armadilha nova, com mecanismos avançados para colocar em pontos estratégicos da floresta, onde os bárbaros costumam usar para invadir Thorae."
​  Semicerrei os olhos e encarei meu amigo. Thuban era um ano mais velho que eu, mas parecia ser vários anos mais novo. A empolgação genuína que ele tinha com sua nova invenção era como de uma criança.
​  "E decidiu fazer isso por conta própria, sem consultar um superior militar para avaliar os benefícios e malefícios de armadilhas na floresta que usamos para caçar nossos alimentos e onde crianças correm livremente?" Meu tom de voz ficou sarcástico, mas não havia sorriso em meus lábios.
​  Thuban abriu a boca para dizer algo, mas desistiu, desviando o olhar para a espada que havia deixado no fogo. Pegou-a e voltou ao trabalho de modelar a lâmina que estava vermelha com a temperatura elevada. "Não havia pensado nisso".
​  "Claro que não. Por isso eu tenho sempre que ficar de olho em você, já que só um de nós parece ter um cérebro."
​  Ele apontou o martelo na minha direção sem tirar os olhos da lâmina que segurava. "Cuidado." Sorri e me levantei.
​  "Deixe isso para depois, vamos jantar. E amanhã vamos falar melhor sobre essa sua ideia de armadilha."
​  "Eu te encontro no Salão Central. Vou terminar esta aqui primeiro."
​  Dei de ombros e caminhei para fora da ferraria, sentindo de imediato a diferença de temperatura entre forjas para a noite de Thorae. Segui em silêncio até Salão Central, quando entrei em casa, meu estômago roncava. Fui diretamente para o salão de jantar, onde Cepheus já estava sentado à mesa, comendo. Me sentei na cadeira a sua direita e rapidamente tratei de me servir com grandes porções de comida.
​  "Como foi o treino de hoje?" ele perguntou depois que comi algumas garfadas.
​  "O de sempre. Ainda tenho que escolher os homens para mandar pras fazendas. Mas é mais difícil do que parece. Nenhum deles parece disposto a ir pra lá."
​  "Absolutamente compreensível. A capital tem muito mais destaque, principalmente para aqueles que desejam ir para Hudra."
​  Parei com o garfo na metade do caminho até minha boca e olhei para ele pelo canto dos olhos. Ele viu algo em meu olhar e começou a balançar a cabeça negativamente.
​  "Não teremos essa discussão de novo, Alioth. Seu lugar é aqui, junto do povo. Você pode até ser a general, mas também é a herdeira e tem responsabilidades. Talvez o que te falte aqui seja apenas o incentivo para ficar."
​  "Estou em Beldarrien toda a minha vida e não encontrei incentivo para ficar aqui. Meu lugar é em Hudra, e por mais que você negue isso, sabe que é verdade. Eu nunca vou me encaixar aqui, ser como as outras pessoas. Eu sou tão diferente delas quanto à água é do vinho."
​  Cepheus bateu com sua mão na mesa e as taças balançaram. Abaixei o olhar para meu prato e fiquei em silêncio. "Você se sente deslocada assim somente porque nunca se esforçou o suficiente para ser parte disso."
​  "Pensei que você me conhecesse melhor do que isso." Sussurrei.
​  Houve alguns instantes de silêncio, até que ele voltou a falar e meu coração se tornou gelo dentro do peito. "Houve uma proposta de casamento para você vinda do próximo líder dos portos, o pai dele adoeceu e ele vai assumir em breve. É uma boa proposta, ele seria um bom líder em Thorae, é novo, pode aprender rápido, além de ter terras o bastante na beira mar para sustentar você e quaisquer futuros herdeiros."
​  Meu olhar voltou para Cepheus, e o que quer que estivesse estampado em meu rosto, o fez hesitar em continuar a falar. "Alioth, o povo precisa..."
​  "Como você pode cogitar algo assim? Quer me vender para os pescadores para que a sua própria consciência esteja tranquila?" Joguei o garfo contra o prato, espalhando a comida, perdendo completamente a fome e me levantei tão abruptamente que a cadeira debaixo de mim caiu. "Pois fique sabendo que se aceitar isso, estará me condenando a algo pior que a morte. Vai tirar de mim toda a honra que conquistei com muito trabalho. Eu não vou ser rebaixada a uma reprodutora coroada. Nunca."
​  Antes que ele pudesse responder, as portas do salão de jantar se abriram e Thuban parou antes de dar mais um passo, percebendo o clima ali dentro. Olhei uma última vez para Cepheus antes de lhe dar as costas e caminhar até meu amigo, agarrando-o pelo braço e o puxando para fora.
​  "Posso passar a noite em sua cabana?" perguntei ao sairmos do Salão Central. 
​  "Claro." Ele respondeu sem me perguntar o que havia acontecido. Ele sabia que eu contaria quando estivesse pronta.
​  E naquele momento, ele parecia ser a única pessoa que não tinha nenhuma avaliação a fazer sobre mim. Thuban aceitava e compreendia qualquer coisa que viesse de mim, e naquela noite era o bastante.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora