Capitulo V

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  Depois daquela noite, passei mais uns dias na cabana de Thuban e nossa rotina tomou um ritmo tranquilo até que decidi voltar para o Salão Central. Cepheus tentou falar comigo algumas vezes, mas eu sempre arranjava um motivo para evitá-lo. Sem que ele soubesse, comecei um planejamento cuidadoso para ir embora. Não podia permitir que ele tomasse as rédeas da minha vida daquela maneira, me empurrando para um compromisso no qual eu não queria assumir de forma alguma. Eu amava Thorae, mas não sacrificaria quem eu era por uma ideia ridícula de precisar de um marido para governar o povo. Eu sequer tinha certeza de que um dia ia querer governar o povo. Cepheus fazia aquilo muito bem sozinho. Minha companhia ao lado dele como herdeira era mera formalidade, uma imagem construída por ele. Não havia muito que eu pudesse fazer ali além de ser uma demonstração de governo unificado. Eu queria seguir com a vida que havia escolhido e ser cada vez melhor naquilo que eu me empenhara tanto para conseguir.
​  A ideia de fugir para a Ilha Hudra era um segredo absoluto. Eu não havia contado nem mesmo para Thuban e sabia que quando ele descobrisse, haveria de entender. As semanas se passaram num borrão, onde eu cumpri com meus deveres e agi como se fosse me manter daquela forma para sempre. Falava com meu pai apenas quando necessário e apesar de enxergar como aquilo o chateava, eu não estava disposta a abrir mão da minha vida para viver a dele. Debaixo de minha cama, eu escondi uma bolsa onde coloquei algumas roupas, adagas e estava reunindo mantimentos para a viagem. Preparar aquilo precisava ser muito sutil para não levantar suspeitas, então pegava de pouquinho em pouquinho, o que levava muito tempo. Até que surgiu a oportunidade perfeita para eu colocar o plano em ação. Cepheus iria patrulhar com alguns dos homens na parte leste da floresta, perto do Furkona no dia seguinte, e assim que ele partisse, eu também o faria.
​  Me levantei ao alvorecer e o acompanhei num café da manhã silencioso, e ele saiu antes que eu tivesse terminado de comer, encontrando os homens no centro de Thorae e partindo floresta adentro. Corri para minha torre e peguei a bolsa que havia escondido. Coloquei um manto sobre os ombros e saí do edifício, caminhei até o pequeno estábulo que ficava ao lado. Selei meu cavalo, prendi minha bolsa ao alforje e montei. Há algumas noites, havia dito para Thuban que acompanharia Cepheus na patrulha, o que me deu a oportunidade de uma despedida rápida. Cutuquei com o calcanhar o flanco de meu cavalo e ele colocou-se em movimento. Cavalguei tranquilamente pela aldeia, cumprimentei algumas pessoas que acenavam para mim e finalmente consegui chegar até a floresta do lado oeste de Thorae, seguindo para o norte, onde eu contornaria o grande lago para evitar as fazendas. Minha viagem duraria um ou dois dias subindo a floresta para depois descer para o sul, na direção do porto, levando mais um dia e meio. Então mudei o ritmo das cavalgadas de um trotar tranquilo para uma corrida selvagem. Os cavalos thoranianos eram os mais rápidos de Beldarrien, monstruosos perto de cavalos comuns dos outros territórios. Segurei as rédeas com força e semicerrei os olhos, atenta ao caminho diante de mim, inclinando-me levemente para frente sobre minha sela. Minha longa trança esvoaçava atrás de mim e alguns fios negros rapidamente se soltando dela. A sensação de liberdade era tão arrebatadora que um grito saiu de mim, ecoando pela floresta como o uivo de um lobo.
​  Ao cair da noite, montei acampamento e acendi uma pequena fogueira. Tirei a sela do meu cavalo e me sentei no chão para comer. Um pedaço de pão e algumas frutas que encontrei na floresta. Depois que terminei, coloquei mais alguns pedaços de lenha na fogueira para mantê-la acesa durante toda a noite e me deitei sobre o manto que havia levado comigo, encarando o céu noturno acima de mim, observando as estrelas através das copas das árvores. Uma nuvem cobria a lua, ocultando seu brilho e eu estendi a mão na direção da mesma, sentindo falta da minha vista da torre. A lua parecia tão distante de mim agora, me privando de seu brilho. Talvez o Céu estivesse me punindo por minha covardia e meu orgulho. Eu sabia que o que estava fazendo era errado e egoísta, mas eu ainda não estava pronta pra deixar de lado a melhor parte de mim pra dar lugar a alguém que eu sequer sabia quem era. Soltei um suspiro pesado e fechei os olhos, deixando a luz das estrelas me fazer companhia em meus sonhos.
​  Continuei minha viagem antes que o sol nascesse completamente, pelos meus cálculos já estava na metade do lago, logo eu o contornaria, desceria a floresta até o porto e de lá seguiria pelo mar até Hudra. Aproveitei toda a luz do dia para avançar o máximo que pudesse, parando poucas vezes para descansar. Nesse ritmo, consegui contornar o lago ao final da tarde. Minhas costas protestavam por conta do tempo em cima da sela, mas ainda tinha algum tempo da luz do sol e continuei. Quando ele se escondeu no horizonte e trouxe a escuridão da noite, mais uma vez eu montei acampamento. Talvez no dia seguinte eu devesse caçar para comer algo com mais substância. Enfraquecer antes de seguir a viagem pelo mar era impensável. E pela segunda noite eu me deitei sob o véu de estrelas e adormeci.
​  Um ruído baixo me acordou no meio da noite. Não ousei me mover, se fosse um animal selvagem, eu apenas o assustaria se me levantasse e na certa seria atacada, então fiquei deitada com os olhos abertos enquanto escutava. O ruído soou novamente, no meu alforje pendurado em uma árvore próxima atrás de mim. Devagar, eu virei a cabeça para olhar. Não era um animal, era uma garota. Silenciosamente, eu comecei a me erguer enquanto ela estava com a cara enfiada no meu alforje. Peguei a adaga que mantinha ao meu lado e fiquei de pé.
​  "O que pensa que está fazendo?" minha voz soou alta dentro do silêncio absoluto da floresta.
​  A garota se sobressaltou e virou na minha direção. Ao ver a adaga em minha mão, seu rosto ficou branco como osso. Tinha a estatura baixa, quase como uma criança. Eu até pensaria que era uma criança, se não fossem os seios fartos por baixo do vestido rosa surrado que usava. Mas seu rosto... Este era devastador, lábios delicados e carnudos, um nariz pequeno e arrebitado, seus olhos pareciam duas moedas de cobre e os cabelos que emolduravam seu rosto eram castanhos, descendo como ondas até a metade das costas. Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, a garota se virou e correu para dentro da floresta. Coloquei-me em movimento atrás dela, grunhindo a cada tropeção que levava no escuro enquanto a pequena ladra corria sem tropeçar nenhuma vez, mesmo que não tão veloz. Forcei minhas pernas a irem mais rápido e consegui chegar perto o suficiente para agarrá-la pelo vestido. Quando o fiz, ela vacilou nas passadas, tropeçando, e ambas caímos. Rolamos pela terra algumas vezes e eu a prendi sob meu corpo, com a adaga que levei comigo apontada para seu pescoço.
​  "Pelo Céu, não me mate! Eu não peguei nada!" suplicou com a voz aguda estremecendo de desespero.
​  "Por que correu, então?"
​  "Eu... eu fiquei assustada. Me desculpe!" seus olhos brilharam com lágrimas.
​  Encarei-a por mais alguns instantes antes de me levantar, sem desviar os olhos dela. Ela se levantou devagar em seguida, como se qualquer movimento que fizesse resultaria em ter minha adaga atravessada em seu crânio.
​  "Como se chama?" perguntei.
​  "Thesig."
​  "O que queria nos meus pertences, Thesig?" meu tom de voz era baixo e ameaçador.
​  Seus lábios se fecharam com força e sua coluna enrijeceu como se quisesse impedir a si mesma de curvar os ombros.
​  "Não há muitas pessoas que acampam nessa parte da floresta, pensei ser um dos moradores das fazendas."
​  "Isso não responde minha pergunta."
​  "Estava procurando por comida."
​  Minha mente ficou silenciosa. Então eu observei a menina mais atentamente. Seus braços eram magros, pendendo ao lado do corpo e apesar de sua beleza arrasadora, tinha o rosto macilento, com leves manchas escuras sob os olhos. A garota passava fome. Eu não ouvira nenhum relato sobre aquele tipo de necessidade vinda dos moradores da aldeia ou das fazendas nos últimos meses, principalmente fora do inverno. Meu olhar deixou a menina para analisar os arredores. Alguns metros à frente, oculta pela folhagem densa, estava uma pequena cabana em condições precárias. Minhas sobrancelhas se uniram.
​  "Você mora ali?"
​  "Sim. Moro sozinha na floresta desde criança."
​  "Por quê?"
​  Ela ficou em silêncio por algum tempo, até que olhou também na direção da cabana.
​  "Porque eu fui exilada pelos thoranianos."

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora