Depois de aquele jantar terrivelmente silencioso e a conversa que tive com Ghurab na cozinha, tudo pareceu entrar em um ritmo. Naquela noite, quando estava na cabine que dividia com Ghurab, falamos pouco e somente a respeito do nosso objetivo. Não havia muito mais o que falar, precisávamos de tempo para adaptação. Ele conseguia entender isso melhor do que eu, e se eu fosse sincera comigo mesma, ele era melhor do que eu em muitas questões. Com os dias, Caeli aprendia mais sobre a língua dos brakbarianos. Ela se saía muito bem nisso, sua mente conseguia absorver rapidamente tudo o que lhe era ensinado. E para minha surpresa, Thesig também se juntava às aulas algumas vezes. Com qualquer que fosse o incentivo que recebera daquilo, ela pediu a mim e a Thuban para lhe ensinarmos a ler e escrever. Ghurab ajudava algumas vezes, em outras, os outros dois brakbarianos tentavam aprender também. Até que cada um de nós estava aprendendo cada vez mais sobre a língua e costumes um do outro. Era um progresso que eu não previra e fazia minha ansiedade por respostas se tornar secundária, mantive minha mente distraída do nosso destino, e nas vezes em que assumia o timão, me pegava treinando as pronúncias brakbarianas. Não era muito, mas seria o suficiente para o momento.
Me impressionava o quanto Ghurab era bem instruído, sabendo falar as duas línguas e mais algumas que eu desconhecia. Talvez, se a oportunidade surgisse, eu poderia pedir a ele que me ensinasse tais línguas também.
Para nossa sorte, Caeli se dava bem com ambos os povos, se é que poderia colocar de tal forma. E para nosso azar, Manva começou a se afeiçoar pela menina e descobrimos que ele era muito mais imaturo que ela. Os dois passavam os dias - entre uma aula e outra - pregando peças em todos.
Em uma tarde, um dos guardas misteriosamente escorregou em uma poça de óleo no convés e deslizou até a proa do navio. Outro guarda não viu o saco de farinha preso em cima da porta de sua cabine quando a fechou, no que resultou em um homem muito zangado e completamente sujo de branco. Manva e Caeli apenas soltavam risadinhas pelos cantos e se escondiam de mim ou de Ghurab quando íamos lhes dar uma bronca. Thesig e Garkah se limitavam a revirar os olhos e seguir com qualquer que fossem suas tarefas.
"Antes eu me preocupava em ter Caeli a bordo, agora tenho que me preocupar também em ter Manva a bordo. Aparentemente eles têm a mesma idade mental." Resmunguei certa noite quando estávamos na cabine prestes a dormir.
"Caeli certamente é a adulta entre os dois." Ghurab respondeu. Eu conseguia ouvir o sorriso em sua voz. De certa forma, eu estava feliz pela menina ter encontrado um amigo. Não era exatamente o esperado, mas era melhor que se sentir sozinha entre adultos exaustos e rabugentos.
Na manhã do quinto dia ao mar, um dos guardas foi até minha cabine dizendo que chegaríamos a Hudra ao entardecer, logo depois disso eu me levantei e assumi o timão do navio. O vento fazia os fios soltos do meu cabelo chicotearem meu rosto, mesmo quando eu os prendia com força para trás. Em certo momento eu acabei por desistir da tarefa de manter meus cabelos arrumados e abracei o desgrenhado selvagem que se tornava depois das horas ao vento. Depois de alguns minutos, Manva apareceu no convés, dando um leve aceno da cabeça como cumprimento e se sentou nos degraus que levavam até o timão.
"Viu Caeli?" Perguntou.
"Ainda não, por quê?"
"Ela me disse para encontrá-la aqui cedo, tinha algo muito divertido para me contar." Mesmo com o sotaque carregado, era incrível a evolução que fizeram ao aderir à nossa língua. Um leve sorriso levantou os cantos da boca do brakbariano enquanto ele fitava o céu claro.
Ouvimos passos apressados na escada que levava ao convés, e Caeli surgiu ofegante, disparando até Manva com um largo sorriso. Seu vestido lilás esvoaçava enquanto ela corria. Os cabelos haviam sido trançados habilmente ao redor da cabeça como uma tiara, deixando alguns fios propositalmente soltos emoldurando o lindo rosto da menina.
Ela se sentou sobre uma das pernas do homem e respirou fundo.
"Ele vai ficar muito zangado!" A menina começou enquanto soltava risadinhas baixas.
Franzi a testa e olhei na direção da escada, mas não havia ninguém ali. Caeli contava a Manva o que havia feito em voz baixa para que somente ele escutasse. Não demorou muito para que o barulho de uma porta se abrindo e um urro furioso enchesse o nível inferior do navio. Passos pesados começaram a subir as escadas até o convés. Algo como preocupação brilhou nos olhos de Caeli ao ver exatamente o quão furioso o guarda havia ficado. Assim que surgiu no convés, os olhos do homem varreram o lugar e pararam na menina. Um cheiro de peixe encheu o ambiente quando ele avançou na direção dela.
"Sua ratinha, eu vou te jogar aos tubarões!"
Antes que o homem alcançasse a menina, Manva se levantou e se colocou no caminho. Sua postura estava completamente preparada para um combate, os pés bem separados e as mãos paradas ao lado do corpo sem o mínimo resquício de tremor. Manva era quase um palmo maior que o guarda, mas ali naquele momento, olhou para o homem de cima com nada menos que a promessa de violência em seu olhar caso ele tocasse em Caeli. E como se a raiva tivesse drenado completamente qualquer bom senso do homem, ele sacou a espada.
"Saia do caminho ou te cortarei em pedaços, bárbaro!"
Manva não se moveu um centímetro, então o homem avançou, erguendo a espada para desferir um golpe no ombro de Manva. Caeli gritou e o brakbariano se moveu com uma graça felina para desviar da lâmina, e ao fazê-lo, aproveitou a surpresa do guarda para lhe derrubar a espada da mão com um soco e lhe chutar o peito em seguida. O homem foi arremessado contra a amurada do outro lado, caindo sentado. Com um grunhido, ele começou a se levantar. Mas antes que o fizesse, a ponta de minha espada estava contra seu peito. Tomei o controle de minhas emoções e pensamentos, vestindo-me com uma calmaria fria. Não havia sequer uma expressão em meu rosto ao segurar o homem sentado contra a amurada sob minha lâmina.
"Se estiver procurando problemas, soldado, sugiro que consulte antes seu superior." Minha voz soava gélida e severa aos ouvidos. "Ah, sim. Sou eu. E eu digo que se houver tal comportamento vindo da minha unidade, não medirei esforços ao tomar as devidas providências para que os responsáveis por alarde desnecessário sejam punidos. Estamos entendidos?"
O homem engoliu em seco e assentiu uma vez. Semicerrei os olhos e esperei até que a respiração dele se acalmasse é só então afastei minha espada.
"Está dispensado pelo dia. Mantenha-se nos níveis inferiores do navio." Ordenei quando ele se levantou.
Com uma continência, o homem se virou e saiu do convés. Virei-me para onde Manva e Caeli estavam e a menina tremia nos braços do brakbariano. Embainhei minha espada e me aproximei.
"Caeli..." Comecei, mas a menina me interrompeu com a voz chorosa.
"Me desculpe, Alioth. Não vou fazer de novo, pensei que seria divertido, mas estava errada. Vou me comportar melhor, eu prometo." Tropeçava nas palavras, ainda trêmula. "Não quero que me joguem aos tubarões."
"Ninguém vai te jogar aos tubarões, está bem? Se acalme um pouco, sua mãe deve estar na cozinha, vou pedir a ela que te faça um pouco de chá." Me virei para descer as escadas, mas alguém agarrou minha mão.
"Não conte a ela, por favor. Não preciso de chá, já estou melhor."
Semicerrei os olhos para a menina, então ergui o olhar para Manva, que fitava Caeli com afeição. Podia ter jurado ver algo como medo lampejando em seu olhar, que sumiu com um piscar de olhos.
"Ficarei com ela." Ele falou apenas.
"Está bem. Tentem ficar longe de problemas, sim? Estamos quase chegando."
Os dois balançaram as cabeças e saíram do convés. Com um suspiro, subi até o timão e retomei o caminho para a ilha. Olhei para o céu e ergui a mão sobre as sobrancelhas para que pudesse ver melhor na luminosidade e vi duas gaivotas sobrevoando o navio. Estávamos perto de terra, se os pássaros estavam ali. Abaixei o olhar e encontrei Ghurab encostado na amurada, com os braços cruzados sobre o peito. Tinha aquela expressão irritante no rosto, de quem iria certamente comentar sobre o ocorrido e tirar um pouco de sarro.
"Nem comece."
"Eu não disse nada."
"Ainda. Mas sei o que está pensando."
"Ora, é mesmo? E o que estou pensando?"
Revirei os olhos e ignorei a pergunta.
"Chegaremos ao entardecer. Preparado para as tochas e forcados?"
"Tão pronto quanto estaria para enfiar agulhas em meus próprios olhos."
Engoli a risadinha e respirei fundo o ar salgado.
"Usaremos um navio maior do que este. Então não precisaremos dividir as cabines. Tente não chorar de saudade."
"Eu vou chorar com a emoção de conseguir dormir sem a madame língua solta."
"O quê?"
Um sorriso malicioso se abriu no rosto de Ghurab.
"Você fala enquanto dorme."
Senti meu rosto se incendiar.
"Eu não faço tal coisa!"
"E como faz. Sabe, eu não sei se deveria dizer... Mas na noite passada você disse meu nome."
Algo no olhar dele brilhou um pouco, mas antes que eu sentisse o quão fundo as palavras haviam me atingido, seu sorriso aumentou. "Então começou a gemer bem baixinho, como se estivesse..."
Arremessei um balde nele antes que terminasse, o que só o fez gargalhar estrondosamente e me vi rindo também. Mesmo que eu me lembrasse de um ou dois sonhos que poderiam ter me feito emitir tais sons.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantasyHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...