Capítulo XX

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 Talvez eu tivesse morrido. Pelo Céu, o urso havia me atingido em cheio. Eu só poderia estar morta. A absoluta falta de sensações era tão pacífica, eu poderia lidar com aquilo. O silêncio. A calma. Nada importava enquanto eu estava ali. Eu mal me lembrava de meu nome.
 "Ainda não está na hora, guerreira. Desperte." Uma voz sussurrou para mim na escuridão acolhedora. Um chicote estalou e meus olhos se abriram.
 Então veio a dor. Um gemido rouco escapou de mim diante da queimação que eu sentia em minha barriga e ombro. Minha língua estava seca como papel, e como se ouvissem meus pensamentos, alguém aproximou um cantil de água de meus lábios e eu bebi com urgência, chegando a me engasgar.
 "Cuidado, vá devagar." Falou docemente. Eu reconhecia aquela voz. Ergui meu olhar e encontrei olhos cor de cobre, emoldurado por um belo rosto preocupado.
 "Thesig." sussurrei com os lábios tremendo.
 "É muito bom ver você acordada. Deu-nos um baita susto."
 Ri baixo e me encolhi com a dor cortante em meu corpo.
 "Há quanto tempo estou aqui?"
 "Uma semana e meia."
 "Quase não me lembro de nada..."
 "Você ficou apagando e acordando constantemente. Tivemos que enfiar comida e água garganta abaixo em você."
 Engoli em seco e suspirei, tentando me levantar, mas Thesig me impediu, segurando meu ombro bom. "Você precisa descansar, ainda está se recuperando."
 Deixei minha cabeça cair sobre o travesseiro e fitei o teto do quarto. Enquanto eu fitava o nada, Thesig começou a me contar o que acontecera enquanto eu estava inconsciente, como os bárbaros estavam trabalhando agora com os bezerros, depois me contou como ela e Garkah haviam ficado próximos enquanto ela trabalhava na enfermaria.
 "Ele é muito gentil para um bárbaro", comentou baixo quando terminou os relatos.
 "É, parece que sim." Ergui meu olhar para ela, analisando suas feições. Ela olhava para baixo, fitando as próprias mãos, quando ergueu o olhar e percebeu que eu a fitava, se levantou e disse que precisava trocar minhas ataduras.
 Caminhou até a mesa no canto do quarto e pegou uma papa de ervas medicinais com cheiro de camomila e mais algumas que não reconheci. Aproximou-se da cama e começou a tirar as ataduras antigas para substituir pelas novas. Arrisquei olhar para baixo, para ver o estado do meu abdômen. Os cortes faziam marcas profundas em minha pele, os pontos ainda estavam lá, rosados e bem melhores do que eu vira pela última vez. Voltei a deitar a cabeça no travesseiro e suspirei profundamente, tentando não me encolher com a dor de quando Thesig tocava as partes mais sensíveis de meus ferimentos.
 "A infecção foi curada, graças ao Céu. Agora é só esperar a cicatrização da pele. E isso requer que você não saia correndo para a floresta."
 "Não posso prometer nada."
 Thesig me lançou um olhar nervoso, sem perceber o sarcasmo em minha voz. Ela ficara realmente apavorada de pensar que eu não me cuidaria direito.
 "Estou brincando. Relaxe. Nada de fortes emoções por algum tempo, por sorte dos ursos."
 Ela pigarreou baixo enquanto colocava as novas ataduras sobre a papa de ervas de meus ferimentos. "Eram quantos ursos? Como você conseguiu fugir?"
 "Eram dois. E eu não fugi deles por muito tempo. Eu os matei."
 Thesig ficou parada, olhando para mim completamente chocada. "Você os matou? Os dois ursos?"
 "Sim, foi o que eu disse. Um deles com um tiro do arco e o outro enfiando uma flecha no pescoço quando ele saltou sobre mim, não tive muito como de defender, mas pelo menos consegui sair dali e andar o suficiente para chamar ajuda."
 Minha mente ainda era confusa sobre aqueles acontecimentos. Me lembrava de caminhar pela floresta até minhas pernas não se moverem mais, e então uivar. Para Ghurab. Eu perdera muito sangue, era um milagre estar viva. Talvez fosse graças a Thesig e seu misterioso dom de curandeira. Uma batida soou na porta antes que fosse aberta e um dos guardas entrasse. Ele ficou surpreso a me ver acordada.
 "General, fico feliz em ver que está desperta, tem uma visita."
 Meu corpo ficou levemente tenso com a expectativa de ver o enorme bárbaro de cabelos negros e olhos de um abismo profundo passar pela porta do quarto. Mas então, tive um vislumbre de cabelos loiros e longos o que fez aquela chama dentro de mim, diminuir. Thuban caminhou rapidamente até a cama e pegou minha mão, apertando-a contra os lábios. A emoção pura nos olhos de meu amigo fez meu queixo tremer levemente.
 "Oi", falei baixo.
 Um sorriso se abriu os lábios de Thuban e ele piscou para afastar as lágrimas de seus olhos.   "Não consegue ficar longe de encrencas, não é?"
 "Elas me perseguem."
 Ele se aproximou para sussurrar. Thesig pegou a deixa para sair de fininho do quarto. Seus olhos azuis estavam quase incandescentes enquanto encaravam os meus.
 "Nunca mais faça uma porcaria dessa, Alioth. Eu pensei que você fosse morrer, pensei que nunca mais a veria. Eu... Só não faça mais isso."
 Apertei sua mão e assenti uma vez.
 "Não pretendo fazer novamente tão cedo, não se preocupe."
 "Seu pai quase enlouqueceu por não poder vir até aqui, eu trouxe Thesig quando pediram para chamá-la. Quando vi você naquele estado aqui nessa cama... Nunca senti tanto medo na minha vida."
 "Estou bem agora. Quase inteira."
 Não retribuiu o sorriso brincalhão que eu lhe dei e se aproximou mais, ficando com o rosto quase colado ao meu, eu podia sentir sua respiração contra o meus lábios.
 "Não posso perder você", sussurrou. "Eu prometi a mim mesmo que se você sobrevivesse... Prometi ao Céu que se você passasse por isso, se voltasse do lugar em que estava eu diria tudo o que guardo aqui dentro, Alioth. E o Céu foi bondoso comigo, trouxe você de volta pra mim. Não posso quebrar a promessa que fiz."
 "O que quer me contar?" falei também num sussurro.
 Seus olhos prenderam-se aos meus, intensos. Senti meu coração acelerar com aquele olhar. O belo rosto de Thuban se suavizou e os lábios entreabriram. Ele pretendia dizer alguma coisa, mas então se moveu para mais perto e nossos lábios se encontraram. A principio, eu fiquei parada, completamente sem reação diante daquilo. Mas então ele gentilmente moveu os lábios nos meus, pacientemente esperando que meu choque passasse. Sua mão ainda segurava a minha, agora a apertando contra o próprio peito e pude sentir os batimentos dele, tão rápidos quanto os meus. A emoção que emanava dele poderia mover montanhas, e eu tive a sensação de que, por mim, ele o faria. Ele iria até o fim do mundo por mim, como sempre havia sido. E eu não enxergara. Há quanto tempo ele guardava aquilo dentro de si sem que eu percebesse? Meu amigo, que me via quando ninguém mais conseguia. Aquele que me conhecia mais profundamente do que eu mesma, que admirava quem eu era, e não o que. Eu o amava. Mas não daquela forma. E aquilo simplesmente abriu um buraco em meu coração. Eu jamais seria metade da amiga que ele fora para mim, eu não o merecia. Não merecia aquele amor que Thuban me dava, que sempre me deu.
 "Com licença", a voz aguda de Thesig soou na porta, um pouco tensa.
 Todo o momento se dissipou como fumaça no vento, eu ainda estava estática e Thuban se afastou. Percebi que ela não pedira licença para nós, mas para quem estava parado na porta do quarto, olhando para nós dois, completamente imóvel. Quando Thesig entrou no cômodo, Ghurab deu as costas e saiu dali, com os ombros tensos e as mãos fechadas em punho.
 "Eu preciso falar com vocês dois." Falou Thesig ao fechar a porta e encostar-se a ela em seguida. Ela estava estranhamente nervosa. "É uma história que não lhes contei antes por me causar muita dor ao lembrar. Mas vocês precisam saber agora que estamos aqui nas fazendas."
 E então, ela contou seu maior segredo. Caeli.

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