Todas as noites a herdeira de Thorae aparecia no calabouço para fazer perguntas que nunca eram respondidas. Não a vi de vestido nenhuma outra vez depois daquele primeiro dia, como se não fosse acostumada a usar aquele tipo de roupa. Preferia a praticidade de uma camiseta e calça. Carregava sempre um cinto com uma espada. Os cabelos de penas de corvo estavam sempre soltos. De fato, aquela não era uma princesa comum, ela tinha algo mais. Era respeitada pelos guardas, talvez até mais do que o chefe de Thorae. Na noite em que ela voltou até o calabouço depois de me tirar do mastro, quando colocou mais tochas ali dentro, de modo que eu pudesse enxerga-la melhor, havia algo diferente. Aquela coisa sombria por trás de seus olhos tinha arrefecido um pouco, dando lugar a uma suavidade que parecia incomum até mesmo para mim, que sequer a conhecia.
Manva continuou com as piadinhas maliciosas dirigidas a ela somente nos dias iniciais, até que se cansou do completo desprezo que ela demonstrava diante daquilo. Mais um ponto a se levar em consideração, ela não era facilmente distraída. Tinha um pensamento aguçado e calculava friamente suas palavras antes de dizê-las. Daria algum trabalho lidar com ela. Manva sugeriu que quando surgisse a oportunidade, poderíamos cortar-lhe a garganta para evitar mais contratempos. Por isso os brakbarianos nunca conseguiam ser bem sucedidos em suas invasões. Eram impulsivos demais. A herdeira era talvez a única vantagem que tínhamos e a única que eu não pensava em matar, dado que havia poupado a vida de Garkah quando nenhum de nós dois pudemos fazer nada para salvá-lo. Tínhamos uma dívida de vida com a princesa pendendo entre nós, mesmo que ela não soubesse. Tivemos pouco tempo para traçar um plano que nos levaria para fora dali, entre as visitas dos guardas para nos dar comida e bacias para nos lavarmos. Sete noites depois disso, ela voltou. Por mais que eu negasse com veemência para mim mesmo, toda vez que aquele olhar de esmeraldas recaía sobre mim, meu sangue parecia esfriar. Naquele dia, suas roupas e pele estavam sujas de terra, algumas folhas estavam presas a seus cabelos, como se ela tivesse rolado pela floresta. Não havia sinal de sua espada no cinto também. Ela não começou o interrogatório como normalmente fazia, em vez disso apenas me encarou por vários minutos, eu sustentei seu olhar, mesmo que corroesse minhas entranhas. Alioth me perturbava de uma maneira que poucas pessoas conseguiam.
"O amigo de vocês está prestes a acordar. Poderão vê-lo pela manhã."
Franzi a testa e assenti uma vez.
"Há mais uma coisa.", ela continuou. "Levarei vocês para as fazendas, há serviços lá que designarei para vocês."
"Você nos colocará junto de seu povo? Soltos?"
"Não seja ridículo. Serão constantemente vigiados por mim e pelos guardas, além de usarem grilhões em seus tornozelos."
"Nos transformará em escravos, além de prisioneiros?"
Vi ela engolir em seco uma vez, mas manter-se firme em suas palavras.
"Vocês dois trabalharão por sua estadia em Thorae. Seu amigo seguirá o mesmo caminho assim que estiver completamente recuperado. Não pensem que pegaremos leve só por serem diferentes. Farão por merecer nossa bondade."
"Estou lisonjeado com tamanha bondade. Grilhões. Meu sonho de infância."
"Não teste a minha paciência, Ghurab."
Parei por um instante. Meu nome em seus lábios era como um soco no estômago.
"Passe o recado para seu amigo. Começarão depois de visitar o outro na enfermaria. E nem pensem em tentar fugir. Vocês não têm a mínima chance."
Semicerrei os olhos e parei de olhar para ela, antes que eu acabasse vomitando no chão. No chão que eu dormiria somente mais aquela noite. Com isso, ela se retirou.
"Temos nossa chance. Vamos mudar os planos."
"Trabalhar para os thoranianos", Manva riu, sem nenhum pingo de humor, "o Céu gosta de brincar conosco."
"Preste atenção. Não podemos estragar isso. Precisamos nos manter nas graças da princesa. Vamos trabalhar para os malditos, ganhar sua confiança, independente de quanto tempo isso leve. E então começamos a segunda parte do plano. Essa terra será nossa, Manva. Os thoranianos não perdem por esperar. Brakbarianos terão aquilo que vêm lutando por tantos anos para ter."
"Vida livre, Ghurab."
"Vida livre. Terra digna."
Naquela noite, quando me deitei para dormir, fitei o teto da câmara sentindo falta da luz das estrelas. O mundo lá fora continuava o mesmo enquanto estávamos presos ali. Brakbarianos passavam fome enquanto os thoranianos se regozijavam com suas terras férteis. Com a irritação percorrendo meu corpo, adormeci. Nos meus sonhos, um corvo grasnava para mim da copa de uma árvore. Um corvo de olhos de esmeralda.
Na manhã seguinte, os guardas entraram no calabouço e retiraram as correntes que nos prendiam ao chão. Colocaram os grilhões em nossos tornozelos e nos deram um café da manhã rápido antes de nos tirarem dali. Manva parecia prestes a sair correndo para chegar logo até seu irmão, sendo impedido pelos grilhões e por não saber o caminho até a enfermaria. Quando chegamos ao lado de fora, não havia uma multidão para nos receber, apenas mais uma meia dúzia de guardas, o que me deu a oportunidade de analisar melhor os arredores. O edifício ao lado daquele que estivemos era menor, ao lado deste havia um estábulo onde pessoas trabalhavam sem nos dar a mínima atenção. Aquela área era cercada por muros, como se separasse os edifícios do resto da aldeia. A única saída era um portão levadiço feito de ferro, a ausência de homens perto das engrenagens que o fechava dava indícios que era sempre mantido aberto. Fomos guiados por algumas vielas, sem andar pelas partes mais movimentadas de Thorae, evitando a atenção. Chegamos a um estabelecimento grande, as portas se abriram antes que nos aproximássemos o suficiente. Alioth estava ali, usando uma camisa preta com cordões no decote, a bainha presa dentro da calça igualmente preta. Seu quadril era adornado pelo cinto com a espada. Havia também uma adaga presa a uma de suas coxas. Mas não foi a visão das armas que me fez vacilar. Seus cabelos negros estavam presos numa trança frouxa sobre o ombro, alguns fios ao lado da cabeça haviam se soltado, formando pequenos cachos ao redor de seu rosto, contrastando com sua pele pálida e olhos brilhantes. Quando contive minhas feições, olhei para Manva ao meu lado, que já me encarava com entendimento demais para o próprio bem. Se alguma piada saísse de seus lábios, eu socaria seus dentes para dentro da boca. Vendo isso em meu rosto, ele simplesmente voltou-se para a princesa. Considerei a minha reação como algo natural, já que ela era uma mulher muito bonita. Não havia nada de errado em admitir isso. Mesmo que ela fosse minha inimiga. Mesmo que eu a odiasse. Ou tentasse com bastante afinco fazê-lo.
"Ele já acordou. Levarei vocês até lá.", falou e começou a caminhar para dentro da enfermaria, nos guiando até o leito de Garkah.
Quando o alcançamos e vimos seu estado, um ruído esganiçado saiu de Manva, que sequer percebeu a própria reação. Ele se aproximou do irmão e lhe segurou a mão com força. Uma faixa branca cobria grande parte de seu tronco, não havia nenhuma mancha de sangue nele, suas roupas haviam sido trocadas, assim como as nossas. A palidez moribunda que tingia sua pele havia sumido. O alívio de vê-lo bem fez meus joelhos estremecerem levemente. Os irmãos conversavam aos murmúrios em brakbariano, de modo que nenhum outro homem ali além de mim entendesse o que eles falavam.
"Eles são bem unidos, não?", falou Alioth ao meu lado, me pegando desprevenido.
Ela nunca havia ficado tão próxima assim antes. Eu queria berrar para ela que eu simplesmente poderia envolver minhas mãos em seu pescoço e matá-la antes que qualquer um de seus homens piscasse. Mas precisaria de mais raiva que eu sentia naquele momento. E seu cheiro chegou até mim um instante depois, um cheiro que me lembrou de uma plantação de morangos. Cítrico e doce ao mesmo tempo. Aquilo me atingiu como uma pedrada. Não consegui conter dar um passo para longe dela.
"Sim. Eles são."
O silêncio dela ao meu lado se tornou algo pesado, como se ela tivesse sentido cada uma das minhas reações, vendo como sua proximidade me perturbava. Arrisquei olhá-la pelo canto dos olhos e ela me encarava com os lábios entreabertos, como se fosse começar a dizer alguma coisa, mas parado no instante em que ia fazê-lo. Pigarreei e me aproximei de Garkah, aumentando ainda mais a distância entre nós, de modo que eu pudesse respirar. Mas seu cheiro ainda estava impregnado em minhas narinas. O olhar de meu amigo passou do irmão para mim e um sorriso lhe atravessou os lábios.
"É bom vê-lo inteiro.", cumprimentei retribuindo o sorriso.
"Eu não chamaria isso de estar inteiro. Os curandeiros disseram que meus órgãos estavam quase para fora. Não me lembro de nada, só do sentinela me acertando na floresta e então acordei aqui."
"Não perdeu muita coisa, eu garanto."
"Só perdeu quando Ghurab se ofereceu para ser prisioneiro em nosso lugar, quando foi sentenciado a morte, quando foi salvo pela herdeira de Thorae e quando ela nos ofereceu trabalho em troca de estadia." Contou Manva de maneira sarcástica.
Garkah ergueu as sobrancelhas, surpreso. Dei de ombros em resposta. O olhar dele passeou ao redor, vendo os guardas que nos observavam como abutres, pararam por um segundo em Alioth e prosseguiram, parando somente em um ponto perto da porta da enfermaria. E então empalideceu. Franzi a testa e segui seu olhar.
Havia uma mulher parada ali, olhando a todos com assombro estampado em seu rosto. Tinha a estatura baixa, mas era claramente uma mulher adulta. Tinha cabelos castanhos ondulados e olhos de um tom incomum de cobre. O rosto era delicado e belíssimo. Voltei o olhar para Garkah, que ainda encarava a mulher com algo em seu rosto que nunca havia visto antes e que não consegui identificar. Alioth caminhou apressada até a mulher, elas trocaram algumas palavras sussurradas, e então um homem surgiu ao lado da estranha. O olhar dele focou em Alioth como se ela fosse o centro do universo, parecendo quase devorá-la e ela não parecia perceber. Aquele era o olhar de um home que escondia sentimentos mais profundos do que deveriam ser. Eles conversaram por alguns segundos, e então o estranho de cabelos longos e loiros levou a mulher pequenina para fora dali, não sem antes olhar em minha direção com uma ameaça contida.
Alioth voltou quando eles se foram e anunciou que estava na hora de seguirmos a viagem até as fazendas. Vi Manva segurar a mão de Garkah com mais força e dizer em tom baixo, mas com convicção. "Estaremos esperando por você lá. Recupere-se bem."
Ele recompôs a expressão do choque ao ver aquela mulher e encarou o irmão. "Não seja um bebê chorão. Esse repouso é só uma formalidade. Já estou ótimo. As enfermeiras tem me dado banho enquanto finjo estar muito fraco para fazê-lo eu mesmo", contou com uma risadinha.
Manva sorriu e lhe soltou a mão. Despedimos-nos e seguimos o caminho para fora da enfermaria. Pelo que nos havia sido contado, a viagem levaria um dia inteiro. Talvez menos, se mantivéssemos um ritmo constante. Tivemos que ouvir gabarem-se de seus cavalos thoranianos extremamente rápidos. Bufei e me mantive em silêncio, mesmo quando tiraram os grilhões de nossos tornozelos para colocarem em nossos pulsos. Montamos os monstruosos cavalos e rumamos para as fazendas.
Atravessamos a ponte que dava até as fazendas antes que o sol nascesse no dia seguinte. Paramos poucas vezes para comer ou descansar. As fazendas era um conjunto de casas grandes, onde se via uma enorme criação de gados, plantações se estendendo pelo solo até onde a vista alcançava. Ao sul havia um porto com algumas embarcações pequenas para pesca e até mesmo uma militar, destoando do ambiente rural. Minhas mãos apertaram as rédeas com força, e eu simplesmente decidi que ignoraria aquilo. Tinha um plano a seguir. Cavalgamos para uma parte mais acima das terras das fazendas, onde havia uma pequena cabana escondida entre as folhagens. Desmontamos dos cavalos e fomos levados para dentro da cabana, onde nos foi mostrado onde dormiríamos, sempre sob a vigilância de guardas. Um dos guardas apontou para Alioth.
"A general vai manter as rédeas curtas. Não tentem nenhuma gracinha."
Meu olhar foi até a mulher. General. Ela não era somente a herdeira de Thorae, mas também a general de seus exércitos. Quando seu olhar encontrou o meu, eu entendi o que era aquela nuvem sombria que pairava sobre ela. Era a minha ruína.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantasyHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...