Capitulo IV

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​  Eu esperava nunca mais voltar para aquele deserto maldito. Se não fosse o acampamento nômade e o oásis, estaríamos mortos. Nas primeiras semanas, não demorou pra que vários dos homens tivessem sérios sintomas de desidratação, o que diminuiu nosso ritmo consideravelmente. Vários estavam à beira da morte, sendo carregados, quando encontramos o acampamento nômade. Conseguimos salvar os homens e permanecemos lá por alguns dias, recuperando as forças para a parte mais longa da viagem. Os nômades me reconheceram quando chegamos e me contaram histórias de suas mais novas viagens, como haviam conseguido algumas pedras misteriosas que absorviam a luz, de modo que brilhavam no escuro, contaram como fugiram de criaturas estranhas nas proximidades de Gar-Care, entrando em detalhes tão bem feitos que até mesmo eu poderia acreditar que eram reais. Esses nômades não tinham riquezas em seu acampamento, eram muito simples, davam abrigo a qualquer um que conseguisse chegar até eles, suas gentilezas não tinham limites. Não se importavam com os bens materiais, seus maiores bens eram suas infinitas histórias. Até mesmo as crianças paravam para contar histórias de aventuras de mil anos atrás que lhes eram contadas na hora de dormir. E quando estávamos fortes o bastante, retomamos a viagem.
​  A pior parte foi conseguirmos chegar até o oásis. Por várias vezes tivemos que comer insetos da areia e beber á partir de cactos. Mas esquecemos completamente nosso desespero por sobrevivência quando alcançamos o oásis. Alguns homens se ajoelharam no chão e agradeceram ao Céu por aquele presente, outros simplesmente se deitaram sob a sombra de uma árvore e ali ficaram descansando. Eu juntei todos os cantis que tínhamos e os enchi completamente. Depois decidi que precisava de um bom banho. Agradeci ao Mar por aquela bênção, livrando meu corpo da poeira do deserto o máximo que consegui e muitos outros fizeram o mesmo. Descobrimos diversos animais vivendo ali, o que nos serviu de alimento pelas noites em que ficamos lá. Aquele pequeno oásis nos deu o restante da força que precisávamos para continuar. E assim, seguimos.

​  Estávamos agora nas terras acima da floresta de Thorae, o sol brilhava no céu enquanto revisávamos o planejamento para o ataque. Todos os homens pareciam bem motivados a ir em frente, já que, por sorte, ninguém havia morrido durante a viagem. Repassei mais uma vez o que cada um faria, e quando estava fixo em suas mentes, começamos a descer na direção da floresta. Levaria algum tempo até chegarmos ao limite em que estariam os guardas. Passaríamos aquele dia entrando cada vez mais na floresta e então nos dividiríamos em grupos de cinco homens, cada grupo atacaria os sentinelas que eram deixados de guarda durante a noite, que pelo que haviam contado, era um grupo de três homens deixados em três pontos estratégicos da floresta. Os brakbarianos costumavam atacar por entre cada sentinela, usando os pontos que não estavam vigiados, mas é claro que os thoranianos já esperavam por isso, então sua atenção estava sempre mais voltada para os lados vulneráveis e não para frente. Usaríamos aquilo contra eles. Cada grupo atacaria diretamente os sentinelas, de modo que não pudessem reunir ajuda rápido o suficiente por seus companheiros estarem ocupados com outros grupos de brakbarianos e assim entraríamos na aldeia silenciosamente, nos misturaríamos com o povo e conquistaríamos Thorae de dentro para fora. Ao cair da noite, paramos para dormir sem ousar acender uma fogueira para não chamar atenção de maneira alguma. Me deitei no chão e fitei o céu noturno além da copa das árvores. Um leve arrepio me fez estremecer e tive uma estranha sensação de dejá-vu. Franzi a testa para o céu e fechei os olhos, ignorando ao máximo aquele sentimento.
​  Ao amanhecer nos levantamos e prosseguimos conforme o plano, nos separando em grupos de cinco, indo por três direções diferentes. Meu grupo era Garkah, Manva, eu e mais dois homens. Adentramos cada vez mais na floresta, falando pouco, quase não parando para descansar e caçando para comer, fazendo pequenas fogueiras – menos visíveis à luz do dia – para cozinhar, e apagando-as logo em seguida. Não arriscávamos parar por muito tempo. Em algumas ocasiões ouvíamos barulho de cavalos não muito longe de onde estávamos o que fazia voltarmos a nos mover. Por mais cansativo que fosse continuar andando daquela forma, com poucas paradas, a floresta thoraniana nos fornecia um clima agradável e muitas sombras, o que era uma misericórdia para nossas peles queimadas pelo sol do deserto. Até mesmo suas florestas eram melhores. Malditos thoranianos. Eu havia vivido tempo o suficiente com povos tão diferentes uns dos outros que não me permitia sentir raiva de algum específico, afinal, eu era um homem criado num monastério que depois se uniu aos bárbaros. Mas aqueles thoranianos tinham tudo ali, enquanto em Brakbar não tínhamos nada. Aquele povo não entendia o que era a miséria e o medo de não conseguir alimentar sua família. E eu sabia que meus companheiros ecoavam tal sentimento, eu podia ver nos rostos de Garkah e Manva. Eles odiavam os thoranianos, odiavam sua terra de conto de fadas e suas barrigas cheias. E eu honraria tudo o que sofreram por todos aqueles anos do outro lado do deserto quando conseguíssemos tomar Thorae.

  Levamos uma semana para atravessar a floresta até o lugar onde estariam os sentinelas e tudo que fizemos foi esperar escurecer. Aqueles homens sequer saberiam o que os havia atingido. Esse pensamento me fez sorrir um pouco. Quando anoiteceu, caminhamos silenciosamente por entre as árvores, não era possível ouvir sequer a respiração de meus companheiros conforme éramos sorrateiros por entre a vegetação, sabendo exatamente onde pisar para não denunciarmos nossas posições. Avistamos os sentinelas, exatamente como havíamos previsto, três deles estavam ali, todos atentos a outros lugares sem ser a própria frente. Contei minhas respirações. Saquei a espada que estava presa em minhas costas e assenti uma vez para meus companheiros. Começamos a avançar na direção dos thoranianos, e assim que perceberam nossa aproximação, nossas espadas já estavam descendo sobre suas cabeças.
​  Num movimento rápido o suficiente, conseguiram se defender e uma pequena luta teve início. Os thoranianos começaram a gritar em busca de seus companheiros nos outros pontos de defesa da aldeia, mas ambos estavam ocupados com as próprias lutas contra os outros grupos brakbarianos. Eu mal me esforçava contra os sentinelas, deixei a glória daquela conquista para meus amigos, Manva e Garkah fizeram por merecê-la. Porém, uma trompa soou ao longe, nos fazendo parar por um segundo. E eu sabia que toda a sorte que havíamos tido até ali havia acabado. O som de cavalos chegou rapidamente até nós. Havia pelo menos mais dez deles indo até ali Me virei para meus homens.
​  "Retirada! Voltem para dentro da floresta!" gritei.
​  Outro grito soou próximo a mim e me virei a tempo de ver Manva curvado sobre o irmão que fora golpeado por um dos sentinelas. Meu coração simplesmente parou e eu avancei contra o homem que estava prestes a cortar a cabeça de Manva, impedindo sua espada no meio do caminho com a minha própria lâmina e em três movimentos rápidos eu o decapitei. Os outros dois sentinelas avançaram também e os atraí para longe de meus companheiros. Vi os outros brakbarianos de meu grupo fugindo para dentro da floresta, mas Manva ainda estava com Garkah, tentando levantá-lo para carregá-lo floresta adentro. Até que um homem imenso sobre um cavalo imenso surgiu atrás dos dois com um grupo de doze militares. Eles pegaram Garkah e Manva, arrastando-os para entre os homens de seu esquadrão, acorrentando-os. Não matariam eles ali naquele momento, os torturariam durante um interrogatório antes.
​  "Esperem!" falei em thoraniano, o que fez com que eles parassem. O homem grandalhão olhou para mim. Tinha uma barba longa e castanha, seus olhos tinham um brilho de esperteza diferente dos outros.
​  "Você fala thoraniano?" perguntou o homem, com um ar superior que me fazia querer arrancá-lo daquele maldito cavalo e enfiar minha espada em sua garganta.
​  "Eu me ofereço no lugar deles. Deixem-os ir, eles não falam sua língua, não terão utilidade para vocês."
​  O homem pareceu pensar por alguns instantes e então olhou para um dos guardas que o acompanhava, assentindo uma vez.
​"Pois bem, levaremos você." O guarda veio em minha direção e eu deixei que ele tirasse a espada de minhas mãos e qualquer outra arma que eu guardasse comigo. Ele colocou correntes em meus pulsos, que ficaram presos à minhas costas. Comecei a caminhar na direção do esquadrão, cooperando, esperando eles soltarem Manva e Garkah.
​  "Agora, bárbaro, vamos ver o que você tem a dizer." Voltou-se para os outros guardas, "levem todos para o Salão Central." Ele ordenou. E antes de eu sequer protestar por conta de sua mentira, alguém me golpeou na nuca e tudo escureceu.

  Um jato de água me acordou, não reconheci o lugar em que estava quando abri os olhos, mas não passava de uma câmara vazia. Tinha uma dor de cabeça terrível, ódio correndo por meu sangue e meus pulsos estavam presos acima de minha cabeça, o que me mantinha em pé. O mesmo homem da floresta agora estava diante de mim, me analisando com atenção enquanto eu retribuía o olhar. Sem o cavalo, ficávamos na mesma altura e ele era tão musculoso quanto eu apesar de ter uma idade mais avançada. Outro grupo de homens fazia um semicírculo ao redor dele, todos em um silêncio tenso. Percebi então que estava diante de alguém importante. Seria o general? Ou o chefe de Thorae? Não importava, eu o mataria por ter mentido descaradamente. Olhei mais uma vez ao redor e não encontrei meus companheiros.
​  "Onde eles estão?" perguntei em thoraniano, minha voz estava rouca, mas se manteve firme.
​  "Eu faço as perguntas aqui, bárbaro. E vamos começar com a que mais me interessa nesse momento. Como sabe falar nossa língua?"
​  Ergui o queixo e me mantive em silêncio. Isso pareceu divertir ainda mais o homem. Seus dedos grossos acariciaram a longa barba e ele ergueu uma sobrancelha.
​  "Certo, onde estão os meus modos, não é? Sou Cepheus, chefe de Thorae, dono das terras que você e seu bando de animais invadem com tanta insistência e sempre voltam para sua terra bárbara com os rabinhos entre as pernas." provocou.
​  Um grunhido soou por entre meus dentes e ele sorriu. O chefe, então.
​  "Vai responder às minhas perguntas e depois eu vou matar você e seus amiguinhos, apesar de um deles já estar adiantando bastante esse serviço. Está bom assim para você?"
​  Mesmo com os pulsos acorrentados em minhas costas, impulsionei o corpo para frente a fim de atacá-lo, mas um guarda ao meu lado me segurou pelos ombros e socou meu rosto. Cuspi o sangue no chão e voltei meu olhar para o tal Cepheus.
​  "Não direi a você nem uma palavra, seu canalha mentiroso."
​  "Veremos sobre isso, selvagem. Tenho um grande poder de persuasão."
​  Quando ele terminou de falar, mais guardas entraram ali arrastando dois homens para dentro da câmara escura em que estávamos. Manva tinha o rosto inchado com hematomas e o lábio cortado. Garkah estava inconsciente, pálido pela perda de sangue. Trinquei o maxilar e meu ódio se tornou algo letal e gélido. Cepheus andou até Manva e o puxou pelos cabelos para que erguesse a cabeça. Um grunhido de dor escapou por seus lábios e ele olhou diretamente para mim. Apesar dos ferimentos em seu rosto, seus olhos estavam calmos e conscientes. A bravura de Manva vacilava apenas ao ver o estado de seu irmão.
​  "Coisinhas interessantes esses dois. Gêmeos. Diga-me, bárbaro: até que ponto conseguirá se manter calado? Até eu cortar a garganta deste aqui?"
​  Meus olhos estavam fixos em meu companheiro, sabendo que os thoranianos não entenderiam, Manva disse para mim em brakbariano.
​  "Bárbaros não fazem prisioneiros porque nenhum homem deve viver acorrentado. Vida livre, irmão."
​  Cepheus apertou as mãos nos cabelos de Manva e o jogou no chão com violência, fazendo-o bater com o rosto nas pedras. Meu corpo estremeceu em fúria, minha respiração acelerou e eu continuei a olhar para meus companheiros no chão. Aquilo não era o que eu havia planejado. Eu nunca devia tê-los trazido. Nunca devia ter aceitado fazer a maldita travessia.
​  "Bom, eu vou deixar você com meus homens para que eles te deixem mais a vontade e mais propenso a colaborar."
​  Voltei meu olhar para o odioso homem e murmurei em brakbariano.
​   "Vida livre, maldito." Em seguida cuspindo em suas botas.
​  Ele apenas olhou para suas botas e saiu da câmara, seguido pela maioria dos homens que estavam ali. Os que sobraram vieram em minha direção. Mantive minha cabeça erguida mesmo quando o primeiro soco me atingiu.

  Não dormi nas horas que se passaram depois que os guardas me bateram até eu desmaiar por alguns minutos. Tinha certeza que meu rosto estava inchado e sangrando em diversos pontos, mas mantive uma vigília constante em Garkah e Manva assim que acordei. O segundo acordou um pouco depois e tentava cuidar do irmão da melhor maneira que conseguiu com suas mãos acorrentadas. "E nós que somos chamados de animais", ele resmungou quando o estado de Garkah piorou. A câmara em que nos mantiveram não tinha janelas e a única iluminação vinha de uma tocha na parede mais afastada, fora de nosso alcance. Acabei perdendo a noção de tempo por conta disso, mas os guardas retornaram muito tempo depois e surraram Manva sem nenhum motivo aparente e depois vieram em minha direção. Me preparei para os golpes, mas eles apenas me levantaram e me arrastaram para fora dali. Eu não tentei fugir, sabia que seria inútil e não sairia dali sem meus companheiros. Os homens me guiaram por um lance de escadas acima, e alguns corredores depois, eu estava do lado de fora. A luz do dia quase me cegou e eu levei vários instantes para conseguir adaptar meus olhos à iluminação. Consegui ver o que estava diante de mim, haviam colocado um mastro de madeira preso ao chão diante do edifício em que eu estivera e toda a Thorae o cercava de uma distância segura para ver o prisioneiro bárbaro, a maioria delas sem esconder o completo assombro diante da visão do meu tamanho em comparação aos homens que me seguravam – pelo menos uma cabeça mais baixos que eu. Me levaram até o mastro e prenderam meus pulsos a um gancho nele, quase deslocando meus ombros para fazer com que eu estivesse de costas para o público. Então vi Cepheus se aproximando, vindo do edifício menor ao lado daquele que eu estive. Ele tinha um chicote grosso com pontas de ferro amarrado em seu cinto. Minhas costas enrijeceram, mas eu me mantive imóvel. O homem caminhava com uma tranquilidade perturbadora para quem estava prestes a açoitar alguém, quase como se não fosse nada fora de sua rotina.
​  "Bárbaro, você foi pego em flagrante assassinando um sentinela, invadiu o território, não colaborou durante o interrogatório e teve comportamento inadequado diante de um líder de terras. Por isso, será condenado a cinquenta chibatadas antes da decapitação. Gostaria de fazer alguma oração antes de sua sentença ser efetuada?" a voz dele soava alta o suficiente para que todos os presentes ouvissem.
​  Cinquenta chicotadas. Minha mente viajou para uma terra distante de meu passado, quando o homem que meu criou me puniu com cinquenta chibatadas por não ser rápido o bastante em meus golpes. Quando me puniu com cinquenta chibatadas por não pronunciar uma língua corretamente sem sotaque. Eu poderia até mesmo rir diante do senso de humor que o Céu tinha às vezes. Cinquenta chibatadas por me oferecer para salvar meus companheiros, dessa vez. Pois bem, que assim fosse.
​  "Minhas orações são para os Céus e Mares, não para os homens."
​  Segurei as correntes que feriam meus pulsos e cerrei o maxilar quando os homens thoranianos rasgaram minha camisa para que Cepheus tivesse acesso completo à minha pele para me açoitar. Ouvi diversas pessoas prendendo a respiração diante da visão de minhas tatuagens. Ouvi quando ele soltou o chicote de seu cinto e o estalou no chão uma vez, se preparando para dar o primeiro golpe.
​  "Pare!" uma voz feminina gritou vinda do público. 
​  Virei a cabeça para olhar pelo canto dos olhos, e uma mulher entrou em meu campo visual, indo na direção de Cepheus. Seus cabelos negros brilhavam como as penas de um corvo, o vestido azul que usava era de costura fina arrastando-se no chão conforme ela se movia, de costas pra mim, discutindo baixo com o chefe de Thorae. Então seu rosto se voltou para a minha direção, seus olhos verdes como grama se encontraram com os meus. Algo ficou alerta em minha mente, como se uma criatura há muito adormecida tivesse despertado.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora