Alioth
O Salão Central estava abarrotado de homens e mulheres. A imensa mesa no meio do aposento estava com todos os assentos ocupados. Havíamos reunido os líderes de comércios e fabricações no centro de Thorae dentro do edifício leste, onde tratávamos assuntos formais como discussões políticas e militares, onde recebíamos os aldeões para resolver questões como vizinhos roubando galinhas, goteiras nos telhados e qualquer outra necessidade que tivessem. Cepheus estava na cabeceira da mesa, ouvindo enquanto os líderes falavam todos de uma vez, exigindo solução para seus problemas, inventando histórias tristes para ganharem aumento em seus pagamentos, alguns outros até discutiam entre si sobre disposição de terras. Revirei os olhos e analisei os arredores mais uma vez. Do local onde eu estava – em pé no canto atrás de Cepheus – tinha uma visão completa de todas as pessoas enfurnadas na sala de reuniões. Um ou outro dos líderes havia levado sua família, outros um punhado de seus funcionários mais confiáveis e alguns haviam levado até mesmo os dois. Muitas pessoas. Muitas vozes. O homem mais próximo de Cepheus esticou a mão para agarrar o braço de meu pai como se quisesse ter sua total e completa atenção, como se a merecesse mais do que qualquer um naquela sala.
O movimento foi tão rápido que o homem demorou alguns segundos para entender o que havia acontecido, o porquê de seu movimento ter sido impedido. E quando seu cérebro cozido por conta do sol finalmente registrou o ocorrido, ele sabiamente empalideceu. A adaga que eu havia atirado perfurou a manga da túnica dele e se cravou na mesa de madeira abaixo, de modo que seu braço ficou preso, seus dedos a centímetros de tocar em Cepheus. O homem de meia idade me olhava com assombro, lembrando-se de quem exatamente estava entre eles e eu simplesmente balancei a cabeça negativamente. A sala entrou em um silêncio mortificado, todas as cabeças voltadas na minha direção. A herdeira, a general dos exércitos thoranianos, mesmo que a primeira não tenha sido mérito meu, eu apenas tive sorte o suficiente. Mas os exércitos eram meus por mérito e honra. Por sangue e glória. O cargo não me fora dado – como a posição de herdeira havia sido. Eu o conquistara.
"Todos serão ouvidos. Um de cada vez. Temos o restante da manhã e o início da tarde para entrarmos em um acordo, no qual todos estejam devidamente satisfeitos. Se continuarem com essa barulheira infernal como malditos bárbaros, da próxima vez... eu não vou errar." Meu olhar voltou-se diretamente para o homem que ainda tinha o braço preso contra o tampo da mesa. Vi quando ele engoliu em seco e sorri.
Com meu aviso amigável, foi estabelecida uma ordem e todos foram ouvidos.
Os pescadores precisavam de embarcações melhores para alcançar uma distância maior no mar, e assim trazer uma quantidade maior de peixes. Cedemos a eles uma embarcação militar, grande o bastante para eles encherem com tantos peixes que durariam pelo menos uma década. As hortas estavam com uma infestação de larvas. Sugerimos a eles que visitassem os alquimistas da aldeia, garantindo-lhes que eles preparariam alguma solução para as larvas sem prejudicar as plantações. E assim seguiu: mais espaço para os gados. Ferramentas melhores para cuidar do solo. Redes novas para pegar os peixes. Mais homens para trabalharem nas minas. Mais cavalos para transportarem seus produtos das fazendas para o centro da aldeia, onde eram vendidos no mercado. Quando todos pareceram resolver suas questões, já estávamos na metade da tarde. Esfreguei a ponte do nariz com o indicador e o polegar, suspirando baixo.
"Eu não sei como você não perdeu a paciência com eles nenhuma vez durante esses anos." Falei para Cepheus assim que os líderes saíram do Salão Central. Alguns deles voltariam imediatamente para seus lares, outros ficariam pelo centro da aldeia para comprarem qualquer porcaria que quisessem.
Meu pai deu uma risada baixa e se recostou na cadeira, passando os dedos grossos pela barba volumosa e castanha bem abaixo do queixo. Cepheus era um homem corpulento, muito musculoso e alto, duas cabeças maior que eu. Mesmo sendo maior que a maioria das mulheres, eu ainda parecia uma garotinha perto dele. O chefe de Thorae havia me encontrado na floresta há vinte e cinco anos, quando eu era apenas uma recém-nascida. Ele me contou que houve um ataque dos bárbaros naquela noite, e logo depois da vitória dos thoranianos ele me encontrou. Bastou um olhar e decidiu me levar com ele. Criou-me como sua filha, me ensinou tudo o que eu sabia e foi o incentivo para que eu aprendesse ainda mais. Só não esperava que houvesse uma brutalidade em mim que não era comum em uma criança, ainda mais em uma mulher. Depois de muita insistência da minha parte, Cepheus me deixou treinar com os garotos mais jovens para entrar para o exército thoraniano. Eu tinha doze anos na época. Eles me odiavam, é claro. Para eles, uma mulher jamais poderia fazer parte do exército. Até que eu passei em todos os testes de disciplina e físicos, entrando em combate durante invasões bárbaras, treinando mais arduamente que qualquer outro homem, estabelecendo estratégias que faziam seu sangue correr gélido por causa de minha ousadia e raciocínio afiado. Aos vinte eu me tornei general. Ninguém desafiou minha posição. Minha habilidade com armas e luta corporal era evidentemente superior aos outros. Minha posição no exército era meu maior orgulho. Eu já havia treinado homens mais novos e ensinado homens mais velhos. Eu os observava. Analisava. Aprendi a linguagem silenciosa do olhar. Sabia quando um limite seria ultrapassado a ponto de quebrar um homem para sempre. Sabia o que eles precisavam dependendo do que carregavam em suas costas, do que se passava em suas mentes antes mesmo que dissessem uma palavra.
"Não foi sem muito treinamento, eu te garanto. Os líderes sempre foram irritantes, mesmo na minha juventude. Meu pai não era tão paciente quanto eu sou. Já matou mais líderes do que se consideraria necessário por conta de seu pavio curto. Um tirano, eu não via a diferença entre ele e o mais cruel dos bárbaros. O que só me deu mais motivos para fazer o completo oposto do que meu pai fazia. Não se governa um povo através do medo. Thoranianos são melhores do que isso, um povo deve ser governado através da compreensão. É saber que apesar de não nos faltar nada aqui no Salão Central, há pessoas que passam fome durante o inverno na vila dos pescadores e nas fazendas. Precisamos ouvi-los. Ver través dos olhos deles. De todos eles. É assim que se governa um povo ao mesmo tempo em que encontra motivos para não enfiar uma adaga no olho de alguém." Ele ergueu a adaga que eu havia atirado contra um dos líderes naquela manhã, girando-a em sua mão. "Sua pontaria sempre foi excelente."
"Não sei do que está falando... eu estava mirando no braço dele."
A gargalhada estrondosa de Cepheus ecoou por toda a sala. Ele balançou a cabeça em indignação e me dispensou. Passei como uma sombra pelos corredores do edifício. As pedras cinzentas eram frias contra com as pontas de meus dedos conforme eu os deslizava pelas paredes ao caminhar. Quando sai pelas portas duplas, um ar fresco veio de encontro ao meu rosto e eu fiz questão de sorvê-lo profundamente em meus pulmões, sem medo de parecer bem aliviada de ter acabado aquela tortura política. Caminhei até o edifício ao oeste, que diferente daquele que fazíamos reuniões de "trabalho", esse era o que chamávamos de lar. Nenhuma formalidade, nenhuma política, só eu e Cepheus. Com uma estrutura consideravelmente menor do que o outro edifício, mas ainda grande. Diziam que durante o governo do pai de Cepheus, os edifícios eram usados ao contrário. O maior era a residência pessoal do chefe e o menor era para tratar os assuntos do povo. Quando meu pai assumiu, isso foi invertido. Ele sempre falava sobre a importância de símbolos, e se usados da maneira certa, poderia encher o estômago de alguém morrendo de fome. Usar o maior edifício para assuntos da aldeia dava a visão de que Thorae tinha mais importância do que a imagem de ser mais poderoso ou valioso que seu povo.
O edifício oeste era feito da mesma pedra cinzenta, mas de alguma forma, era muito mais aconchegante. Os corredores eram curtos, porém largos, separando as câmaras de maneira que nada fosse ouvido do outro lado do corredor. Havia apenas dois andares e uma torre. A cozinha, o salão de jantar e a biblioteca ficavam no nível térreo. Os aposentos de Cepheus, as salas de banho, alguns outros quartos vazios e um escritório ficavam no segundo nível. E na torre ficavam meus aposentos. Era menor que os outros níveis, e talvez por esse motivo fosse o meu preferido. Subi as escadas de dois em dois degraus, passando pelo segundo nível e indo diretamente para a torre. Anos atrás, a torre era usada para as reuniões políticas, depois foi abandonada e esquecida. Até que eu cheguei. Toda a torre foi remodelada, de forma que fosse dividida em três cômodos, meu quarto, uma pequena sala com lareira e um banheiro particular. E, com certeza, a melhor parte da torre era a grande janela que ia da altura da minha cintura até o teto, ocupando quase toda uma parede. Como se fosse um grande painel, eu podia ver a floresta a oeste da aldeia, os lagos serpenteando por entre as árvores, o sol iluminando a folhagem verde, me dando diversos tons dessa mesma cor. Era uma visão de tirar o fôlego, tudo em Thorae era magnífico. Mas o que realmente fazia meu coração parar era a visão noturna. As estrelas brilhando, a lua parecendo tão próxima que tinha a impressão de que se eu me esticasse o suficiente, conseguiria tocá-la. De resto, meu quarto e a sala eram decorados com um luxo que não pertencia muito a mim. A sala continha dois sofás grandes cor de terra, a lareira era emoldurada por imagens de diversos animais esculpidos e havia também estantes com dezenas de caixas de tecidos finos e materiais de costura que eu nunca havia sequer tocado. No meu quarto, a imensa cama com dossel no canto mais afastado da parede era coberta por lençóis vermelhos e macios muito caros, dezenas de travesseiros de penas e até uma tosca peça na cabeceira, feita de bronze, com vinhas e roseiras esculpidas nele. Aquelas pertenceram à família de Cepheus, o único traço feminino que restou dela. Ergui uma sobrancelha e pensei em quantas famílias aquela única peça de bronze poderia alimentar se fosse vendida. Desabotoei as fivelas do meu cinto, e deixei que minha espada caísse no tapete refinado. Retirei as botas de couro com chutes e suspirei, caminhando até o banheiro. Este era feito de pedras claras, com uma banheira no centro feita de mármore branco, os quatro pés que suportavam a banheira tinham formato de garras de urso. Me dirigi até a pia e passei um pouco de água sobre o rosto para afastar o cansaço mental. Eu poderia lutar por dias, treinar até meus músculos sangrarem, manter vigia durante noites sem dormir e de alguma forma eu conseguiria me manter inteira. Mas questões políticas me esgotavam com muita rapidez. Voltei para o quarto e parei diante de um espelho no canto. As pernas esguias estavam vestidas com uma calça de couro preto, que não ocultavam de maneira alguma os músculos das coxas, nem as facas que eu mantinha presas ali, meus braços pálidos e fortes cobertos pelas mangas da camisa branca e larga que eu usava, mas que não cobriam direito o volume dos meus seios, para meu eterno desagrado. Meus cabelos estavam soltos, longos e negros como a noite, ondulando até a altura da cintura. Lábios cheios e vermelhos como um botão de rosa. Olhos verdes como a grama no verão, mas que brilhavam com algo sombrio que eu nunca soube definir. Essa aparência costumava atrair a atenção de muitos homens arrogantes que pensavam que poderiam me possuir como se eu fosse apenas mais um cavalo em seus estábulos. Porém, erguendo a manga direita da minha camisa, era possível ver minha marca de nascença. Uma cicatriz grosseira ao redor do meu braço, começando pouco abaixo do ombro e que terminava logo acima do cotovelo. Para minha sorte, homens arrogantes não se sentiam atraídos por mulheres com cicatrizes. Nem por aquelas que lutavam melhor. Nem por aquelas que bebiam mais do que eles. Felizmente, homens arrogantes não se sentiam de forma alguma atraídos por mulheres que não precisassem deles para ser livres da maneira que realmente são. Sorri para meu reflexo do espelho. Mulheres fortes assustam homens fracos.
"Hora de chutar alguns traseiros, Alioth." Sussurrei para o espelho e me virei, saindo do quarto. Havia treino marcado para o fim da tarde com os sentinelas e eu jamais poderia perder a oportunidade de fazer um homem crescido choramingar feito um bebê para pegar leve durante os treinamentos combates.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantasyHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...