Capitulo VIII

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​  Quando a mulher interrompeu Cepheus antes que ele desse a primeira chicotada, algumas ordens foram dadas pelo mesmo e eu fui solto do mastro. Me levaram de volta para dentro do edifício, até o calabouço onde Manva e Garkah ainda estavam presos. Colocaram-me no mesmo lugar de antes, só que com correntes presas ao chão, de modo que eu não conseguisse ficar de pé. Não demorou muito para aquela mulher entrar no calabouço, seguida por apenas dois guardas altos. Antes de me dar qualquer tipo de atenção, seu olhos de esmeraldas polidas voltaram-se para meus companheiros. Grunhi baixo, querendo atrair sua atenção para longe deles. Apesar de alguma forma ter me tirado daquele mastro, ela poderia não ter a mesma benevolência para com Manva e Garkah. Seu olhar pousou em mim e ela uniu as sobrancelhas. Sussurrou algo que não consegui ouvir para um dos guardas ao seu lado e o mesmo saiu da câmara em seguida. Ela cruzou os braços sobre o peito e me analisou friamente. Apesar de sua roupa fina e influência sobre os guardas, algo nela era selvagem e sombrio, transbordando de seu olhar como uma nuvem de tempestade que consome toda a luz do sol. Aquela coisa dentro de minha mente pareceu se agitar mais um pouco, ronronando na presença da estranha.
​  "Quem é você?", perguntou-me de maneira direta.
​  Objetiva. Irrefutável. Estava acostumada a dar ordens e ser obedecida sem questionamento. Provavelmente tinha um cargo de importância ali, e levando em consideração as roupas, a pele e cabelos bem cuidados, deveria ser a herdeira. Mantive-me em silêncio sob seu escrutínio. Eu não havia colaborado durante o interrogatório do chefe da aldeia, mesmo quando seus guardas me esmurraram. Não seria naquele momento que eu cederia.
​  A porta do calabouço se abriu e dois homens de meia idade entraram acompanhados do guarda que havia saído um pouco antes. Eles foram em direção a Manva e Garkah. Avaliaram a situação de ambos e abriram as bolsas que traziam consigo, tirando de dentro vários instrumentos que reconheci como sendo usados por curandeiros. Um começou a cuidar de Manva e o outro de Garkah, somente resmungando vez ou outra pela falta de iluminação do lugar. Quando aquele que cuidava de Garkah viu o estado deplorável de meu amigo, avisou que não seria possível tratá-lo ali sem correr risco de infecções.
​  "Leve-o para a enfermaria da aldeia. Mantenham guardas por perto, apesar de não parecer que ele vai conseguir atacar ninguém tão cedo.", ordenou a mulher, que foi obedecida. Os guardas que estavam com ela levantaram Garkah e carregaram-no para fora do calabouço com o curandeiro acompanhando-os. Me movi desconfortável no chão, sentindo o peso de minha própria inutilidade ao ver meu amigo ser levado para fora do alcance de meus olhos. Então me voltei para a mulher.
​  "Por quê?" perguntei somente. Ela sabia ao que eu me referia.
​  "Eu faço as perguntas."
​  Quem quer que fosse, estava ajudando meus companheiros. Mais do que eu seria capaz naquele momento. O curandeiro que havia ficado ali cuidava do rosto ferido de Manva com habilidade, aplicando unguento nos cortes abertos. Por aquilo, eu podia responder à sua pergunta.
​  "Ghurab."
​  "O quê?"
​  "Meu nome é Ghurab."
​  Ela assentiu uma vez e levou um tempo para que ela falasse de novo. Eu quase podia ver as maquinações de sua mente trabalhando enquanto ficava em silêncio.
​  "Nunca encontramos nenhum bárbaro que soubesse falar thoraniano, tampouco com essa fluência. Onde aprendeu?"
​  "Eu sei muitas línguas, princesa."
​  Suas costas enrijeceram quase imperceptivelmente. Interessante. Havia tocado em um ponto sensível. Ela era a herdeira então.
​  "Alioth."
​  "O quê?"
​  Revirou os olhos com impaciência. "Meu nome é Alioth."
​  Exibi um leve sorriso sarcástico, o que a fez apertar mais os braços em seu peito.
​  "O que você poderia querer saber sobre mim, Alioth?", pronunciei seu nome enfaticamente. Ela hesitou por um segundo.
​  "Há muito que quero saber. Mas outro curandeiro chegará em breve pra tratar seus ferimentos. Tire o resto do dia pra pensar. Voltarei ao anoitecer para prosseguir com o interrogatório."
​  Com isso, ela deu as costas e saiu da câmara.

  O curandeiro entrou no calabouço pouco depois de Alioth ter saído e se aproximou para cuidar dos ferimentos de meu rosto. O que tratava Manva já havia terminado o trabalho. Fiquei imóvel enquanto o homem idoso passava unguento nos cortes e averiguava se meu nariz não estava quebrado. Mesmo com as mãos cuidadosas e hábeis para um idoso, havia um brilho de medo em seu olhar por estar tão próximo de mim.
​  "Onde está Garkah?", berrou Manva atrás do homem, fazendo o idoso curandeiro se sobressaltar.
​  "Maldição, Manva. O pobre homem quase teve um ataque do coração! Se acalme.", respondi em brakbariano.
​  O curandeiro estremeceu levemente, sem entender o que dizíamos. Uma das poucas coisas que eu respeitava era a arte de curar as pessoas, desde que morava no Monastério. Quando recebia minhas punições, havia um homem quase tão idoso quanto aquele diante de mim, que cuidava de meus ferimentos enquanto me ensinava a língua de sua terra natal. Foram tantas as vezes que precisei dele que havia me tornado fluente em tal língua.
​  "Para onde levaram meu irmão, Ghurab?" o desespero na voz de meu companheiro era tangível.
​  "Levaram Garkah para a enfermaria da aldeia, não podiam tratar seus ferimentos aqui. Ele ficará bem. Agora pare de gritar como um macaco, está fazendo o homem tremer e apertar meus machucados."
​  Manva ficou em silêncio enquanto o curandeiro terminava seu trabalho. Somente quando ele finalizou e saiu apressado voltei o olhar para meu amigo sentado contra a parede do outro lado da câmara.
​  "Por que ele foi levado?", perguntou-me.
​  "Eu não sei ao certo, mas fico grato de qualquer modo. Ele morreria se continuasse aqui."
​  A porta da câmara se abriu mais uma vez e um dos guardas entrou carregando um prato em cada uma de suas mãos. Colocou um ao meu lado e o outro ao lado de Manva e saiu. Ergui uma sobrancelha e olhei para o prato. Havia um pedaço grande de pão e algo que parecia ser um ensopado. Peguei o prato e comecei a comer. Manva fez o mesmo. Terminamos a refeição em poucos minutos, longe de estarmos satisfeito depois de ficar tanto tempo sem comida, mas pelo menos nos manteriam vivos.
​  "Cuidados médicos e refeição. O que eu perdi enquanto estava inconsciente?"
​  "Quando me tiraram daqui, fui levado para o lado de fora, onde seria açoitado cinquenta vezes antes de ser decapitado diante de todo os thoranianos", vi Manva estremecer levemente, "mas uma mulher interrompeu o chefe da aldeia. Fez com que eu fosse trazido de volta até aqui e tentou me interrogar de novo. É a herdeira de Thorae. Ela chamou curandeiros para cuidarem de Garkah e de você enquanto estavam inconscientes. Talvez ela use isso para me chantagear na hora de voltar a me interrogar. Ou seja uma jogada para algum fim que ainda não descobri. Mas não se pode esperar muita bondade uma princesinha de Thorae."
​  "Nunca ouvi nada assim do comportamento dos thoranianos, Ghurab. Quem sabe não podemos usar a tal princesa em nosso benefício?"
​  "Talvez. Mas ainda há alguma coisa nela que eu não consegui entender. Ela parece acostumada demais a ver prisioneiros, nem vomitou quando viu o estado de Garkah. Acho que estamos lidando com outro tipo de princesa."
​  "E ela é bonita?", perguntou erguendo uma sobrancelha.
​  "Por que isso seria relevante, Manva?"
​  "Ora, talvez eu possa mostrar a ela no que os bárbaros são bons.", exibiu um sorriso malicioso que me fez revirar os olhos.
​  "Faça o que quiser com ela, desde que não comprometa o nosso trabalho aqui."
​  "Trabalho? Pensei que tínhamos apenas que aproveitar nossas últimas horas de vida nos beneficiando da boa vontade da princesa."
​  "Ah, não. Ainda temos trabalho a fazer. Vamos sair daqui e tomaremos Thorae a qualquer custo."

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora