As preparações para a viagem começaram antes do alvorecer. Durante as semanas que se passaram, todos os brakbarianos me olhavam de um jeito estranho, quase como quando eu cheguei lá, dois anos antes. Alguém que se parecia com eles em vários aspectos, mas muito diferente. Depois que aceitei fazer a travessia do deserto até Thorae, tentei manter as coisas o mais comum possível. Segui com minhas tarefas dentro da cidade, ensinando Garkah e Manva com as lutas, assim como alguns outros homens que nos acompanhariam na viagem. Fizemos as caçadas para trazer alimento para eles, fomos até o Furkona pescar e subi e desci as colinas para ter um momento de paz sob as estrelas. A única diferença na rotina era ser chamado algumas vezes pelas mulheres para discutir as estratégias que seriam usadas para a próxima invasão, revisar mapas, definir pontos de partida e gritar quando me importunavam com perguntas já respondidas dezenas de vezes. E esse comportamento me resultava em um banho frio quando uma delas arremessava um jarro de água contra mim. Mas havia chegado o dia, e eu acordei sentindo que caminharia diretamente para a minha completa ruína. Nem mesmo quando vivi no Monastério senti aquela ansiedade, aquela sensação da mão de alguém em meu ombro, me impulsionando a seguir em frente, mas me dizendo que haveria algo de muito perturbador me esperando. Garkah e Manva já estavam acordados, vestindo as roupas de viagem. Dividíamos uma tenda desde o dia em que eu chegara ali, e como na época – e agora – não tinham muito espaço para mais uma cama, eu dormia no chão, em um grosso tapete de pele. Nada diferente do que eu já estava acostumado. Na noite anterior eu havia ficado no alto uma colina, deitado sobre a grama seca, encarando o céu noturno. As estrelas me fizeram companhia e o brilho do luar silenciou todos os pensamentos de minha mente o suficiente para que eu conseguisse dormir depois de voltar para a tenda. Vesti minhas roupas de viagem, que não passavam de trapos rasgados e surrados, porém, mais conservadas que as roupas do dia a dia. Prendi o cinto, colocando minha espada na bainha, prendendo diversas adagas na roupa. Na calça, dentro das botas, por baixo da camisa. Teria de estar devidamente preparado para o que quer que estivesse em nosso caminho ou em nosso destino. Parei diante de uma bacia de ferro no canto da tenda para lavar o rosto e os cabelos, que agora batiam abaixo dos ombros. Meus cabelos tinham cor de carvão, um preto intenso. Quase tão escuro quanto a tinta das tatuagens que cobriam a pele de minhas costas, dos ombros até a base da coluna. E depois do tempo que passei nos desertos, minha pele tinha adquirido uma cor de ouro envelhecido, o que ressaltava minhas diversas cicatrizes. Uma vez, Manva disse que eu parecia uma sombra por conta dos diversos tons escuros que faziam parte de mim. O cabelo, a pele, as tatuagens, até mesmo meus olhos eram de um castanho tão escuro que eram quase pretos.
"Pronto?" perguntou Garkah atrás de mim.
"Não tenho escolha, a não ser estar pronto. Vamos logo com essa merda."
Terminei de reunir meus pertences e passei por ele, saindo da tenda. Todos os brakbarianos estavam nos esperando no centro da cidade. Alguns dos homens já estavam prontos para partir. Perto deles estava a anciã. Caminhei até ela, mantendo os ombros erguidos. Se não fosse por Garkah e Manva me flanqueando, eu teria simplesmente dado as costas e voltado para a tenda. A sensação de todos aqueles olhares sobre mim era irritante, quase tão irritante quanto a esperança cega que colocavam em mim. Burros por colocarem sua fé em um homem que poderia falhar tanto quanto eles. Eu não era nenhum ser divino para eles idolatrarem. Eu sequer era realmente um deles, só estava ali havia dois anos. Quando parei diante da sábia mulher, ela sorriu e ergueu as mãos em minha direção e eu as tomei nas minhas. Suas mãos eram tão pequenas e delicadas em comparação com as minhas que quase me senti constrangido por minhas cicatrizes e calos. Quase.
"Nossa vitória está escrita nos céus, Ghurab. Você está banhado nas bênçãos das estrelas e da lua, traga nova vida a nosso povo. Ao seu povo." As palavras dela foram baixas, mas tinha certeza de que todos ali haviam escutado.
Não soube o que responder, então simplesmente assenti. Ela apertou minhas mãos uma vez e as soltou. Meu olhar se voltou para os homens, que observavam com uma expectativa contida.
"Vamos." Manva tomou a iniciativa e começou a caminhar para a floresta, eu o segui, acompanhado de Garkah, e então pelo resto dos homens.
Continuamos pela floresta em silêncio, levaríamos metade do dia para cruzá-la e mais dois dias até chegarmos ao deserto. Se tivéssemos sorte, encontraríamos o acampamento nômade no meio do caminho e poderíamos parar para descansar alguns dias, e fazer mesmo no oásis perto da fronteira entre o deserto e o inicio das terras thoranianas. A viagem até Thorae levaria quase um mês, ou talvez um mês inteiro dependendo do ritmo dos homens. Não tínhamos cavalos o suficiente para todos, e os que tínhamos, eram necessários para o uso dos brakbarianos na busca por alimentos. Então teríamos que percorrer todo aquele caminho a pé. Eu só esperava que todos sobrevivessem a essa viagem.
Na noite antes de começarmos a travessia, todos estavam nervosos. Montamos acampamento ao lado de uma colina na fronteira do deserto e comemos da pouca comida que levávamos. A maioria dos homens se deitou ao redor da fogueira para dormir logo após comer, mas, eu, Manva e Garkah ficamos acordados, sabendo que nem todos daqueles homens voltariam para casa quando aquilo terminasse. Observamos o fogo consumir a lenha que reunimos e aquela talvez fosse a última fogueira que teríamos, já que era muito difícil achar madeira no meio do deserto. Levantei-me e comecei a caminhar na direção da colina, a fim de subi-la. Precisava da luz do luar para aquietar a mente. Meus companheiros não me seguiram, sabendo que eu precisava de algum tempo sozinho.
A diferença entre os dois era gritante, mesmo que fossem gêmeos. Se não fosse a personalidade e os cabelos, seria impossível saber quem era quem. Garkah tinha os cabelos castanhos claros e Manva tinha os cabelos loiros, só alguns tons mais claros que os do irmão, mas ainda assim era o suficiente pra diferenciá-los. Garkah era o mais contido, economizando suas palavras para o momento certo e raramente ele errava o momento, era de fazer tantas piadas quanto Manva, mas o momento em que as fazia era espontâneo o suficiente para arrancar uma risada até de mim. Já Manva, era inquieto e tagarela, sempre atrás de encrenca, não perdia a oportunidade de dizer o que estivesse em sua mente, o que lhe rendia muitos socos diários. Todos em Brakbar achavam os dois desinteressantes, um tanto ignorantes e brincalhões demais para serem levados a sério – um mais do que o outro. Mas a verdade era que os gêmeos tinham uma inteligência diferente da dos brakbarianos, aprendiam com mais rapidez e normalmente usavam um ao outro para chegarem a ideias incríveis. Eles se encaixavam em Brakbar tanto quanto eu. Se parecia com eles na superfície, mas eram algo diferente. Fora as características estranhas que só irmãos gêmeos tinham, de saber o que o outro pensava só de olhá-lo nos olhos, ou completar as frases do outro. Eu já havia esmurrado os dois por esse ultimo, era incrivelmente perturbador.
Cheguei ao topo da colina e me deitei no chão, levando os braços para trás da cabeça, usando-os como travesseiro. Encarei as estrelas e imediatamente senti minha respiração ficar mais leve. Eu tinha o costume de encarar o céu noturno desde que morava no Monastério. Aquela pequena ilha poderia levar um homem à loucura. Eu cheguei perto. Morei lá desde que era um bebê, fui educado e treinado junto dos monges, os homens mais letais que conheci. Mesmo com suas cabeças carecas e suas longas túnicas parecendo absolutamente inofensivos, eram habilidosos guerreiros e espiões. Podiam se infiltrar em qualquer lugar sem serem notados. Falavam diversas línguas e podiam usar qualquer tipo de armas, até mesmo transformar um objeto comum em uma arma. Tinham seus corpos cobertos por tatuagens em uma língua própria, usada somente no Monastério, no qual somente os monges saberiam decifrar, algo que eu coloquei em minha própria pele também, as escritas em meu corpo eram desconhecidas para o resto do povo de Beldarrien. Vivi entre eles por vinte anos até que fui embora. Eu ansiava por descobrir meu passado. O homem que me criou disse que havia me encontrado em uma floresta em Beldarrien, mas deixou de contar muitos detalhes que me poderiam ser útil, talvez para vantagem própria. Então fui por minha conta buscar minha verdadeira origem. Passei meses no deserto chegando muito perto da morte, até que encontrei o acampamento nômade. Eu pretendia ficar ali por um curto período de tempo até me recuperar o suficiente para retomar minha jornada. Mas o modo de vida dos nômades me fascinou. Eu já sabia falar diversas línguas e eles me ensinaram mais algumas, me ensinaram como sobreviver no deserto, como evitar doenças, desidratação e onde conseguir alimentos. Até Garkah e Manva aparecerem lá.Não percebi que havia dormido até que a luz do amanhecer me acordou. Desci a colina e encontrei os homens dividindo um café da manhã rápido. Juntei-me a eles, todos reunindo forças para começarmos a jornada longa pelo deserto.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantastikHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...