Capítulo XXIV

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Levamos metade da manhã para pegarmos tudo que precisaríamos na viagem, organizar tudo o que deixaríamos para trás enquanto estivéssemos fora, principalmente para mim. Eu confiava em meus homens, mas ainda sentia um pouco de receio de simplesmente sair dali sem saber se demoraria a voltar. Aquele era meu povo, aqueles pelo qual eu lutei bravamente para provar ser capaz de protegê-los, e para protegê-los quando necessário, mesmo quando não mereciam. Meu pai não iria conosco, pois Thorae precisaria dele no comando de tudo durante minha ausência. Determinei quem ficaria no comando nesse meio tempo. De qualquer maneira, aquele parecia um problema tão pequeno em comparação ao que parecia se aproximar de nós. Não que Thorae fosse inferior a minha vida pessoal, cada um dos problemas tinham pesos diferentes naquele momento. E eu não me sentia confiante de que iríamos transpô-los com facilidade. Havia muitas perguntas na minha mente, mesmo enquanto trabalhava. Muita expectativa para algo que talvez trouxesse uma decepção muito grande. Eu precisava ser forte, encarar o que estava por vir com a cabeça erguida, como sempre fiz, mesmo que me assustasse mais do que qualquer coisa.

 Descobrir de onde eu vinha, poderia de alguma forma, mudar o lugar para onde eu iria?
 E Ghurab... Eu queria descobrir como ele conseguia se manter tão calmo diante de toda aquela situação, enquanto eu estava prestes a entrar em combustão. Chegava a ser injusto a maneira que ele se mantinha confortavelmente frio com toda aquela história. Ou ele simplesmente fingia muito bem. Essa opção não era deixada de lado, já que ele havia crescido entre os misteriosos monges do Monastério. Dificilmente eram vistos entre as pessoas, eu conhecia apenas histórias sobre eles, como eram treinados e altos níveis de combate e línguas, podendo se infiltrar em qualquer lugar do continente e saber perfeitamente como se comunicar e como lutar. Não eram homens dóceis, dando um sentido contrário aos monges comuns. Aqueles que viviam no Monastério eram treinados para serem ferozes e silenciosos. Ao refletir sobre isso, me lembrei das histórias que ouvi ou li sobre aqueles monges, e grande parte delas, Ghurab possuía. O modo como conseguia desviar sutilmente do assunto sem que eu percebesse, como andava para lá e para cá silencioso como um gato, mesmo usando grilhões. Como ele lutava. O dia em que perdi as estribeiras com ele na floresta, onde usei todas as minhas técnicas de combate enquanto ele desviava com facilidade e mal se cansava ao fazê-lo. Eu não tinha dúvidas que seu nível de luta era enormemente superior ao meu por conta do modo no qual foi criado. Ainda que, por trás de tudo aquilo, eu via como Ghurab retraía aquele lado dele que viveu no Monastério. E em breve eu descobriria o motivo.
 Não se passou muito tempo para que Caeli voltasse de onde quer que ela morava para nos acompanhar até o Porto de Thorae. Mas ela não estava sozinha. Com ela estava uma mulher carrancuda, magra e rude, que segurava o braço da menina com força, praticamente arrastando-a junto de si. No rosto de Caeli havia uma marca avermelhada, e ao reparar nisso ao mesmo tempo em que eu, vi Garkah dar vários passos à frente, bufando como um touro enfurecido. Ghurab conseguiu contê-lo no meio do caminho, e então eu comecei a me aproximar da mulher. Caeli estava estranhamente calada, seu rosto estava voltado para o chão.
 "O que vocês pensam que estão fazendo?" a estranha falou quando me aproximei.
 "Acho que eu devo fazer essa pergunta a você. Solte a menina." Coloquei a mão casualmente no cabo da espada e tal ato não foi ignorado pela mulher.
 "Ela me pertence. Eu cuidei dela desde que era um bebê. A não ser que você seja a mãe biológica dessa criança, não vai levá-la de mim, nem mesmo usando força bruta, então desista de sacar sua espada. Quem você pensa que é, afinal?" apertou com mais força o braço de Caeli a ponto da menina choramingar.
 Desembainhei a espada num movimento rápido, e antes que ela percebesse, a ponta da minha lâmina estava diante de seu pescoço. Eu tentava manter a calma, mesmo que eu facilmente pudesse fazê-la mudar de ideia quanto à força bruta.
 "Você bateu nela?" perguntei em um tom baixo, mal passando de um sussurro ameaçador. A mulher se empertigou um pouco mais.
 "Não devo satisfações a você sobre como cuido de minhas crianças."
 "Estou vendo o rosto dela ferido. Você bateu nela?" aproximei um pouco mais a espada e a mulher não deixou transparecer o medo, mas vi sua garganta se mover quando engoliu em seco.
 "Você não passa de uma vadia segurando uma espada, não respondo a você." Manteve o tom de voz petulante, e aquela foi a última gota.
 "Não sei debaixo de qual pedra você saiu, mas terei prazer em me apresentar. Sou Alioth, herdeira de Thorae e general de seus exércitos. E eu mandei soltar a menina."
 Os olhos da mulher se esbugalharam e ela ficou em silêncio ao mesmo tempo em que seu rosto empalidecia um pouco.
 "E eu sou a mãe dela." Uma voz aguda falou ao meu lado. Thesig. Caeli ergueu a cabeça para ela. "Sou a mãe biológica dela. Caeli foi tirada de mim pelos moradores das fazendas quando ainda era um bebê e estou aqui para tê-la de volta."
 Não arrisquei olhar para minha amiga, mas nunca escutara Thesig soar tão séria antes. Caeli soluçou baixo uma vez enquanto olhava para Thesig.
 "Você é minha mãe de verdade?" a menina sussurrou.
 Thesig abaixou o olhar para sua filha e sorriu amorosamente. "Sou."
 Caeli tentou correr para Thesig, mas a mulher ainda segurava seu braço. Aproximei mais a lâmina da minha espada de sua pele a ponto de cutucar, o que foi suficiente para a mulher levar a sério minha ameaça de força bruta e soltá-la. A estranha olhou para Thesig e fez uma careta de nojo quando Caeli a abraçou.
 "Você é aquela menina que morava nas florestas, a filha daqueles malditos gananciosos. Deviam tê-la chicoteado mais. Deviam tê-la mata..." antes que ela pudesse terminar meu punho lhe acertou o queixo com tanta força que a mulher desabou no chão sem saber o que havia acontecido.
 "Levem-na para o Salão Central para julgamento como prisioneira. E tirem dela todas as crianças que tiver sob sua custódia." Ordenei para os guardas mais próximos, que haviam escutado tudo e saberiam o que fazer para deixar aquele ser desprezível por bastante tempo nas masmorras.
 A mulher levantou a cabeça com a mão sobre a bochecha, um filete de sangue escorria pelo canto de seus lábios. "Estou presa? Por qual motivo?"
 Abaixei-me diante dela, olhando profundamente em seus olhos. Um leve tremor balançou-a e ela apertou mais a mão sobre o rosto machucado. Um sorriso felino abriu-se em meus lábios. "Porque eu estou ordenando."
 Levantei-me e lhe dei as costas para a mulher enquanto meus guardas levavam-na. Sorri para Caeli e Thesig.
 "Bom, está na hora de irmos." Anunciei.
 Atrás delas, os bárbaros sorriam para mim exatamente da mesma forma que sorriam uns para os outros. E eu me sentia parte deles já havia algum tempo, só levou mais tempo para que eu admitisse. Mesmo que eu não tivesse crescido entre eles, eu, sem sombra de dúvidas, socava como um bárbaro.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora