Capítulo XXII

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 De todas as reações que eu esperava de Cepheus, a que ele de fato teve, foi a pior. Quando Thuban nos levou para a casa principal para encontrá-lo, Thesig decidiu que era o momento de contar a ele a verdade sobre ela, contar sua história. Ela estava caminhando na frente com Thuban enquanto eu andava um pouco mais atrás com meu pai. Eu podia sentir que ele queria conversar comigo, mas não lhe dei abertura para fazê-lo, falaríamos sobre mim depois que Thesig falasse tudo o que havia lhe acontecido. Quando chegamos ao quarto em que eu ficara semanas me recuperando, ela passou Caeli para meus braços. A menina estava calada, atenta ao que acontecia. Thesig pediu para que Thuban entrasse com ela e Cepheus para terem aquela conversa, e assim eu e a menina ficamos do lado de fora, esperando.
 "O que está acontecendo?" Caeli sussurrou após algum tempo.
 Havia me sentado no corredor, mantendo-a perto de mim. Meus dedos acariciavam-lhe os cabelos loiros distraidamente.
 "Thesig está contando uma história para ele."
 "Uma história sobre o que?"
 Engoli em seco uma vez e pensei por alguns instantes. Sentei-a em minhas pernas de frente para mim.
 "Era uma vez, uma princesa que vivia na floresta. Seus pais não estavam com ela, pois estavam viajando para um lugar muito distante. A princesa tinha as árvores e a água do rio como seus amigos e conversava com eles. Nas noites em que ela tinha medo do escuro, as estrelas lhe faziam companhia e lhe contavam histórias sobre o mundo, sobre as outras pessoas e ela não sentia mais medo."
 "Os pais dela a abandonaram, Alioth?" interrompeu-me Caeli.
 "Não, claro que não. Eles amavam sua princesa, mas precisaram ir para um lugar distante e sabiam que ela ficaria bem, que era corajosa o bastante para ficar bem sozinha." Continuei. "Algumas vezes, monstros apareciam em sua floresta. Monstros horrendos e malvados, mas as árvores protegiam a princesa, pois a consideravam sua amiga. A princesa sempre regava bem as plantas e colocava novas sementes no solo, em retribuição, a floresta lhe dava frutos para comer. E ali ela viveu rodeada pelo amor e amizade da floresta, mas mesmo assim, sentia falta de seus pais, do contato com as outras pessoas, era uma pequena ferida em seu coração que nunca parecia se curar. Até que um dia, uma mulher surgiu..." Caeli arregalou os olhos em expectativa. "E essa mulher levou-a para seu reino onde moravam muitas pessoas, e lá ela fez novas amizades, se viu mais uma vez rodeada de pessoas. Aprendeu novas coisas, ouviu novas histórias. Mas, ela ainda sentia que lhe faltava alguma coisa, como uma única peça de um quebra cabeça que te impede de ver a imagem completa. Então, a princesa voltou para sua floresta, que a recebeu com um doce abraço, tamanha foi a saudade que sentira de sua princesa. E como boas vindas, deu-lhe um presente. Das árvores que ela plantou e da água do rio que usou para regá-las, surgiu uma princesinha, tão linda quanto a luz do Sol. A princesinha nascida da floresta também não tinha os pais por perto mas tinha um coração gentil e amava tudo que a cercava, e a princesa se viu refletida nela. E a peça final se encaixou. Ela percebeu que dando à princesinha aquilo que ela mais sentia falta, que era o amor e o abraço materno, automaticamente estava tirando a dor do próprio coração. E assim elas viveram felizes para sempre como mãe e filha, sem jamais sentirem-se sozinhas ou com um pedaço faltando."
 "E ela gostava da nova princesinha?"
 "Com todo o coração. Aquele presente tão querido que lhe foi dado, foi a melhor coisa que lhe aconteceu, mesmo que ela não compreendesse no começo. Às vezes, Caeli, os presentes dados quando menos esperamos se tornam os mais valiosos. O amor da princesa por sua princesinha foi o maior que já existiu, tão grande que as árvores não precisavam mais cuidar delas pois tinham uma a outra."
 A menina pareceu refletir por alguns instantes, até que um sorrisinho se abriu em seus lábios.
 "Acho que ganhei um presente como o da princesa também."
 "É mesmo? E qual seria?"
 Ela abriu a boca para responder, mas no mesmo instante, Thuban abriu a porta do quarto e caminhou até nós. "Ele quer vê-la. Thesig virá ficar com ela."
 Assenti uma vez, sorri tranquilizadora para Caeli e a coloquei no chão, me levantando em seguida. Logo Thesig saiu do quarto e eu a observei. Sua expressão não demonstrava nada, mas seus olhos estavam distantes, sua mente estava em outro lugar. E bastou olhar para Caeli para que o brilho retornasse a seus olhos. Aproximei-me para sussurrar.
 "Ela gosta de histórias."
 Ela assentiu agradecida e me desejou boa sorte antes que eu entrasse no quarto.
 Cepheus estava encostado contra o móvel mais distante, como se tivesse tentado ficar o mais longe possível de Thesig. Fechei a porta do quarto atrás de mim e esperei que ele dissesse alguma coisa, o que levou vários minutos.
 "Eu me lembro deles. Dos pais dela. Eles não eram boas pessoas, Alioth."
 "Eu sei. Mas Thesig é."
 "Ela tem os olhos iguais aos do pai dela."
 Fiquei em silêncio, eu sinceramente não gostaria de ouvir sobre os pais de Thesig, saber o que eles fizeram para ela merecer passar por tudo o que passou.
 "Por que não me contou sobre tudo isso?"
 "Não contei por ela. Ela não estava pronta ainda para expor tudo o que passou para você, e ela tem ótimos motivos para isso."
 Cepheus assentiu uma vez e então me encarou. "Eu sinto muito por tudo que ela passou, por não sabermos e não podermos mudar o que aconteceu."
 "Eu também."
 "É por isso que está sendo tão benevolente com os bárbaros."
 "Serei benevolente com qualquer um que não me der motivos para não ser."
 "Até mesmo os bárbaros?"
 "Principalmente eles."
 "Por que?"
 Franzi a testa em irritação. "Por que não deveria? Eles são apenas pessoas."
 "Eles são bárbaros, Alioth. Já os vi cometendo diversas atrocidades em nossas terras, eles querem roubar de nós, querem tomar tudo o que temos. Eles são selvagens, não convivem sob leis ou líderes."
 "Pode chamá-los de bárbaros o quanto desejar, mas saiba que são muito mais decentes que nosso próprio povo, que faz coisas como o que aconteceu com Thesig. Nosso povo não é bondoso, são cruéis. Fomos cegados pela ganância, todos nós. Moramos em uma terra abençoada e pensamos que a possuímos, que devemos dizer quem entra e quem sai daqui."
 "Você não pode estar falando sério. Está do lado dos selvagens agora?" ele elevou o tom de voz.
 "O que os faz selvagens, pai? Não viverem com líderes ou porque querem pegar o que pensamos nos pertencer?"
 "Eles são selvagens!"
 "Selvagens ou não, isso não quer dizer que mereçam morrer de fome do outro lado do deserto. Isso não quer dizer que somos melhores que eles, porque não somos. Somos nós que machucamos uns aos outros, que matamos uns aos outros. Eles são uma família."
 "Não se engane com eles, Alioth. Eles vão matá-la na primeira oportunidade. Mas, agora, recebi a notícia de que você havia sido ferida e deixei tudo de lado para vir até aqui, e quero saber exatamente o que aconteceu."
 Cepheus ficou em silêncio me encarando, esperando que eu começasse a contar o que ocorrera aquele dia na floresta. E tinha quase absoluta certeza de que ele estava esperando qualquer motivo para culpar algum brakbariano pelo que havia acontecido.
 "Eu saí para caçar, pois estávamos ficando sem carne. Dei de cara com dois ursos, eles me perseguiram pela floresta. Eu consegui matá-los, mas não antes de um deles quase me matar também. E foi Ghurab que me encontrou na floresta. Ele me salvou, e essa não foi a primeira vez. Então eu sugiro reavalie o seu conceito de selvagem, meu pai. Pois aquele que você chama de selvagem foi quem rompeu os grilhões para poder correr em meu socorro, enquanto aqueles que você chama de civilizados escravizam, torturam e abandonam crianças."
 Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Sua mão enorme apertava a beirada do móvel em que estava encostado até os nós dos dedos ficarem brancos.
 "Nesse momento, os selvagens somos nós. E se houver o momento em que eu tiver que escolher entre viver como thoraniana ou como brakbariana, você saberá qual a resposta."
 "Você não pode estar em seu juízo perfeito."
 "Pelo contrário, eu nunca estive tão sã em toda minha vida. Nosso povo não sabe mais viver com honra. Nosso preconceito nos cegou e nos tornou um povo egoísta, condenando à morte quem mais precisa de nossa ajuda."
 "Eu não ouvirei mais nenhuma tolice dessa." Começou a caminhar para a porta do quarto para sair dali.
 "Não ouvirá, mas tenho certeza de que pensará nelas mais cedo do que imagina. Você ainda deve a vida de sua filha a um brakbariano, meu pai. Essa mudança está apenas começando."
 Cepheus saiu do quarto como uma tempestade, e não o vi mais. O resto da noite, eu, Thesig e Caeli ficamos no quarto trocando histórias de conto de fadas, fazendo tranças nos cabelos até que as duas caíram no sono e eu pude sair para tomar um pouco de ar, quando avistei Ghurab carregando meu pai até o quarto. Eu poderia gargalhar com a ironia, mas me contive. 

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora