Capítulo XII

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 Enquanto os guardas de Alioth preparavam a carne da corça para comermos, eu e Manva permanecemos dentro da pequena cabana. Até que não estava em condições tão ruins, poderíamos consertar grande parte dela se tivéssemos o material certo, nos quais eu teria que pedir para Alioth. Mas eu, covardemente, não estava pronto para falar com ela ainda. Depois de descobrir que era a general dos exércitos e vê-la carregando o animal morto sozinha nas costas, manchada pelo sangue que escorria da corça, trouxe um lado de Alioth que eu não estava preparado para ver. Já havia visto as mulheres brakbarianas caçarem e se sujarem de sangue, é claro. Só que aquela mulher era diferente. Aquela thoraniana era algo que eu nunca tinha visto antes. Aquela coisa dentro de mim se agitava toda vez que eu pousava os olhos nela e eu ainda não sabia dizer se era algo bom ou ruim.
 "Sabe que vai ter que pedir a ela em algum momento." Falou Manva atrás de mim. Estávamos olhando os danos causados pelo tempo nas paredes da cabana. Eu estava fitando a mesma parede sem vê-la fazia vinte minutos. Vire-me para ele e passei as mãos pelo rosto.
 "Eu sei. Só estou pensando no que precisaremos para dar um jeito nisso aqui."
 "Ora, Ghurab. Não há necessidade de mentiras. Eu vejo em seu rosto, toda vez que a princesinha nos da o prazer de sua presença, você parece estar morrendo. Como se ela sugasse o ar de dentro de seus pulmões com aqueles olhos verdes brilhantes".
 Lancei-lhe um olhar que prometia violência, o que o fez rir.
 "Vamos precisar cobrir as rachaduras das paredes e de uma porta nova.", mudou de assunto.

 "Você cuida das paredes e eu providencio a porta."
 Dei-lhe as costas e saí da cabana, as correntes dos grilhões em meus tornozelos tilintando a cada passo, o que deixou os guardas alertas a qualquer movimento que eu fizesse, suas as mãos pousadas nos cabos de suas espadas. Parei pelo menos dois metros de distância de Alioth, que estava sentada no chão afiando sua adaga com uma pedra lisa. Assim que cheguei ali, ela ergueu o olhar para mim. Entendi o que Manva quis dizer, então. Eu tinha dificuldade de respirar toda vez que ela me olhava.
 "Do que precisa?", perguntou.
 "Madeira. Para a porta nova."
 Assentiu uma vez e guardou a adaga numa bainha presa à coxa, jogou a pedra no chão e se levantou, batendo a terra das roupas.
 "Vamos."
 "Você..." pigarreei baixo, "pensei que fosse mandar um guarda me escoltar."
 "Bom," apontou para si mesma "sou um guarda também. Ao menos, já fui."
 "Você é a general."
 "Sou. Há cinco anos."
 "Por que não disse nada?"
 "Porque eu deveria dar a você alguma vantagem?"
 "Esperta."
 "Seria diferente se eu tivesse contado? Você só teria mais motivos para me odiar além do que já odeia."
 Fiquei em silêncio, e um leve brilho de frustração cobriu seu olhar. Quando piscou, havia sumido. Apontou para a floresta atrás de si, dizendo-me para ir em frente, seguindo logo atrás de mim. Caminhamos em silêncio pela floresta, procurando por pedaços de madeira com a mesma altura e largura para fazermos uma porta o mais regular possível. Ela escolhia os pedaços de madeira enquanto eu os carregava. Mantivemo-nos assim por umas duas horas, falando apenas quando necessário. Já começava a entardecer, então ela disse que precisávamos voltar para o almoço. Começamos o caminho de volta, quando um ruído baixo vindo de nosso lado esquerdo nos fez parar ao mesmo tempo. Virei a cabeça na direção do barulho e me abaixei rapidamente, soltando os pedaços de madeira e puxando Alioth para baixo também. Olhei para ela para falar num sussurro.
 "Urso."
 Seu rosto empalideceu e ela se aproximou mais, tentando ver entre as folhas do arbusto em que estávamos escondidos. Engoli em seco quando o cheiro de morangos chegou até meu nariz. Ela estava muito perto. Eu podia sentir a respiração dela contra meu pescoço. Meu corpo inteiro ficou tenso quando o ruído de folhas sendo pisadas por patas enormes soou mais próximo a nós. A mão pálida de Alioth apertou meu antebraço, seus olhos verdes estavam arregalados enquanto encarava o animal por entre as folhas. Então seu rosto se virou para mim e ela se aproximou ainda mais, colando a bochecha na minha para sussurrar muito baixo em minha orelha.
 "Está sentindo nosso cheiro."
 Assenti com a cabeça uma vez, sentindo seus cabelos fazerem cócegas em meu rosto. Ela sussurrou mais uma vez.
 "Como vamos sair? Ele vai seguir o rastro até aqui."
 Afastei-me um pouco para tentar olhar os arredores e tentar traçar um plano de fuga em minha mente. Ursos tinham um faro muito bom, sempre eram atraídos pelo cheiro. Mas sua audição também era boa. Não havia nenhum outro animal que o urso temesse, por ser um caçador enorme. O que eu faria? Como fazer o urso se afastar o suficiente para corrermos? Franzi a testa em frustração e vi o medo nos olhos de Alioth. Ela também não tinha nenhuma ideia. Percebi que um de meus braços estava ao redor da cintura dela, prendendo-a contra meu corpo de maneira protetora. Afrouxei o aperto, pretendendo me afastar um pouco mais, mas a mão dela segurou minha camisa com tanta força que os nós de seus dedos ficaram brancos. Seus olhos de esmeralda estavam fixos em mim. Havia algo predatório ali, como um lobo. Um lobo. Meus olhos se arregalaram. Afastei meu braço dela abruptamente, ouvindo o urso ainda mais próximo de nós, coloquei as mãos em concha ao redor dos lábios e imitei com perfeição o uivo de um lobo. O urso ergueu a cabeça, farejando. Segundos depois, ao longe, outro uivo soou. Manva. E outros uivos juntaram-se aos nossos, inesperadamente. O urso se colocou em pé sobre as patas traseiras, grunhindo quando o som dos uivos ficou mais forte, e então começou a correr para longe. Deixei que se passassem alguns minutos antes de me levantar. Alioth se levantou em seguida, recolhendo as madeiras que eu jogara no chão.

 "Como conseguiu fazer isso?"

 "Eu disse que sabia muitas línguas."
 "Mas, um lobo?"
 "Um lobo só não amedrontaria um urso adulto. Mas talvez uma alcateia sim. Foi um golpe de sorte."
 "Bom, salvou nossas peles." Ela sorriu e colocou as madeiras em meus braços novamente.
 Um leve sorriso delineou meus lábios quando ela deu as costas, ao perceber que suas bochechas estavam levemente coradas. Quando chegamos ao acampamento, Manva correu até mim para saber o que havia acontecido, o que havia causado o uivo. Normalmente usávamos aquela tática para localizarmos uns aos outros durante uma caçada. Contei para ele resumidamente a aparição do urso.
 "Salvou a donzela do urso, então?"
 "Pelo Céu e Mar, Manva, não faça eu quebrar seus dentes hoje."
 Ele gargalhou e socou levemente meu braço, afastando-se para dentro da cabana. Alioth falou com os guardas, explicando o que havia acontecido, para ficarem atentos ao entrarem na floresta. E então para pegarem as madeiras de mim para cortarem e amarrarem umas nas outras e fazer a porta.
 "Eu farei.", falei num grunhido. Não precisava da ajuda deles. Já havia feito mais portas de madeira do que eles, disso eu tinha certeza.
 Eles deram de ombro e se afastaram, deixando-me trabalhar. Claro que não confiaram a mim um machado, então um dos homens ficou para cortar a madeira onde eu dizia a ele para cortar. Usei uma corda firme que eles haviam trazido para amarrar uma madeira à outra. Por alguns instantes dentro daquela floresta, eu havia me esquecido de quem eu era e de quem ela era, o que me deixou com raiva, muita raiva por ter sido tão facilmente enfeitiçado por aqueles olhos. Por ter abaixado minha guarda na presença dela. Quando estava na metade, Alioth se aproximou de mim.

 "O almoço está pronto."
 Passei as costas da mão sobre a testa, secando o suor.
 "Vou comer depois."
 Ela pigarreou baixo. "Eu... Eu acho que não agradeci pelo que fez na floresta."

 "Não se incomode.", respondi sem erguer a cabeça para olhá-la, completamente focado no que fazia com as madeiras.

 "Eu me incomodo, sim. Salvou minha vida."
 "Salvei nossas vidas, a minha também estava em jogo." finalmente a olhei, passando os dedos em meus cabelos para tirá-los da frente dos olhos. "Não pense que foi um favor, princesa."

 Suas sobrancelhas se uniram e seu corpo ficou tenso. O que quer que tenha sido aquilo na floresta, já havia passado. Havíamos voltado para a realidade, onde ela era general e eu um prisioneiro escravo.
 "Então se fosse apenas a minha vida em jogo ali..."
 "O urso estaria palitando os dentes agora. Mais alguma coisa, princesa?"
 Suas feições endureceram e ela me encarou por alguns instantes. Malditos olhos de esmeralda. Meu coração errou o compasso, mas permaneci firme. Eu tinha que odiá-la. Ela e aquela terra fértil, terra que poderia alimentar e sustentar todos os brakbarianos sem nem mesmo tirar os thoranianos dali. Tinha espaço o suficiente para todos, mas eles jamais deixariam seu orgulho de lado, então meu povo passava fome e ficava cada vez menor com o passar dos anos. Logo estariam extintos.
 "Aqui eu sou a general, bárbaro. Mostre algum respeito por um superior."

 "Você não é minha superior, você só colocou grilhões em meus tornozelos e mantém lâminas apontadas para meu pescoço. Só estou vivo porque de alguma forma sou útil a você." Cuspi as palavras com frieza. "Você tirou minha liberdade, condena meu povo ao sofrimento e simplesmente os mata por tentarem entrar em suas terras. Eu jamais poderia respeitar alguém tão cruel. Vocês, thoranianos, são todos iguais."
 Suas costas estavam rígidas, o olhar perdeu o brilho natural e ela simplesmente deu as costas, saindo sem dizer mais nada. Eu precisava odiá-la. Por meu povo do outro lado do deserto. Pelas noites em que dormi com fome. Pelas pessoas que perdiam suas vidas ao lutarem por algo melhor. Eu precisava odiá-la para aquele plano dar certo. Odiá-la mesmo quando respirava profundamente e sentia seu cheiro impregnado em mim. Mesmo quando me deitava para dormir e via seus olhos em minha mente. Mesmo quando tive que me esforçar muito para não me importar com a mágoa que estava estampada em seu belo rosto quando ela me deu as costas. 

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora