Ghurab
"Se eu tiver que ouvir Garkah resmungar mais uma vez, eu juro que..." antes que Manva terminasse de falar, meu punho acertou seu rosto com força o bastante para ele tombar para o lado.
"Não ouvirei mais nenhuma reclamação de nenhum dos dois." Falei em tom baixo enquanto Manva voltava a se sentar ereto ao meu lado direito. Cuspiu um pouco de sangue na grama, abriu e fechou algumas vezes a boca para saber se eu não havia lhe quebrado a mandíbula. Mas ficou em silêncio. Estávamos no alto de uma pequena colina na floresta de pinheiros de Brakbar, dali eu podia ver quase tudo. A pequena cidade que era cercada pela floresta. Mesmo durante a noite fria, eles se moviam para lá e para cá. A cidade havia sido erguida a partir de ruínas, mas não era como as Ruínas Sagradas ao oeste ou as Ruínas Amaldiçoadas ao norte. Eram apenas ruínas comuns, seu nome havia sido esquecido há tempos e ali os primeiros brakbarianos estabeleceram residência.
E era só isso. Não havia riqueza, o solo era infértil em quase todas as partes de Brakbar, poucas coisas boas nasciam ali. Como os selvagens que viviam naquele lugar. Endurecidos pela falta de oportunidades, alimentos e sustentos. Diferente daqueles bem afortunados de Thorae, os brakbarianos tinham que lutar para sobreviverem até o dia seguinte. Entre si e contra a fome. Os mais fortes caçavam nos desertos e na floresta, mas ainda assim não era o bastante para todos. Eu estava ali havia dois anos, vivendo como eles viviam, comendo do que eles comiam e aprendendo o que eles aprendiam. Tomei a iniciativa, juntamente com Garkah e Manva, de ir até o rio Furkona para pescar e caçar os animais que viviam nos limites da Malahar. Eles não entravam naquela floresta. Ninguém em Beldarrien entrava ali. Havia criaturas desconhecidas e perigosas demais para que arriscassem dar um passo a mais para dentro das árvores. E eu já havia visto o suficiente daquele continente para acreditar que nada de bom poderia vir de lugares estranhos.
"Você precisa tomar uma decisão, Ghurab. A votação foi feita, e o povo te escolheu pra entrar em Thorae na próxima estação. De novo. Não pense que é algo desprovido de honra, apesar de quase todos terem morrido após ousarem entrar em batalha com os thoranianos." Falou Garkah enquanto subia a colina para se sentar ao meu lado esquerdo. "Todos sabem que você é o mais bem preparado para isso. Você sabe lutar como nenhum outro brakbariano, e mesmo que tenha tentado nos ensinar, ainda é verdade que você é o melhor."
"Não vou te beijar por isso, Garkah."
Ele riu e coçou a barba por fazer em seu queixo. Manva acompanhou a risada e olhamos a cidade, mais uma vez em silêncio. Desde que os brakbarianos descobriram as riquezas de Thorae, tentavam tomá-la a força. Invadiam o território e sempre davam de cara com sentinelas preparadas para impedi-los antes de sequer alcançarem a aldeia. A viagem para o oeste estava marcada para dali dois meses, tempo o suficiente de preparar provisões para o longo caminho. A pior parte era atravessar o deserto. Não havia muito onde conseguir abrigo. Eu já havia passado mais tempo lá do que qualquer um deles. Até então, recusei todas as vezes que me escolheram para atravessar o continente até aquela aldeia de esnobes, ainda não me sentia completamente um brakbariano e pensava não ser minha batalha para travar. Mas a fome bateu na minha porta na última estação e eu acreditava em mudanças. E já estava na hora de algumas. Não era justo que aquele povo sofresse enquanto os thoranianos viviam na mais absoluta tranquilidade. Levantei-me e bati a poeira das calças, iniciando a descida da colina. Ouvi Garkah e Manva se levantando para me acompanhar. Há dois anos, eles voltavam de sua própria viagem, vindo de Thorae e pararam no acampamento nômade em que eu morava na época. Contaram-me histórias de batalhas históricas, homens que davam mais do que recebiam, que tinham sede de descobertas e ambições impensáveis. Mães que treinavam seus filhos e filhas para se defenderem, questões que passavam da baboseira de orgulho ou dominação. As mulheres bárbaras não eram usadas somente para reprodução como na maioria dos territórios. Ali elas eram valorizadas por sua bravura e habilidade em qualquer coisa que fossem designadas para fazer. Mas havia reuniões que faziam somente entre elas, como uma seita. Nenhum homem sabia o que se passava dentro das cabanas de mulheres quando se juntavam. Eu nunca tive curiosidade o suficiente pra investigar. Que ficassem com seus segredos, eu tinha problemas maiores para resolver.
"Conheço esse olhar. Tomou uma decisão, não foi?" disse Manva logo atrás de mim. "Aposto minhas botas que ele vai dizer não mais uma vez."
"Não seja ridículo, Manva. Ninguém jamais aceitaria suas botas, elas fedem como um gambá em decomposição."
Ouvi um ruído baixo, seguido por um grunhido. Não precisei me virar para saber que um deles agora estava esfregando o rosto socado. Caminhei por entre as residências até a cabana da anciã, sabendo que a mestra de mapas também estaria ali. Afastei as abas da cortina grossa que servia como porta e entrei sem bater. Elas estavam sentadas no chão, diante de um mapa aberto. Não havia mesa ali, e a única iluminação do lugar vinha de uma pequena quantidade de velas.
"Ghurab. Se decidiu?", a anciã falou sem nem mesmo erguer o olhar do mapa.
Chamavam-na de anciã por conta de sua sabedoria, mas ela não era tão velha assim. Não tinha mais que quarenta anos de idade. Os cabelos loiros eram trançados nas costas, tão longos que quando ela estava sentada daquela maneira, a trança repousava no chão também. A mestra de mapas não era muito mais velha do que eu, os cabelos castanhos na altura dos ombros e olhos cor de ferrugem que se ergueram assim que entrei na cabana. Era ela quem preparava a maior parte das estratégias para os ataques a Thorae, conhecendo Beldarrien como a palma de sua mão de tanto encarar os mapas. Quando não respondi, a anciã ergueu o olhar. Os olhos castanhos fixaram-se em mim, ignorando Garkah e Manva.
"Quero saber o que tem preparado para a próxima viagem. Se eu for desta vez, há algumas mudanças que gostaria de fazer. Não me olhe assim. Já é tempo de saber que esses planos nunca vão funcionar. O número deles é maior e treinamento superior aos nossos. Não é questão de conhecer o mapa, mas sim o oponente." Os olhos da mestra se semicerraram, mas ela assentiu e apontou o mapa, contando-me seus planos. Cruzei os braços sobre o peito e ouvi atentamente, considerando cada ato que ela havia preparado. Se não soubéssemos contra o que estávamos agindo, talvez tivéssemos sucesso. Mas esse não era o caso. Sentei-me diante delas com o mapa entre nós e fiz minhas observações. Mudei cursos e abordagens. Mudei o número de homens e o tempo que levaríamos para atacar. Sem rodeios, com precisão.
Depois que terminei, ela estava com as sobrancelhas franzidas, os lábios apertados numa linha fina enquanto se concentrava em visualizar o que eu dizia no mapa aberto diante de si, como se estivesse impresso ali. Já a anciã me observava com atenção, como se já esperasse por cada palavra que saiu de minha boca, nem um pouco surpresa, mas satisfeita.
"Estamos esperando por sua intervenção por dois anos, rapaz. O que fez você mudar de ideia tão de repente?"
"Estou cansado de ver vocês fracassando todas as vezes em que tentaram. E quem sabe, se eu tiver sucesso, posso ser o mais rico dos brakbarianos." Dei-lhes um sorriso arrogante, o que me resultou em ser enxotado para fora da cabana juntamente de meus companheiros.
Fomos até a taverna – o que chamávamos de taverna não passava de uma construção que um dia foi uma ruína, agora reconstruída com algumas mesas espalhadas aqui e ali. Pedimos três cervejas que tinham mais gosto de água suja e sentamo-nos numa mesa perto da parede.
"Eu vou com você." Garkah foi o primeiro a falar. O sentimento foi ecoado por Manva. Girei a caneca de cerveja entre minhas mãos e ergui o olhar para os dois que estavam sentados na minha frente.
"É claro que vocês vão, seus bastardos. O que eu ensinei a vocês vai ser o suficiente pra não terem seus rabinhos bárbaros chutados pelos thoranianos."
"Você é tão bárbaro quanto nós, Ghurab."
"Ah, não... eu sou muito melhor que vocês."
Ergui minha caneca e eles bateram com as suas na minha, brindando sem nenhum motivo aparente. Talvez porque, ao menos naquela noite, estávamos vivos.
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Beldarrien - A Coroa Amaldiçoada
FantasyHá mil anos uma maldição foi lançada no continente de Beldarrien, onde haveria aquele que traria o caos e reinaria juntamente da feiticeira para libertar uma criatura tão antiga quanto a Terra. Porém a maldição trouxe também, em forma de equilíbrio...