Capítulo XIX

7 1 0
                                    

Garkah

 Se alguns meses atrás me dissessem o rumo no qual minha vida tomaria, eu certamente riria até ficar rouco. Mas o Céu tinha um senso de humor sombrio, e ali estávamos nós. Três brakbarianos trabalhando nas fazendas de Thorae, o território que sonhávamos em conquistar. E pelo menos dois de nós absoluta e profundamente afetados por mulheres thoranianas. Depois que cheguei ali, depois de deixar Thesig para trás, parecia que havia uma falha dentro de mim, como quando se encontra um furo no tecido ao passar o dedo sobre ele. O trabalho ajudava a clarear os pensamentos, mas não inteiramente. Em algum momento, eu me pegava viajando de volta para a enfermaria de Thorae, para aquelas mãos delicadas apesar dos calos e daqueles olhos de cobre sempre gentis que começaram a me compreender com facilidade. Talvez fosse por sua presença sempre luminosa, seu cuidado e atenção, mas meu ferimento se curou rapidamente em seus cuidados. Mais rápido que eu gostaria. Assim, meu tempo com ela acabou e fui mandado para longe. Fiquei feliz em ver meus irmãos a salvo, mais bem alimentados do que me lembrava. Aliás, mais bem alimentados do que eu jamais vira. O que aquela terra fértil não poderia fazer pelos brakbarianos famintos? O ódio dos thoranianos por nós era tão intenso que fazia com que pessoas morressem de fome nos passar dos anos. Eu gostaria de saber de onde viera isso, essa guerra eterna em que vivíamos.
 Então recebemos a notícia da piora de Alioth. Ghurab parecia prestes a explodir, ele mal se concentrava no que estava fazendo enquanto trabalhávamos. Eu precisava fazer algo por ele. E sabia quem poderia ajudar.
 "A enfermeira que cuidou de mim. Consegui melhorar muito rapidamente em seus cuidados. Talvez se a trouxessem, poderia salvar a princesa."
 Os olhos dele fervilhavam com diversas emoções ao mesmo tempo, rápido demais para que eu captasse qualquer um deles. Contei a ele como eram os cuidados de Thesig, e como a cicatrização do meu ferimento foi milagrosamente rápida depois que ela apareceu na enfermaria. Não precisei me esforçar para convencê-lo a dar a dica para os guardas sutilmente, sem querer parecer muito desesperado apesar de seus ombros estarem tensos. Eu e Manva engolimos a risada com a tentativa de Ghurab de parecer calmo. E depois disso o humor nos deixou para dar espaço a uma tensão tangível. Quanto mais tempo se passava, mais Alioth piorava e mais Ghurab parecia prestes a enlouquecer.
 "Eu ainda não sei como ele se enfiou nisso." Falou Manva para mim em uma tarde na qual trabalhávamos. "Diz que se vê refletido nela. Não consigo ver nenhuma semelhança entre os dois."
 Franzi a testa para meu irmão, encarando seu rosto. Meu rosto. "Não vê semelhança entre eles? Você é terrivelmente cego, irmão."
 "O que quer dizer?"
 "Ghurab e Alioth são semelhantes. É como se eles fossem duas criaturas completamente diferente do que conhecemos, presas a vidas limitadas. Acorrentados a algo menor do que eles, quase sem poder serem contidos. E igual atrai igual."
 Manva pareceu refletir sobre isso e virou a cabeça na direção de Ghurab, que trabalhava arduamente, as tatuagens das costas expostas ao ter tirado a camiseta por conta do tempo quente das fazendas. Sim, de fato, acorrentados a algo muito menor.

 Com os dias, continuávamos nossotrabalho com os bezerros. Thesig cuidava de Alioth o dia todo, trocando asataduras e fazendo-a comer alguma coisa e com o passar do tempo, ela começou aficar mais tempo consciente e a comer um pouco mais. Devagar, ela serecuperava. Eu não as vi desde que chegara ali, sabia da situação através deGhurab, que ia até o quarto de Alioth todos os dias enquanto ela dormia.
 E todos os dias, uma garotinhaaparecia entre os grupos de bezerros atrás do celeiro, a mesma que aparecera noprimeiro dia em que fomos designados a cuidar deles. Eu sabia quem ela era.Somente outra pessoa tinha olhos cor de cobre como aqueles. A garotinha deviater aproximadamente oito anos, os cabelos loiros brilhantes iam até a metadedas costas. Era absolutamente angelical. Não falava muito, apenas me encarava esussurrava para os bezerros coisas inaudíveis. Vez ou outra ela se aproximava eerguia a mão para tocar minha barba por fazer, talvez nunca houvesse visto umhomem com a barba daquele jeito e isso despertasse sua curiosidade infantil.Havíamos estabelecido uma relação silenciosa amigável com o tempo. Enquanto eutrabalhava, ela corria para lá e para cá atrás dos animais, eu sempre mantinhaminha atenção mais nela do que nos bezerros, para caso se machucasse. Algumasvezes ela até me ajudava, segurando a grande mamadeira para alimentar osbezerros. Em uma dessas vezes, ela murmurou algo em thoraniano tão baixo que sócaptei a ultima palavra. Caeli. E então ergueu o olhar para mim, esperando poruma resposta. Entendi, aquele era seu nome.
 "Garkah" murmurei para ela.
 Caeli sorriu e abraçou minhaspernas antes de correr para longe, pois o entardecer se aproximava.
 Seguiu-se então essa rotina.Todas as manhãs ela estava lá, e ao entardecer ia embora. Não falava muitocomigo, mas era absurdamente tagarela com os animais, que pareciam apreciarsuas visitas, deitando-se na grama ao lado dela quando Caeli encontrava algumasombra para ficar.
 Eu terminava de passar aescova sobre os pelos do último bezerro, quando ouvi um choro agudo vindo daparte de trás do celeiro. Meu coração pareceu congelar no peito e eu melevantei, correndo até o choro. Caeli estava sentada no chão, encolhida comouma bolinha encostada na parede do celeiro. Me aproximei e a tomei em meusbraços.
 "Caeli", falei seu nome em tomde pergunta, querendo saber o que havia acontecido.
 Seu pequeno corpinho havia seaconchegado contra mim e o choro tornou-se manhoso. Ela ergueu seu pequeno dedoindicador e mostrou para mim uma farpa que entrara em sua pele. O gelo em meucoração diminuiu consideravelmente. Levantei-me com ela em meu colo, olhandopara os dois lados antes de ir até a luz do sol, sem querer que meus irmãos –ou pior, os fazendeiros – me vissem com Caeli. Eles poderiam não entender o queeu fazia com uma criança thoraniana nos braços. Assim que consegui luz osuficiente, olhei novamente seu dedinho ferido. Levei o dedo a meus lábios, oque a fez ficar boquiaberta, com a sombra de um sorriso aparecendo entre aslágrimas. Suguei a pele com cuidado e consegui tira-la, cuspindo-a longe emseguida. Caeli olhou para seu dedo livre da farpa e depois para mim. O sorrisomais luminoso que eu já vira se abriu em seu rosto e ela jogou os bracinhos aoredor de meu pescoço, apertando-me num abraço. Engoli em seco e me pegueiabraçando-a de volta. Quando meu olhar se ergueu para o campo, vi Thesig aalguns metros de distância de nós, completamente paralisada com a cena quepresenciara. Certamente ela havia reconhecido a menina, a alma de uma mãeconhecia a do próprio filho. E naquele momento, a filha de Thesig me abraçavaalegremente. Antes que eu pudesse me mover, ela virou as costas e correu paralonge dali. Franzi a testa e passei a mão pelos cabelos de Caeli, colocando-ano chão em seguida. A garotinha ainda sorria e foi brincar com os bezerros,enquanto meus olhos varreram a redondeza atrás de Thesig, que já haviadesaparecido dali. Quando me virei para olhar a menina, deparei-me com meusirmãos de braços cruzados, os rostos voltados para baixo enquanto encaravamCaeli que ficara estática diante dos homens enormes, então correu para mim,escondendo-se atrás de minhas pernas. Manva deu um passo em minha direção.
 "Explique-se." Falou rudemente.
 Fechei a cara, colocando a meninaainda mais para trás de meu corpo. "Deixem-na fora disso."
 "Virou o papaizinho de umathoraniana agora, Garkah?"
 "Não seja ridículo." Grunhi.
 Ghurab estava sombriamentesilencioso, ainda encarava a garotinha atrás de mim. E lentamente seu olhar seergueu para meu rosto.
 "Ela é filha de Thesig."
 Manva parou e eu fiqueiimóvel. Ambos ficamos em silêncio, até que Caeli choramingou baixo e senti suasmãos pequenas agarrando a minha. "Sim", respondi.
 Ambos franziram a testa e nãodisseram mais nada. Comecei a me afastar, puxando delicadamente a garotinhacomigo, até a parte de trás do celeiro, e dali ela correu para qualquer quefosse sua casa ali. Thesig havia me visto com sua filha nos braços e entrara empânico. Meus irmãos também viram e os dois não pareciam lidar muito bem comaquilo. Bom, ao inferno com suas opiniões. A pequena Caeli havia, em poucotempo, roubado o que restasse do meu coração bárbaro. Assim como sua mãe.    

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora