Capitulo VII

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​  Passei uma semana na cabana de Thesig, ouvindo as mais diversas histórias que ela tinha para contar de sua infância. Entretanto, não foi fácil ouvi-las. Depois do ocorrido na floresta, voltei até onde estava acampada para recolher meus pertences e ficar na cabana caindo aos pedaços da garota. Thesig ficou encantada com meu cavalo, passando as mãos por sua crina e lhe acariciando o grande focinho, mas não o montou quando eu ofereci a ela. Disse que um animal tão amável quanto aquele não devia trabalhar mais do que estava designado e depois admitiu que não sabia cavalgar. Meu cavalo era o mais selvagem e agressivo dos estábulos. Nenhum outro homem além do que cuidava dele – e de mim – conseguia chegar perto o daquela besta feroz. Ele tinha o costume de morder e distribuir coices nos desconhecidos que se aproximavam demais. Mas quando Thesig se aproximou e colocou a mão em seu focinho, ele imediatamente abaixou a cabeça para receber a carícia, como se a conhecesse sua vida toda.
​  A cabana dela era velha e muito pequena, as paredes tinham rachaduras profundas e cupins haviam corroído quase completamente a porta da frente, restando apenas um pedaço de madeira irregular e oca. Teias de aranha cobriam grande parte do teto e vi um rato ou outro passando pelas vigas que sustentavam o telhado. Havia três cômodos ali. Uma sala que continha marcas escuras no chão como se ela acendesse fogueiras ali dentro e os resquícios de cinzas ficassem impregnados, um amontoado de palhas que provavelmente eram usados como sofá e uma mesa no canto. À direita via-se uma alcova com dois fardos de feno perto da parede e à esquerda um pequeno banheiro com diversas bacias para se limpar. Cortinas velhas separavam os três cômodos, e percebi que eram retalhos de roupas costuradas uns nos outros.
​  Coloquei minha bolsa e o alforje em cima da pequena mesa da sala e vire-me na direção da garota que fazia um esforço monumental para não parecer envergonhada, ajeitando o amontoado de palhas, para que desse um ar mais arrumado ao ambiente miserável. Não havia nenhuma vela ali, então peguei algumas que havia levado comigo em minha bolsa e espalhei pela cabana, acendendo-as em seguida. Thesig olhou ao redor de um jeito que me fez imaginar que ela não estava acostumada a ter sua casa iluminada durante a noite. Engoli o nó que se formou em minha garganta e me sentei nas palhas, esticando as pernas diante do corpo e cruzando os tornozelos.
​  "Quero que me conte tudo."
​  Thesig voltou o olhar para mim e se aproximou, sentando-se no chão ao meu lado. Respirou fundo e passou os dedos pelos cabelos castanhos, desfazendo alguns nós distraidamente enquanto sua mente se organizava.
​  "Minha família era dona de fazendas dessa parte de Thorae durante o governo de Sylthor." A menção ao nome do pai de Cepheus fez um leve arrepio percorrer minha espinha. "Apoiavam-no cegamente em suas decisões, desde que isso resultasse em lucros para as fazendas. Muitas pessoas morreram naquela época por conta da ganância de Sylthor, muitas viveram de maneira miserável por muito tempo. Eram aplicadas punições extremas em thoranianos, mesmo por pequenos delitos. Todos viviam com medo. Minha família era uma das mais próximas a ele, servindo como delatores. Por isso, eram odiados por quase todos os moradores, vistos como aqueles que traíam o povo para benefício próprio. Ficar nas graças de Sylthor era difícil, mas eles conseguiram pelas décadas em que ele governou. Até que ele caiu." Seus delicados dedos pararam de desfazer os nós de seu cabelo e ela pousou as mãos sobre o colo. "Quando Cepheus herdou Thorae, seu governo mudou muitas coisas. As pessoas não tinham mais medo. Minha família tentou repetir a estratégia de lucro, bajulando-o assim que subiu ao poder. Mas ele simplesmente os enxotou do Salão Central e disse que pessoas de tal caráter não tinham lugar como líderes. Foram expulsos de suas fazendas e vieram para a floresta, onde construíram essa cabana. Minha mãe estava grávida na época, e foi aqui que eu nasci. Cinco anos depois meus pais foram mortos diante de meus olhos por moradores em busca de vingança. Fui vendida por entre os fazendeiros e trabalhei como escrava por algum tempo, mas quando comecei a crescer e meu corpo se tornou o de uma mulher, os homens viram outras utilidades para mim", sua voz falou ao terminar a frase. Senti meu estômago se revirar com o horror que eu sentia diante da crueldade daquelas pessoas. "Quando eu não fazia o que era pedido, levava punições. Me chicoteavam, queimavam minha pele com ferro em brasa e me espancavam até se cansarem. E numa noite, depois de me estuprarem até que eu sangrasse, me deixaram aqui pensando que haviam me matado. Com medo de serem descobertos, eles nunca mais voltaram ou quiseram que eu aparecesse em suas terras. Vivo sozinha aqui desde então. Consigo caçar pequenos animais para comer, mas as vezes tenho que roubar comida para sobreviver, principalmente durante o inverno. Entenda, meus pais não eram pessoas boas, eu não os defendo de maneira alguma. Mas eu ainda precisava deles. Eu era uma criança quando me arrancaram dos braços da minha mãe e a espancaram até a morte. Passei minha infância trabalhando e sendo odiada. Nenhuma criança devia passar por isso."
​  Quando parou de falar, seus olhos cor de cobre estavam desfocados, sua mente estava em um lugar e tempo completamente diferente enquanto falava. Como se ela estivesse reassistindo sua família ser assassinada. Não, não veja isso de novo, eu queria dizer a ela, mas não consegui. Minha garganta estava seca demais para que eu conseguisse falar. Então apenas coloquei minhas mãos nas dela, apertando-as. Não fiquei surpresa por encontrar uma pele áspera e cheia de calos. Seu olhar voltou a focar e ela dirigiu a mim um sorriso doce, como se dissesse que estava tudo bem.
​  "Por que nunca ficamos sabendo sobre isso no Salão Central?"
​  Ela deu de ombros levemente. "Talvez porque ninguém quisesse contar".
​  "E você? Por que nunca foi até lá para nos contar o que acontecia com você aqui?"
​  "Quem acreditaria em mim? Seria a minha palavra contra a dos líderes, já que raramente os governantes vêm até as fazendas. Algumas pessoas simplesmente não tem voz dentro de Thorae."
​  "Eu acreditaria em você como acredito agora. Ouviria você e a compreenderia. Meu pai sempre diz que devemos governar o povo com compreensão, ver com seus olhos".
​  "Parece que essa regra não se aplica a todos", ela deu de ombros e balançou a cabeça na direção da pequena alcova, "pode ficar com o quarto, posso dormir aqui".
​  "Não. Dormirei aqui e você dormirá em seu próprio quarto".
​  Thesig tentou insistir, mas não cedi. Não seria capaz de tomar mais dela do que já havia sido tomado. Quando ela se retirou para dormir, eu me estiquei no amontoado de palhas e fitei o teto. Aquela garota pequena e delicada havia vivido durante anos sob tortura, sendo escravizada, estuprada e espancada sem cogitar pedir ajuda por pensar que ninguém a ouviria. Era punida por erros que não cometeu. Pelo visto, nem tudo em Thorae era perfeito.

No decorrer dos dias, eu a acompanhei em sua rotina. Cacei animais para comermos, ela me contou mais histórias sobre sua infância cruel e eu contei a ela sobre a minha. Thesig ficou fascinada com minha força e determinação para entrar para o exército e como consegui o cargo de general.
​  "Alguém como você poderia mudar o rumo da vida de muitas pessoas de Thorae, Alioth", ela me falou enquanto comíamos os peixes que eu havia pescado no grande lago perto da cabana.
​  Meu plano de fugir para Hudra pareceu ainda mais egoísta e errado do que antes. Como eu poderia dar as costas ao povo quando havia pessoas como Thesig, que precisavam ser ouvidas? Pessoas que não tinham onde conseguir ajuda por se sentirem indignas de serem ajudadas. Eu sempre rejeitei meu título como herdeira de Thorae por não ver nenhuma utilidade para mim na área política, mas era minha função estar lá. Era minha responsabilidade cuidar daquelas pessoas como herdeira tanto quanto militar. Percebi que ambas as minhas funções tinham o mesmo objetivo, eu só precisava concilia-las. Proteger o povo ao ouvi-los. E foi então que tomei minha decisão, ao final daquela semana.
​  "Reúna seus pertences, você vai voltar comigo para a aldeia", falei a ela depois de terminarmos o café da manhã. Ela não disse nada, apenas ergueu as sobrancelhas em surpresa, mas assentiu e fez conforme eu disse.
​  Preparei meu cavalo e convenci a ela de que ele não se importaria de carregá-la, e também que ela não cairia da sela. Começamos a viagem de volta naquela mesma manhã, e dois dias depois chegávamos à aldeia. Assim que meu cavalo saiu do conforto da floresta, eu soube que algo estava errado. As ruas estavam vazias e silenciosas. Franzi a testa e acelerei meu cavalo, indo até a ferraria. Thuban não estava lá. Comecei uma busca pelos homens que costumavam fazer patrulhas pela aldeia. Encontrei-os alguns minutos depois, encostados na parede de uma cabana, relaxando à sombra. Quando perceberam minha aproximação, se levantaram e tentaram parecer alertas. Percebi que não haviam me reconhecido por conta do vestido azul claro que eu usava em vez da camisa e calça costumeiras.
​  "Onde estão todos?", perguntei sem me dar ao trabalho de cumprimenta-los antes. Thesig estava tensa, agarrada a minhas costas sobre a sela.
​  "Estão reunidos no Salão Central. Cepheus está prestes a cumprir a sentença de um dos bárbaros que invadiu Thorae duas noites atrás. Disseram que será chicoteado antes da decapitação. Conseguimos capturar três deles, os outros dois foram colocados no calabouço do edifício leste, um está gravemente ferido enquanto o outro tenta salvá-lo com as mãos acorrentadas. Uma punição mais do que merecida para aqueles nojentos."
​  Minhas narinas inflaram e eu dei meia volta com meu cavalo, entrando num galope desenfreado até o Salão Central. Thesig agarrou-se a mim com mais força, escondendo o rosto em meu ombro. Ao passar os portões do Salão Central vi que todos os moradores estavam ali, uma multidão de pessoas que assistiriam a uma tortura. Por mais que ele fosse um bárbaro, algo em meu coração estava sensível com aquele tipo de punição. Com qualquer tipo de punição. Talvez punição fosse a palavra que eu mais odiasse agora. E a causa era a garota atrás de mim. Desci de meu cavalo num movimento rápido e ajudei Thesig a descer também. Comecei a acotovelar as pessoas, abrindo caminho para chegar até o centro daquela confusão, arrastando Thesig comigo. Na metade, avistei Thuban e corri em sua direção.
​  "Fique com ele, eu volto logo", murmurei para a garota quando o alcançamos.
​Só tive tempo de ver o olhar de meu amigo passar de Thesig para mim e então suas sobrancelhas se unirem em confusão. Não tinha tempo para explicar naquele momento. Voltei a avançar para o meio da confusão, empurrando as pessoas violentamente. Quando alcancei o motivo da multidão de pessoas, meu coração parou. Um homem tão grande quanto Cepheus estava preso a um mastro, sua camisa havia sido rasgada e as costas tatuadas estavam à mostra. Atrás dele estava meu pai, segurando um chicote com pontas de ferro, pronto para desferir o primeiro golpe no homem.
​  Gritei para impedi-lo e corri na direção de Cepheus. Ele olhou para mim surpreso, sem esperar que eu fosse interrompê-lo. Parecia nem mesmo saber que eu estava ali.
​  "Solte-o agora. A sentença de prisioneiros não deve ser efetuada como um espetáculo ridículo. Eu devia resolver esse tipo de questão. Por que não esperou por mim?", falei em tom baixo, evitando que as pessoas ao redor ouvissem.
​  "Desde quando se importa com bárbaros?", ele me encarava. Seu tom de voz foi arrogante o bastante para me fazer fechar as mãos em punho.
​  "Não me importo com os bárbaros, me importo com as pessoas que estão aqui assistindo um homem ser ferido e morto como se sentissem prazer com isso. E aposto que a maioria deles realmente sente. Há crianças assistindo a essa porcaria, Cepheus. Solte-o dali agora e o leve de volta para o calabouço."
​  Ele hesitou por um instante e olhou para as pessoas ao redor, suas expressões deixando clara a sua ansiedade pelo sofrimento daquele bárbaro. Meu olhar se voltou para o homem preso ao mastro. Ele me olhava pelo canto dos olhos, estes tão escuros e afiados que pareceram abrir um buraco em mim. Senti algo se agitando sob minha pele, como as primeiras faíscas que antecedem uma fogueira. Acompanhado de uma leve coceira em minha marca de nascença.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora