Capitulo IX

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  Assim que saí do calabouço, voltei para o Salão Central, onde a multidão que havia se reunido ali já se dispersava com as ordens de meus homens. Precisava ir até Thesig. Mas antes eu precisava tirar aquele vestido. Caminhei até o edifício oeste para me trocar e encontrei Cepheus parado no meio do salão de jantar. Hesitei em subir as escadas ao ver a expressão em seu rosto.
​  "Eu estava agindo como ele. Por um curto período de tempo, eu simplesmente me tornei meu pai. Fui corrompido pelo ódio assim como ele foi." Falava em tom baixo, a vergonha cobrindo cada uma de suas palavras.
​  "Você jamais será Sylthor. E mesmo que você se perca em meio ao ódio incontrolável, trarei você de volta para o lugar em que pertence."
​  Um brilho leve surgiu em seu olhar e ele assentiu uma vez. Aproximou-se de mim e depositou um beijo leve em minha testa. "Por mais que você pense o contrário, eu jamais abriria mão da pessoa que você é para que eu esteja em paz comigo mesmo. Isso seria o contrário de estar em paz comigo mesmo, Alioth. A pessoa que você é poupou a tortura de um homem e poupou crianças de assistirem a isso hoje."
​  "Há muito o que fazer para com as pessoas de Thorae, e lhes oferecer violência não é o caminho. Vamos começar mostrando piedade por nossos inimigos. Nossa força vem da compreensão, lembra?"
​  "Você está com aquele olhar de quando vai me fazer uma revelação que muito provavelmente vai fazer meu coração parar dentro do peito."
​  Eu estava prestes a dizer, estava prestes a dar a ele o nome de Thesig, mas algo em meu peito se apertou e eu engoli as palavras, mesmo que elas queimassem dentro de mim.
​  "Depois.", afastei-me delicadamente e comecei a caminhar na direção das escadas que dariam para minha torre. "Agora preciso voltar e interrogar o bárbaro."
​  Não me dei tempo de registrar a frustração em seu rosto e subi. Troquei o vestido pela camisa branca e calça de couro preto. Prendi o cinto, embainhei a espada e calcei as botas. Saindo do edifício, comecei uma caminhada apressada até a cabana de Thuban, onde ele já me esperava com Thesig. Fechei a porta atrás de mim ao entrar. A garota estava sentada no sofá um pouco sem jeito, como se simplesmente não soubesse como se sentar em algo que não fosse um amontoado de palhas e fardos de feno.
​  "Bom, e então? Quem é ela?", ele me perguntou em voz baixa quando nos afastamos para o canto da sala.
​  "Eu a encontrei na floresta nos arredores das fazendas quando estava..." parei por um instante "quando eu estava fora". Se ele notou que eu estava mentindo descaradamente, não deixou transparecer.
​  "Morando na floresta? Não é moradora de alguma fazenda?"
​  Minhas mãos se fecharam em punho e meu olhar foi para a garota no sofá, que em uma semana me ensinara sobre fragilidade de um povo sem o governo adequado, quando não havia ninguém para tirá-los do lugar sombrio no qual eram arrastados.
​  "Não é minha história para ser contada, Thuban. Se ela quiser dividi-la com você, tudo bem. Caso contrário, não a pressione e nem a mim."
​  Pareceu ser o suficiente para ele voltar a atenção também para a garota e a curiosidade tomar suas expressões. Será que ele conseguia ver agora, além da beleza angelical de Thesig, sua magreza assustadora e exaustão por tantas noites indo dormir acompanhada do medo e da dor. Ele era observador o suficiente para ter percebido isso assim que bateu os olhos nela. Quase conseguia ouvir os pensamentos borbulhando em sua mente, as milhares de perguntas que ele queria fazer, mas sentia medo de saber as respostas. Então o deixei no canto da sala e me aproximei da garota no sofá, sentando-me ao seu lado. Era estranho como ela parecia ter a delicadeza e fragilidade de uma criança, mesmo com o corpo de uma mulher e mãos calejadas pelo trabalho.
​  "Contou a ele sobre mim?"
​  "Não. Cabe a você decidir se vai contar a ele, ou a qualquer um. A partir de agora, Thesig, nada será feito a você se não for de sua escolha. Você não é mais escrava de ninguém. Você pertence a si mesma. Está bem?"
​  Seus olhos tenham encheram-se de lágrimas, mas ela assentiu e se empertigou um pouco mais, erguendo o queixo. Um sorriso brotou em meus lábios, o nó em meu peito afrouxando-se um pouco mais.

  Ao anoitecer eu voltei ao calabouço. Thesig optou por ficar na cabana de Thuban, pois não estava pronta para entrar no Salão Central e encarar Cepheus, depois de todo seu passado, eu não a julgava por tal escolha. Confiava que meu amigo cuidaria bem dela, e quem sabe, ela também lhe contasse sua história na minha ausência.
​  Não seria fácil fazer com que os bárbaros cooperassem durante o interrogatório, por isso eu precisaria de um incentivo. Talvez aquele amigo na enfermaria me fornecesse vantagem. Ou...
​  Ou usá-los para vantagem de Thorae. Eram homens grandes, poderiam exercer funções dentro da aldeia. Nas fazendas. Sob minha vigília constante. O que me daria olhos dentro do que acontecia naquelas terras raramente visitadas por autoridades.
​  Entrei na câmara escura onde estavam presos, no momento em que conversavam em brakbariano. Tal língua não passava de grunhidos e rosnados para meus ouvidos, não havia uma palavra que eu entendesse. Quando me viram, pararam de falar imediatamente. O outro já estava acordado, não que fosse ser muito útil para mim, já que ele não entenderia uma palavra do que eu dissesse. Eu só podia ver o contorno de suas silhuetas com a luz precária de dentro da câmara. Irritada, chamei um dos homens e ordenei que trouxesse mais tochas para iluminar aquele lugar infernal. Quando isso foi feito, olhei com atenção para aquele que se chamava Ghurab. Agora com mais claridade, era possível ver as condições ridículas em que eram mantidos. As correntes eram tão curtas que ajoelharem-se era a altura máxima que poderiam se erguer. Aquele homem era uma força da natureza, enorme e musculoso, os cabelos negros estavam ensebados caídos sobre o rosto e ombros, sujeira cobria sua pele bronzeada. O outro não estava muito melhor, os cabelos loiros estavam desgrenhados em sua cabeça e a maior parte de seu corpo estava sujo com o sangue do irmão. Ao perceber minha atenção sobre si, o loiro grunhiu algumas palavras estranhas e exibiu um sorriso malicioso. Virei para Ghurab.
​  "O que ele disse?"
​  Ele me observava em silêncio, mas logo desviou o olhar para outro ponto do calabouço.
​  "Ele achou você agradável aos olhos", respondeu friamente.
​  Meus lábios se repuxaram pra cima em repulsa, o que resultou numa série de risadas vindas do loiro.
​  "Diga a ele que de forma alguma o sentimento é recíproco."
​  "Não sou seu mensageiro, princesa."
​  Revirei os olhos. Mas ele traduziu para o companheiro o que eu havia dito. A resposta foi rápida, carregada de um tom que parecia beirar o deboche.
​  "Ele disse que você tem o jeito das mulheres brakbarianas."
​  Minha única resposta foi uma risada de escárnio. Pousei a mão distraidamente no cabo de minha espada e voltei ao que realmente interessava ali.
​  "Espero que esteja mais cooperativo agora, bárbaro."
​  "Eu não contaria com isso."
​  "Tenho maneiras de fazer isso acontecer, acredite."
​  Vi seus braços se retesarem, forçando as correntes que prendiam-no ao chão. Lembrei-me então que eles ainda esperavam notícias de seu amigo. Percebi quando até mesmo o loiro ficou em completo silêncio ao ver a reação de Ghurab diante de minhas palavras. Eles pensavam que eu usaria a vida do amigo para chantagea-los. Espertinhos.
​  "Qual o nome de seus amigos?"
​  O bárbaro se manteve em silêncio, olhando de mim para o loiro algumas vezes. Até que respondeu.
​  "Este é o Manva e o irmão dele se chama Garkah."
​  A testa daquele chamado Manva se franziu, uma leve ansiedade o deixando inquieto.
​  "Pode dizer que o irmão dele está vivo ainda. Se recuperando depois dos curandeiros costurarem o corte que o abriu desde o peito até o umbigo. Vamos esperar os pontos cicatrizarem completamente para então deixarmos vê-lo."
​  Ghurab ficou em silêncio, olhando para mim com as sobrancelhas unidas em desconfiança, mas havia um brilho de gratidão ali que ele talvez não tivesse intenção de deixar transparecer. Então se virou para Manva e passou as notícias, que o fez encostar relaxado contra a parede de pedra, como se um peso imenso saísse de suas costas. Ghurab voltou a me encarar.
​  "Suas tatuagens. É a escrita dos monges, certo?"
​  "Como sabe sobre isso?", perguntou sem esconder a surpresa.
​  "Já li sobre elas. Mas ninguém em Beldarrien sabe lê-las."
​  "É, ninguém sabe."
​  "Você sabe."
​  "Sei."
​  "Como?"
​  Mais uma vez, ele ficou em silêncio. O abismo de escuridão de seus olhos fez um calafrio subir por minha espinha. Sustentei o olhar até que ele o desviasse. Seria difícil fazer aquele ali cooperar.
​  "Pois bem, vou deixá-los mais um pouco aqui, até que eu tenha alguma utilidade para vocês." Comecei a me virar para sair quando Manva grunhiu algo em brakbariano. Parei e esperei que Ghurab tivesse a boa vontade de traduzir.
​  "Ele está agradecendo pelo que fez por Garkah."
​  Voltei-me para o homem loiro e murmurei.
​  "Nem todos aqui são monstros."
​  Somente quando passei pela porta, ouvi Ghurab traduzir minha resposta para ele.
​  Meu trabalho naquela noite seria longo. Preparar alguma forma de fazer os bárbaros colaborarem, ao mesmo tempo em que eu poderia usá-los para manter as fazendas na palma de minha mão. Mandei alguns homens levarem bacias com água para os prisioneiros se limparem no calabouço. Claramente estranhavam meu comportamento tão benevolente para com aqueles homens. Estava além da compreensão deles a mudança que havia acontecido comigo durante aquela semana com Thesig. Já era tarde da noite quando consegui me deitar para dormir e sonhei com os olhos negros de um lobo me observando por entre a vegetação, pronto para me atacar. Mas não havia nenhuma gota de medo em mim, somente a perigosa vontade de que ele viesse logo.

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora