Capítulo XXIII

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 Antes que qualquer pessoa pudesse fazer qualquer coisa, Alioth já estava fora da mesa. Tentei segurar seu braço, mas não fui rápido o suficiente. Encarei a todos na mesa, os semblantes confusos estavam voltados na direção em que a general havia saído. Menos uma pessoa. Cepheus me encarava como se visse um fantasma ao mesmo tempo em que analisava meu rosto de um jeito calculista. Franzi a testa para ele. 

 "O que está acontecendo?" perguntei. 
 "Acho que eu deveria ir atrás dela." Thuban começou a se levantar.
 Meu olhar foi até ele, não me preocupei em esconder meu incômodo com aquilo. Mesmo que ele tivesse beijado Alioth aquele dia no quarto, sua presença ainda não era de todo desnecessária. Eu não o matara na época por saber que ela sofreria muito com tal situação, mas a ideia ainda não estava completamente descartada, seria bom ele não abusar de minha paciência. Mas antes que eu fizesse algo, Cepheus ergueu a mão e mandou que ele ficasse ali.
 "Eu falarei com ela. E você vem comigo." Dirigiu-se a mim.
 Levantamo-nos da cadeira, olhei para meus irmãos e assenti uma vez, eles assentiram de volta e eu saí com Cepheus em busca de Alioth. Começamos a procurá-la na casa principal, em seu quarto e em todos os outros, mas ela não estava ali. Fomos até as plantações, os celeiros e o rio, mas ela também não estava em nenhum desses lugares. Vez ou outra eu pegava o homem me encarando pelo canto dos olhos, ainda me analisando. Parei de andar.
 "Comece a falar."
 Ele parou dois passos adiante e se virou para mim. Suas sobrancelhas se franziram.
 "Melhor falar quando encontrarmos Alioth."
 Grunhi e voltei a andar, olhando ao redor. Eu não entendia o que estava acontecendo, por que de repente foi tão importante saber de onde eu vinha, quem me criou? Nada daquilo fazia sentido e eu estava ansiando por uma explicação decente. Eu precisava de uma explicação. Uma brisa leve atingiu meu rosto, trazendo um leve aroma de maçãs, e foi como se meu estômago congelasse, o mundo pareceu girar por um instante e então estabilizou de novo, levando embora o cheiro. Pensei ser minha mente me pregando peças e prossegui, minhas pernas pareciam se mover por conta própria até a grande macieira na qual havíamos dormido. E lá estava ela, sentada sob a árvore, encolhida. Cepheus, por algum motivo, diminuiu o passo, mas eu continuei avançando. Eu era sugado para perto dela, todo o meu corpo ansiava por estar perto dela. Assim que eu estava alguns passos de distância, Alioth ergueu a cabeça e me encarou como se me visse pela primeira vez, e então seu olhar pousou em meu braço, na cicatriz que eu carregava.
 "Não..." sussurrou.
 Encarei também seu braço, que carregava a mesma cicatriz que eu vira no salão de jantar. Engoli em seco. As marcas eram muito parecidas.
 "O que está acontecendo, Alioth?" perguntei.
 "Você ainda não entendeu?" seu rosto estava contorcido em uma expressão que beirava a fúria.
 "Entenderei assim que você me explicar. Tudo isso por causa de cicatrizes iguais? Não é assim tão incomum."
 Ela se levantou e se aproximou de mim, puxou um pouco mais a manga de sua camisa para mostrar completamente a cicatriz de seu braço. Um leve arrepio desceu por minha espinha. Eram idênticas.
 "É minha marca de nascença." Ela sussurrou.
 Cepheus se aproximou e olhou para nossas cicatrizes.
 "Não são só as cicatrizes." Ele finalmente falou.
 Meu olhar voltou para Alioth, mas ela voltara a encarar meu braço.
 "Nascemos no mesmo dia também." Falou baixo.
 Engoli em seco. Queria que ela olhasse para mim. Que erguesse a cabeça e olhasse para mim, eu precisava olhar em seus olhos.
 "Outra coincidência", falei. Mas até mesmo para mim soava como uma negação veemente do que eles estavam tentando dizer.
 "Alioth não é minha filha biológica. Eu a encontrei... recém-nascida na floresta nos limites de Thorae." Falou Cepheus.
 Fechei os olhos, sentindo todo o meu corpo se tencionar com a revelação. Seria patético eu tentar negar novamente, eram semelhanças demais. Mas apenas os fatos, porque não havia muito fisicamente que Alioth tivesse parecido comigo. Talvez só a maldita cicatriz e os cabelos negros. Se aquilo fosse verdade, por que eu estava em Malahar e ela em Thorae? Não fazia sentido nenhum estarmos separados se de alguma forma fôssemos parentes, ainda mais por sermos recém-nascidos. Teria poupado tamanho trabalho para quem quer que nos abandonou, deixar-nos em um lugar só. Como parecia que Alioth não diria mais nada, Cepheus começou a falar.
 "Quando eu era jovem, um monge visitou Thorae em sua viagem de volta ao Monastério. Ficou por algumas semanas aqui antes de ter de partir, reabastecendo sua embarcação com suprimentos para o tempo no mar. Porém, antes de ir embora, contou-me que viu algo em meu futuro em uma de suas meditações. Ele disse que um dia, eu teria um herdeiro, mas que meu primogênito carregaria uma terrível maldição, que carregaria um fardo que acarretaria em muito sofrimento." Contou. "Com o passar dos anos, eu não esqueci o que o monge me dissera, então decidi que não teria filhos. Eu não poderia suportar colocar no mundo uma criança que carregaria uma maldição, seria muito cruel. Até que encontrei Alioth na floresta muitos anos depois, e bastou apenas um olhar para que eu decidisse levá-la comigo."
 Minha testa se franziu um pouco. "Um monge?"
 Cepheus assentiu uma vez. "Nunca mais vi tal homem novamente. Tinha uma tatuagem incomum no meio da testa."
 Engoli em seco, tentando impedir meu estômago de colocar o jantar para fora.
 "Uma lua crescente." Murmurei.
 "O que?" Alioth falou finalmente.
 Olhei para ela, seus olhos estavam em meu rosto novamente. Aqueles olhos magníficos, agora pareciam me perfurar. Eu sabia quem estava de alguma forma, por trás de tudo aquilo. Não poderia ser uma coincidência, ele sabia de mais coisa do que eu jamais imaginara. Sempre teve a tendência de esconder as coisas de mim. Mas agora seria diferente, eu iria até o fundo dessa história, viajaria até o Monastério e descobriria o que aconteceu conosco no passado, como fomos separados. E se éramos, de fato, parentes.
 "O monge que me criou, seu nome é Euridanus, ele carrega uma tatuagem de lua crescente em sua testa."
 "Euridanus! Esse era o nome dele, eu me lembro agora." Falou Cepheus, e então ficou em silêncio, perdendo-se nos próprios pensamentos.
 Eu continuava olhando para Alioth, podia ver como era difícil para ela digerir o que estava acontecendo, assim como eu. Ergui a mão e a pousei em seu rosto, acariciando-lhe a maçã do rosto com o polegar.
 "Eu vou descobrir tudo. Eu prometo."
 Afastou-se do meu toque e ergueu a cabeça, sua coluna ficou rígida.
 "Descabido de sua parte dizer isso no singular. Nós vamos descobrir tudo."
 "Alioth..." comecei.
 "Não. Nem tente. Eu vou junto."
 "Vão onde?" perguntou Cepheus, e me dei conta de que eu sequer dissera uma palavra para ela e mesmo assim, desvendou meus planos sobre ir até o Monastério.
 "Tenho que voltar ao Monastério para falar com ele. Depois que me encontrou, Euridanus passou a viver completamente recluso dentro da muralha da ilha, sem sair de lá sequer uma vez em vinte anos."
 "Precisaremos de uma embarcação e de mantimentos para a viagem."
 "E uma tripulação." Comentou Cepheus.
 Olhamos para ele ao mesmo tempo, franzindo a testa. Alioth moveu os ombros algumas vezes, como se estivesse se livrando da tensão que pairava sobre eles, e vi a mudança em seu semblante, quando ela deixou de lado suas emoções e tomou as rédeas da situação. Vi ela se tornar a general de Thorae em poucos segundos, quase podia ouvir as engrenagens de sua mente trabalhando.
 "Não faremos alarde sobre essa viagem, levarei apenas os homens que trouxe até aqui. Usaremos a embarcação militar que disponibilizamos para os pescadores para irmos até Hudra. Lá conseguiremos outra embarcação adequada para a viagem mais longa e uma tripulação maior. E então, partimos para o Monastério." falou.
 "Precisamos de um mapa." Olhei para Cepheus.
 "Vamos para a casa principal, tenho um mapa lá."
 Assenti e começamos uma caminhada apressada até a casa principal, mas no meio do caminho, Manva segurou meu braço, de onde é que ele estivesse e me perguntou o que estava acontecendo.
 "Chame Garkah, tenho a sensação de que vamos precisar de vocês dois." Respondi em brakbariano.
 Continuamos em direção ao quarto de Cepheus, ao chegarmos lá, ele fechou a porta e caminhou até a pequena mesa no canto do quarto. Mexeu em algumas gavetas até que encontrou o mapa e o abriu sobre a mesa, usando pesos de papel para mantê-lo aberto. Alioth se aproximou da mesa, assim como eu. Seu dedo pálido traçou uma rota curta até a Ilha Hudra.
 "Levaremos alguns dias para chegar até Hudra, levaremos mais um dia para escolher a tripulação..."
 "Escolher a tripulação? Você já não tem militares específicos para isso?"
 Ela ergueu o olhar para mim. "A Ilha é separada por distritos de cargos militares ou capacidades. Lá temos o distrito exclusivo de forças navais, onde os homens aprendem e desenvolvem os cargos marítimos, tanto a navegação em si quanto a manutenção do navio. Então, sim, eu tenho os militares específicos para isso. Mas não vou levar todo o distrito de forças navais, eu preciso escolher os mais qualificados para uma viagem desse porte."
 Engoli o sorrisinho que estava prestes a estampar meu rosto e olhei para o mapa novamente.
 "Então, assim que escolhermos a tripulação, partiremos pela parte superior de Hudra em direção ao norte, subindo pelo mar até o Monastério." concluiu Alioth.
 "A viagem até o Monastério vai levar cerca de duas semanas e meia, se o vento ajudar. E chegando lá, preciso alertá-la..." Antes que eu pudesse terminar uma batida na porta me interrompeu.
 Cepheus atendeu a porta, e fui surpreendido ao ver mais do que Garkah e Manva ali. Thesig e Thuban estavam ali também. Ergui uma sobrancelha para Manva, e ele deu de ombros. Quando todos entraram no quarto, Alioth encarou a todos, sem saber bem o que dizer. Cruzei os braços sobre o peito, esperando que ela tomasse a dianteira, afinal, ela estava se saindo muito bem até ali.
 "O que estão fazendo aqui?" perguntou.
 "Vimos os dois cochichando e vindo até aqui, e decidimos que seria interessante participarmos dessa reunião. O que está acontecendo?" falou Thuban.
 Alioth olhou para mim em busca de algum auxílio. Eu poderia confortavelmente ignorá-lo, mas ela parecia presa em um dilema. Eu só poderia imaginar qual era.
 "Descobrimos algo em comum sobre nossos passados e queremos saber toda a história, então, vamos até o lugar onde eu cresci para isso."
 Thesig deu um passo à frente. "Vocês vão para o Monastério?"
 "Sim." Respondeu Alioth.
 "Eu vou com vocês." Thuban deu mais um passo também.
 "Você não..." começou Alioth.
 "Eu também vou." Thesig a interrompeu.
 Meus irmãos observavam tudo com uma atenção incomum. Um sorrisinho fez um dos cantos da minha boca se repuxar. Malditos espertinhos.
 "Se eles vão, nós também iremos." Falou Garkah. Em thoraniano.
 Todos ficaram em um silêncio chocado, encarando os dois brakbarianos com assombro. Nem mesmo Alioth conseguiu esconder a surpresa. Aproximei-me dos dois e semicerrei os olhos.
 "Vocês são espertos demais para o próprio bem."
 "Como que..." Thesig começou a perguntar, mas apenas encarou Garkah, deixando a pergunta no ar.
 "Estamos aqui há meses, sua língua não é tão difícil quanto parece. Com Ghurab traduzindo quase tudo o tempo todo, nós conseguimos desvendar a maioria das palavras, sozinhos." Explicou Manva, o sotaque era muito carregado, mas conseguíamos compreender perfeitamente o que falava.
 Soltei uma risadinha e balancei a cabeça. "Pois bem, gênios. Temos uma viagem a fazer."
 E assim se seguiu algumas horas, fazendo planejamentos cuidadosos da viagem que faríamos. Vez ou outra eu ainda tinha que traduzir para Manva e Garkah, mas grande parte do que era dito eles entendiam, o que facilitou a maior parte do planejamento. Decidimos que iríamos todos os seis, já que cada um teria uma participação na viagem. Eu não deixaria os gêmeos ali em hipótese alguma, isso já estava decidido. Mas Thuban e Thesig foi mais difícil. Thesig insistiu em ir várias vezes, usando o argumento de seus talentos medicinais. Ninguém se surpreendeu quando Garkah foi o primeiro a apoiar a ideia de levá-la. Levou algum tempo, mas conseguiram convencer Alioth. Aparentemente, o pai de Thuban era o comandante da Ilha, o líder do distrito dos arqueiros. E como Thuban tinha o trabalho na ferraria, disponibilizaria as armas para nossa segurança durante a viagem. Um argumento muito fraco, mas Alioth engoliu mesmo assim. E com isso, chegamos ao verdadeiro problema da noite.
 "E Caeli?" falou Thesig.
 Todos ficaram em silêncio. Alioth passou as mãos sobre o rosto, respirando fundo.
 "Não podemos levá-la, Thesig. Eu sinto muito, é muito arriscado, a viagem será longa demais. Ela é apenas uma criança." Falou em tom baixo.
 Mesmo que estivesse prestes a protestar, Thesig refletiu por um segundo e então assentiu, engolindo em seco. Garkah mantinha o olhar sobre ela, suas mãos estavam fechadas em punho como se quisesse sanar a vontade de tocá-la.
 "Então está decidido" falou Cepheus "e quando pretendem partir?"
 "Amanhã. Juntaremos os suprimentos pela manhã e partiremos em seguida." Respondeu Alioth. "Essa noite mandarei a mensagem para Hudra sobre nossa chegada. Então, melhor todos irmos dormir. Teremos muito que fazer."
 Todos assentiram em despedida e saíram do quarto. Eu me demorei um pouco mais. Cepheus saiu também para providenciar a mensagem que mandariam para a Ilha, nos deixando a sós. Aproximei-me da general.
 "Seus amigos são bem inteligentes." Ela falou antes que eu dissesse alguma coisa.
 "Para bárbaros." completei a frase que todos ali pareciam apreciar dizer.
 "Para qualquer pessoa. Eles aprenderam uma língua estrangeira, sozinhos. Tenho de dar crédito a isso."
 "Entendo."
 Ergui a mão para tocar seu braço, mas ela deu um passo para longe de mim, aproximando-se mais da mesa para dobrar o mapa.
 "Alioth." Falei.
 Ela parou com as mãos espalmadas sobre a mesa, sem olhar para mim.
 "Eu preciso saber a verdade, Ghurab. Se formos... Se você for..." pigarreou "eu preciso saber, para não fazermos algo que nos arrependeremos depois."
 Fitei suas costas por um instante. Eu sabia que fazia completo sentido o que ela estava dizendo, eu conseguia compreender a situação em que estávamos. Mas ainda havia algo em mim que gritava, que berrava estar errado. Eu ainda era sugado para perto dela, e aquela atração não era de forma alguma fraternal. Era outra coisa. Eu queria cobrir a distância entre nós com aqueles poucos passos que nos separavam, a criatura dentro de mim se debatia para que eu o fizesse, rugia e arranhava para que eu fosse para perto de Alioth. Mas eu precisava respeitar o espaço dela. Ainda tínhamos muito que descobrir sobre nós mesmos, muito que digerir. E ela estava certa, poderíamos nos arrepender depois. E somente por isso, eu recuei até a porta.
 "Vemos-nos pela manhã, então. Boa noite." Falei antes de sair.
 Vi ela se encolher na direção da mesa antes que eu fechasse a porta.
 Caminhei pelos corredores, completamente absorto em meus pensamentos. Voltar para o Monastério era a última coisa que me imaginei fazendo. Mas por ela, por Alioth eu faria. Eu voltaria ali, eu despertaria todos os meus demônios por ela. E a partir dali, eu sabia que era um caminho sem volta.

 Naquela manhã, eu e os gêmeos nos encontramos com os demais na casa principal, os homens designados para irem conosco até Hudra estavam enchendo uma carroça com o que quer que coubesse ali para levarmos, e isso incluía alimentos, roupas e armas. Não teríamos tempo para pegar mais nada além do que tínhamos levado para as fazendas, então a maior parte do que levaríamos seria em alimentos. Alioth disse que se tivéssemos sorte o suficiente, conseguiríamos o resto em Hudra, já que havia residências dentro dos distritos. Eu não poderia dizer que estava ansioso para irmos até Hudra. Uma coisa era os moradores de Thorae nos odiarem, outra coisa era o exército de Thorae.

 Começamos a ajudar os homens a encherem a carroça com os mantimentos, até que ouvi uma voz aguda gritando ao longe. Aparentemente, não só eu. Garkah e Manva pararam também e olharam para trás. Um xingamento em brakbariano soou baixo vindo de Garkah.
 Correndo em nossa direção, vinha Caeli. Seu vestido verde estava com a barra suja de lama, provavelmente ela havia se aventurado perto do rio novamente antes de ir até ali. Quando chegou perto, parou e franziu a testa para a carroça cheia de coisas atrás de nós. E logo ao lado, vinha Thesig carregando uma pilha de roupas, e parou ao ver Caeli.
 "O que é isso?" ela perguntou, sem entender o motivo de estarmos carregando a carroça.
 A menina alternava o olhar entre Garkah e Thesig, esperando que um deles respondesse. E foi Thesig ao fazê-lo.
 "Nós vamos fazer uma viagem, Caeli."
 "Legal! E para onde vamos?" Ela sorriu, animada.
 Garkah engoliu em seco e pigarreou baixo, fitando Thesig. Parecia que ela estava prestes a se partir ao meio.
 "Querida... Não poderemos levar você dessa vez. É muito perigoso." Ela quase sussurrou.
 O sorriso de Caeli desapareceu devagar, conforme ela começava a entender que não iria conosco. Algo em meu coração simplesmente morreu ao ver a mágoa substituindo sua animação. Ver as lágrimas em seus olhos substituindo o sorriso.
 "Vocês vão embora?" ela perguntou baixo.
 "Nós vamos voltar em breve, pode levar algum tempo, mas vamos voltar." Ela se aproximou de Caeli, passando os dedos pelos cabelos loiros da menina.
 "Vocês não vão voltar, igual a minha mãe. Ela foi embora porque eu fiz travessuras, e agora vocês vão embora também por eu ter sido levada."
 Thesig cambaleou um pouco e vi quando as palavras da menina atingiram-na em cheio como um soco. Garkah se aproximou dela, mas não a tocou. Caeli olhava de um para outro.
 "Por favor, eu prometo ser boazinha. Não quero ficar sozinha aqui, por favor." Ela abraçou as pernas de Thesig.
 Olhei ao redor e avistei Alioth ao longe, vendo a cena. Eu podia ver as lágrimas escorrendo por seu rosto mesmo naquela distância. Eu sabia que não devia fazer nada, que Alioth tinha razão em deixá-la ali em segurança, mas eu não estava conseguindo assistir àquilo. Voltei meu olhar para a menina.
 "Eu queria que você fosse minha mãe." A menina choramingou contra as pernas de Thesig.
 Thesig ergueu o olhar para mim e eu pude ver a súplica ali. A dor. O arrependimento. Garkah parecia capaz de simplesmente socar a tristeza para fora de Thesig, isso é, se ele mesmo não estivesse completamente destruído pela cena que víamos sem podermos fazer nada.
 "Caeli..." Thesig começou a se afastar delicadamente e a menina começou a chorar copiosamente.
 De repente, o cheiro de Alioth me alcançou e ali estava ela.
 "Caeli, arrume suas coisas. Você vem conosco."
 Todos nos viramos em sua direção, surpresos. A gratidão nos olhos de Thesig brilhou com a força de mil sóis. A menina parou de chorar e se virou para Alioth, abrindo um sorriso alegre em seguida. Então, voltou-se para Thesig e Garkah.
 "Eu vou ser a filha de vocês agora?" perguntou.
 Thesig corou e Garkah sorriu, passando a mão pelos cabelos, mas não respondeu. Deixou que Thesig desse a resposta.
 "Bem, se você quiser..."
 "Quero! Você e Garkah podem ser minhas mães!"
 Uma gargalhada saiu de Manva ao ouvir a menina.
 "Que tal mãe e pai?" sugeriu Thesig carinhosamente.
 A menina assentiu várias vezes e abraçou as pernas de Thesig mais uma vez e depois as pernas de Garkah.
 "Vá, esperaremos você aqui." Disse Alioth.
 Então a menina correu para onde quer que fosse sua casa ali para fazer as malas. Virei-me para Alioth, que secava o rosto sutilmente.
 "Vamos cuidar dela, vai ficar tudo bem." Garanti.
 "Eu sei. Eu não poderia fazer elas se separarem novamente, não consegui." Confessou e suspirou baixo. Seu olhar voltou-se para Thesig e ela ergueu as sobrancelhas.
 Segui seu olhar e deparei-me com Thesig e Garkah um de frente para o outro, a diferença do tamanho dos dois chegava a ser engraçada. Thesig estava esticada para tocar um medalhão no pescoço de Garkah que eu nunca havia percebido antes, enquanto a mão dele estava em seu rosto, os dedos secando-lhe as lágrimas delicadamente. Eu reconhecia a expressão no rosto de Garkah, porque eu mesmo já estive daquele jeito. Todas as vezes que eu olhava para Alioth. Olhei para ela ao meu lado, e ela já me encarava. E foi então que eu entendi aquela criatura dentro de mim. 

Beldarrien - A Coroa AmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora